Imagens geradas por Inteligência Artificial: Desafios éticos

Midia

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Introdução

Durante o mês de março de 2025, surgiu nas redes sociais uma trend [tendência] de ilustrações no estilo dos desenhos do consagrado estúdio japonês de animação Ghibli, mais especificamente no estilo do diretor Hayao Miyazaki, responsável por sucessos como “O meu vizinho Totoro” (1988) e “A Viagem de Chihiro” (2001) (ITS FEED, 2025). Rapidamente as ilustrações geradas através da nova ferramenta de criação de imagens pela Inteligência Artificial (IA) do ChatGPT, que permite maior precisão ao imitar um estilo específico, tomaram as redes, expondo mais uma vez os desafios éticos apresentados pela IA (2025, op. cit.).  Não é a primeira vez que uma polêmica sobre direitos autorais de obras utilizadas para alimentar uma ferramenta de IA ocorre: recentemente, artistas organizaram protestos em plataformas populares para artistas, como DevianArt e ArtStation. Alguns chegaram até a mover ações para defender seus direitos de autor (MIT Technology Review, 2023).

De forma geral, os desafios da IA já são bastante conhecidos e amplamente discutidos - outro texto livre publicado neste mesmo portal, “De leigo para curioso: Inteligência artificial, realidade, significados, potencialidades e limitações” (Ciência em Síntese, 2024), enumera e resume didaticamente a maioria deles. Porém, neste texto é proposta uma reflexão mais aprofundada e específica sobre os desafios que surgem com as imagens geradas pela IA.

 

Direitos Autorais

Entre os dilemas levantados pelo episódio, o mais polêmico de todos diz respeito aos direitos autorais. Afinal, as empresas podem utilizar imagens sem permissão dos seus autores, para alimentar suas ferramentas de IA e possibilitar que esta gere desenhos que copiam seus estilos? A resposta pode parecer simples, mas a realidade não é.

Primeiramente, direitos autorais internacionais não são regidos por uma única lei. De acordo com a Convenção de Berna, o mais importante tratado sobre o assunto, os direitos autorais são regulados pelas leis do país onde estes são reclamados (CONVENÇÃO DE BERNA, 1886 apud ITS FEED, 2025). Como as leis variam de país para país, a resposta vai depender do país onde o processo ocorre.

Portanto, do ponto de vista legal, não é possível afirmar categoricamente se é permitido ou não treinar ferramentas de IA utilizando imagens protegidas por leis de direitos autorais. Nos Estados Unidos da América (EUA), as empresas de IA se valem de uma brecha em sua lei: o fair use [uso justo], que permite o uso livre de conteúdo protegido, desde que a finalidade seja para crítica, comentário,  reportagem  de  notícias,  ensino,  bolsa  de  estudos  ou  pesquisa (LANTYER, 2024; United States, 1976 apud LANTYER, 2024). Contudo, assim como outras empresas de IA, a Open AI vem sofrendo vários processos judiciais por abusar dessa premissa, o New York Times e a Author’s Guild são algumas das entidades que a processaram por utilizar suas obras sem permissão (ITS FEED, 2025).

Outro fator que torna o tema mais complexo ainda é a ausência de legislação sobre a propriedade do estilo, os direitos autorais não cobrem o conjunto de características que compõem o que entendemos por estilo, eles cobrem apenas as obras em si (2025, op. cit.). É uma forma de permitir que um artista possa realizar obras inspiradas no estilo de outro e que movimentos artísticos sejam criados. Porém, a lacuna na legislação não deveria ser utilizada para que o estilo pessoal de um artista seja simulado de forma que qualquer pessoa possa se passar por tal artista, ou que seja impossível distinguir o verdadeiro autor da obra. Devido à repercussão negativa entre os fãs do Estúdio Ghibli, a OpenAI voltou atrás e lançou uma atualização que não permite a utilização do nome de artistas em prompts [comandos] para gerar imagens (MONEY CONTROL, 2025).

 

Mercado de trabalho

Outro desafio ético que surge é a substituição de mão de obra humana pela máquina. De acordo com um estudo divulgado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) no começo de 2024, 40% dos empregos serão afetados pela IA no mundo inteiro (IMF Blog, 2024). Diferente de outros avanços tecnológicos em automação e informação, a IA tende a afetar empregos que exigem alta qualificação. Em economias avançadas, cerca de metade destes empregos será beneficiada pela IA, melhorando a produtividade, mas a outra metade poderá ser completamente substituída por ela (2024, op. cit.). Aparentemente o trabalho de artistas, ilustradores e designers encontra-se nessa segunda metade. Embora o Brasil não se enquadre nesse perfil econômico, profissionais das áreas criativas, tais como: designers e ilustradores, que normalmente já lidam com um mercado precarizado e pouco valorizado, estão sentindo na pele a substituição de seus trabalhos pelas imagens geradas por IA, enfrentando um cenário de competição literalmente desumana (BBC News Brasil, 2024). Isto ocorre por serem profissões que se baseiam fortemente em tarefas cognitivas e que estão expostas à IA. Uma reportagem da BBC News Brasil intitulada “Os ilustradores que já têm empregos e criações 'roubados' por IA: 'Medo de não conseguir me sustentar'” narra as dificuldades enfrentadas por profissionais brasileiros. A reportagem também cita dados do Reino Unido, onde uma pesquisa recente sobre IA da Society of Authors, um sindicato para escritores, ilustradores e tradutores literários, mostra que 26% dos ilustradores responderam que já perderam empregos para as máquinas (SOCIETY OF AUTHORS, 2024 apud BBC News Brasil, 2024). Uma pesquisa da Harvard confirma essa tendência. De acordo com ela, cerca de um ano após a introdução de ferramentas de geração de imagens por IA, (incluindo Midjourney, Stable Diffusion e DALL-E2) houve uma queda de 17% na demanda por profissionais de design gráfico e modelo 3D nas plataformas líderes para empregos para freelancers (Harvard Business Review, 2024).

Apesar dessas previsões provocarem receio no meio criativo, o avanço da IA também tem um enorme potencial para novas oportunidades. Em seu artigo “A Place for Human Talent in the AI Age", Marina Tavares (FINANCE & DEVELOPMENT MAGAZINE, 2025) exemplifica como a IA pode beneficiar o talento humano: no ambiente de trabalho a IA libera as pessoas das tarefas repetitivas e rotineiras, permitindo que elas assumam tarefas mais complexas e que utilizam suas habilidades mais avançadas; na educação, a IA também pode nutrir e revelar talentos através de acesso à educação individualizada de alta qualidade; e no campo das ciências, ela pode ajudar a conduzir novas descobertas, levando a resultados mais rápidos e mais promissores.

 

Privacidade e dados pessoais

Não menos importante que os desafios anteriormente mencionados, surge a questão da privacidade. Dados de milhares de pessoas vêm sendo coletados de forma espontânea e voluntária. No episódio exemplificado acima, a OpenAI coletou uma quantidade enorme de dados na forma das imagens pessoais que usuários enviaram para suas bases (ITS FEED, 2025). Você pode se perguntar: “o quê de ruim poderia acontecer com minha imagem?”. O perfil do Instituto de Defesa dos Consumidores (Idec), no Instagram, publicou um post que resume de forma bastante didática alguns exemplos:

Ao fornecer sua foto, você corre o risco de ter essa imagem vazada para criminosos, que poderão utilizá-la para cometer diferentes crimes. Fotos de crianças, por exemplo, podem ser usadas para produzir pornografia infantil. Lembre-se que seu rosto gera um dado biométrico, com a imagem dele é possível fazer diferentes fraudes e golpes! (IDEC, 2025).

O post ainda nos lembra: “se o produto é de graça, é porque o produto é você", citando o famoso axioma atribuído a diferentes autores, e que resume uma estratégia bastante antiga do marketing. Essa estratégia é a base do modelo de negócios adotado pela ampla maioria das redes sociais: oferecer um serviço “de graça”, em troca das informações pessoais para revendê-las a terceiros para fazerem anúncios direcionados (TORBERT, 2021). Essa prática é criticada por muitos, de acordo com Torbert é imoral e ilegal:

É imoral porque se baseia na dependência psicológica, vigilância e manipulação do usuário para minar sua autonomia. O contrato entre a empresa e o usuário é imoral. Também se pode argumentar de forma plausível que o contrato é ilegal segundo a lei da Califórnia, por ser contrário aos bons costumes, injusto e contrário ao interesse público[1] (Torbert, 2021, p.1, tradução nossa).

 

Problemas ambientais

Por fim, o desafio mais grave que o uso desenfreado da IA generativa coloca em evidência, bem exemplificado na trend dos desenhos Ghibli, são os problemas ambientais acarretados. Basicamente, esses problemas ocorrem nas seguintes frentes:

  1. Alto consumo de energia e consequente aumento da emissão de dióxido de carbono - o consumo de energia elétrica pelos data centers utilizados durante o desenvolvimento dos modelos de IA é enorme, cerca de sete ou oito vezes maior do que o consumo de uma programação computacional típica. Somente o treinamento dos modelos consome 1.287 megawatts/hora, energia suficiente para manter cerca de 120 casas americanas por um ano, emitindo mais ou menos 552 toneladas de dióxido de carbono. O consumo de energia elétrica também permanece alto após a implementação destes modelos em aplicativos utilizados por milhares de pessoas no dia a dia, após o seu desenvolvimento, durante um bom tempo. Pesquisadores estimam que uma pergunta feita ao ChatGPT consuma cerca de cinco vezes mais energia que uma busca simples na internet (MIT News, 2025). Além disso, os modelos possuem vida curta, consumindo mais energia ainda para desenvolver novas versões. Globalmente, o consumo dos data centers basicamente dobrou entre 2022 e 2023, refletindo o impacto da IA generativa, equiparando-o ao de países inteiros e colocando os data centers em décimo primeiro lugar entre os maiores consumidores de energia no mundo. A expectativa é de que até 2026 os data centers alcancem a quinta posição (2025, op. cit.).
  2. O imenso consumo de água para resfriar os computadores - que sobrecarrega os sistemas de distribuição de água locais e acarreta a destruição dos ecossistemas (2025, op. cit.). O portal argentino Infobae estimou que a produção das imagens geradas durante a trend do Studio Ghibli consumiu cerca de 216 milhões de litros de água em uma semana, o equivalente ao consumo de água de uma cidade pequena em um mês (Estado de Minas, 2025).
  3. A maior pegada de carbono para a fabricação das Unidades de Processamento Gráfico (GPU - Graphics Processing Unit), um tipo de processador mais potente necessário para lidar com a carga intensa da IA generativa, composta pelas emissões relacionadas ao transporte da matéria-prima e do produto (MIT News, 2025).
  4. A origem da matéria-prima para fabricar as GPUs, que pode envolver processos de mineração causadores de poluição e uso de produtos químicos tóxicos no seu processamento (2025, op. cit.).

 

Como enfrentar os desafios éticos

O relatório publicado pelo Fórum Econômico Mundial (FEM) em colaboração com a Accenture “Artificial Intelligence in Media, Entertainment and Sport” afirma que para obter uma adoção bem sucedida e responsável da IA, as organizações precisam adotar uma abordagem holística e centrada no ser humano, a partir da colaboração de toda a sociedade, incluindo sociedade civil, indústria e governo (AI Governance Alliance et al, 2025).

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Tavares (2025) alerta que para maximizar o potencial da IA, devemos encontrar um equilíbrio entre:

[...] utilizar a IA de forma ética e justa para complementar, reconhecer e aprimorar as habilidades humanas, e ao mesmo tempo abordar as barreiras sistêmicas que impedem que seus benefícios cheguem a todos. Com ações deliberadas, a IA pode nos ajudar a construir um futuro onde o talento não seja limitado pelas circunstâncias, mas floresça por meio da colaboração entre a engenhosidade humana e o progresso tecnológico (FINANCE & DEVELOPMENT MAGAZINE, 2025).

IA é uma realidade e já faz parte de nossas vidas, do nosso dia a dia, mesmo que não percebamos ou que pareça fantasia de um futuro distante. Sabendo que é inevitável o seu avanço e tendo em mente as diretrizes propostas pelo relatório do FEM e o alerta de Tavares (2025), citado acima, cabe uma reflexão acerca do que  nós como membros da sociedade civil podemos fazer para que os impactos da IA generativa sejam positivos ou que, pelo menos, os impactos negativos sejam minimizados.

Veja algumas sugestões de uso responsável dos serviços de IA:

 

Notas de Rodapé

[1]It is immoral because it relies on addiction, surveillance, and manipulation of the user to deplete the user’s autonomy. The contract between the company and the user is immoral. It can also be plausibly argued that the contract is illegal under California law because it is contrary to good morals, is unconscionable, and is against public policy.

 

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