02 Julho/2024: 201 anos da Independência do Brasil, na Bahia – Figuras femininas históricas

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No cenário de revoluções ocorridas no final do século XVIII e início do século XIX, eclodiram movimentos favoráveis à independência do Brasil, ocorrendo conflitos entre àqueles partidários e sob ordens da Corte contra os portugueses apoiadores e nativos brasileiros, dentre estes destacaram-se algumas figuras femininas, que segundo alguns registros, tiveram atuação importante na luta pela libertação do Brasil da dominação portuguesa.

Ainda que em alguns casos, os registros históricos oficiais sejam escassos e/ou imprecisos, essas mulheres permanecem e são reverenciadas no imaginário popular e fazem parte da cultura brasileira, especialmente nas Comemorações de 02 de Julho, na Bahia. Consideradas figuras imponentes e resilientes, figuras representativas além do tempo, pois enfrentaram preconceitos, dificuldades e proibições para lutar pelo que acreditavam e defendiam.

Por isso, são referências atemporais de força e coragem, servindo de inspiração a fim de que outras gerações de mulheres também se sintam capazes de quebrar paradigmas e lutar por mudanças em suas respectivas sociedades e culturas.

 

A engajada Maria Quitéria de Jesus

 

Maria Quitéria nasceu em 27 de julho de 1792, no sítio do Liconzeiro, em São José de Itapororocas, freguesia de Nossa Senhora do Porto da Cachoeira (hoje Feira de Santana), situada a 100 km da capital soteropolitana. Maria foi batizada, aos seis anos, pelos próprios pais: o agricultor português Gonçalo Alves de Almeida e a mãe: Quitéria Maria de Jesus, na Capela de São Vicente. Órfã aos 10 anos, Maria se tornou cuidadora da irmã Josefa, à época com oito anos e do irmão Luís, com seis anos. Após a morte da mãe, o pai dela casou-se novamente e teve mais cinco filhas e um filho: Francisca, Tereza, Bernarda, Ana, Josefa e Manuel (Coelho, 2019). A madrasta de Maria Quitéria, tinha uma relação hostil com ela, porque esta contrariava o padrão social das moças, à época, pois Maria preferia brincar no sítio a ficar dentro de casa, a menina além de possuir uma personalidade independente, também era dotada de algumas habilidades dentre elas: a de caça e pesca e de manejo de armas (Campos, [20--?]).

Naquela época, em 1822, o Conselho Interino do Governo da Bahia recrutava voluntários combatentes favoráveis à Independência. Então, Maria Quitéria, aos 30 anos, pediu permissão ao pai para se alistar, porém lhe foi negada. Ajudada pela irmã Tereza Maria, cortou o cabelo, pegou emprestado o uniforme de seu cunhado, José Cordeiro de Medeiros, e disfarçou-se de homem no Exército, como soldado Medeiros (Campos, [20--?]).

Juntou-se ao batalhão “Voluntários do Príncipe Dom Pedro”, mas seu disfarce foi desvelado por seu pai. No entanto, o major do batalhão não permitiu que lhe desligassem do Exército, não só devido a à maioridade dela, pois já atingira 30 anos, mas também pela habilidade de manejar armas com segurança, além de ser disciplinada e ter comportamento exemplar, o que a fez ser promovida da artilharia para infantaria (Coelho, 2019).

Sendo ela mesma, trocou o uniforme por saias e adereços, estimulando o alistamento de outras mulheres, que aderiram às tropas e formaram um grupo comandado por Quitéria. Participou de vários combates, tais como: a defesa da Ilha da Maré, da Barra do Paraguaçu, de Itapuã e da Pituba. Mesmo declarada a Independência por D. Pedro, na Bahia as tropas portuguesas permaneceram combatendo, e Maria Quitéria e seu batalhão de mulheres travaram lutas na foz do rio Paraguaçu, único rio genuinamente baiano (Campos, [20--?]).

Ainda, a referida autora reportou que após a derrota das tropas portuguesas, em julho de 1823,Maria Quitéria foi promovida a cadete e reconhecida como heroína da Independência, recebendo a comenda de Dom Pedro I como “Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro” e sendo promovida a alferes de linha. Além dessas honrarias, D. Pedro também escreveu uma carta ao pai dela, ressaltando sua importância ao Brasil e pedindo que a perdoasse por fugir de casa.

Conforme Coelho (2019), Quitéria casou-se no religioso durante a guerra, com o soldado João José Luís, de quem ficou viúva. Decidiu retornar à região de Serra da Agulha, foi perdoada por seu pai e casou-se com o seu antigo namorado, o lavrador Gabriel Pereira de Brito, concebendo a filha Luiza Maria da Conceição. Com a morte do esposo, Quitéria, em 1834, se muda para Feira de Santana e sai do anonimato no pós-guerra. E em 22 de agosto de 1835, após a tentativa frustrada de realizar o inventário e receber parte da herança paterna, em 1843, desiste do processo e resolve morar em Salvador, vivendo apenas com o salário de Alferes.

Em 21 de agosto de 1853, aos 56 anos, e ainda no anonimato, falece devido a uma inflamação no fígado. Foi sepultada na Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento, no bairro de Nazaré (Coelho, 2019).

Despretensiosamente, Maria Quitéria, se torna um marco brasileiro da emancipação feminina, sendo condecorada patrona do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro. No centenário de sua morte, foi decretado pelo governo brasileiro, o Aviso 408 de 11 de maio de 1953, o qual ditava que a foto dela se tornasse pública nas repartições e unidades do Exército, a partir do dia 21 de agosto daquele ano.

O então presidente da República, Getúlio Vargas, no Decreto 32.999 (10/06/1953), destinou o valor de 450 mil cruzeiros para levantamento de um monumento em Salvador - BA para marcar o centenário da heroína brasileira. O Ministério da Guerra, no Decreto 35.005 (04/02/1954), autorizou cunhar a medalha cadete Maria Quitéria de Jesus a ser entregue a valorosos soldados (Coelho, 2019). 

A Mártir Joana Angélica de Jesus


Soteropolitana de família rica da aristocracia, nascida em 12 de dezembro de 1762, desde cedo manifestou inclinação religiosa, sendo apoiada pelos seus pais: José Tavares de Almeida e Catarina Maria da Silva. Aos 20 anos, foi aceita como noviça no Convento Nossa Senhora da Conceição da Lapa, no ano posterior tornou-se irmã consagrada (Veiga, 2022).

As mulheres religiosas e habitantes desse Convento, adotavam o modelo mundial patriarcal de reclusão, com cerca de 170 regras, onde as freiras concepcionistas (Pertencentes à Ordem da Imaculada Conceição) cumpriam os votos de confinamento: celibato, obediência, pobreza e castidade, buscando a aproximação e compreensão da “Verdade” (Santos, 2011).

Soares (2022), registrou que os conflitos da Revolução do Porto (Portugal) afetaram a política da província baiana, agitando o sentimento antilusitano e emancipatório, culminando com a nomeação do comandante português para a Guarda das Armas, gerando revolta e apedrejamento na procissão dos portugueses em Salvador. Configurado o cenário de guerra pela Independência da Bahia, em 19 de Fevereiro de 1822, os tiros chegaram ao Campo da Pólvora, quando os brasileiros, militares e civis, com pouco armamento e temendo os soldados portugueses, fugiram para as matas do Tororó.

Assim, os soldados e marinheiros das forças portuguesas, em parte embriagados, cometeram excessos, invadiram casas em perseguição aos brasileiros que escaparam do Quartel da Mouraria. Contudo não satisfeitos, desconfiados e imaginando que no Convento da Lapa, as religiosas abrigassem os fugitivos e escondessem armas, resolveram arrombar o portão e ao fazê-lo se depararam com a Madre Superiora Joana Angélica, com 60 anos, que os impediu de invadir o interior do Convento (Soares, 2022; Veiga, 2022).

Como abadessa, Joana permitiu que as internas fugissem pelo quintal e tentou proteger o convento e resguardar a integridade das noviças e freiras, ao impedir a invasão dos soldados ao claustro, o que era proibido aos homens. Um dos soldados desferiu-lhe um golpe de baioneta no ventre, com isso a madre caiu ensanguentada, não resistiu ao ferimento e faleceu no dia seguinte, em 20 de fevereiro de 1822.

Este assassinato repercutiu negativamente, pois aumentou a revolta contra os portugueses, e gerou comoção até na Capital Federal: o Rio de Janeiro, onde foi celebrada uma missa pelo 30º dia da morte de Maria Quitéria, que contou com a presença do Príncipe Regente, Dom Pedro e da Princesa Leopoldina, ambos portavam roupas de luto (Soares, 2022; Veiga, 2022).

Reverenciada como a primeira mártir na luta pela independência do Brasil, com forte significado cívico e religioso, vítima no cumprimento de seu dever e mártir da fé, foi citada pelo então nomeado Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, Dom Sergio da Rocha em 11/03/2020, como uma heroína “assassinada às portas do convento" (Veiga, 2022).

Atualmente, cogita-se a possibilidade de instauração de um processo canônico, solicitado em 2001, pelo Convento de Nossa Senhora da Conceição Lapa, onde se encontra o mausoléu de Joana Angélica, visando à beatificação de Joana Angélica de Jesus - O processo no qual se busca certificar a autenticidade , virtudes e o heroísmo, atrelados aos acontecimentos na defesa da fé e do Convento da Lapa, está em fase de pesquisas e análises em arquivos e bibliotecas portuguesas de Lisboa e Coimbra (Soares, 2022).

Única filha de um casal abastado em Salvador, conhecida por sua postura discreta, conselheira, vigária e com espírito de liderança, foi abadessa por duas gestões, no período compreendido entre 1814-1817 e 1820-1822. Diz-se que pela força e liberdade, preencheu espaços entre o passado e o futuro ao optar pela vida no monastério (Santos, 2011).

Santos (2011, p. 1945) citando Neco (2002), destacou que “[...] Se Joana Angélica era conhecida como a freira que morreu no Convento da Lapa e passou a fazer parte da História da Bahia, alguns historiadores refazem a sua imagem, destacando não só a sua participação com o testemunho de sacrifício da sua própria vida, mas também, a sua caracterização de mártir da fé [...]”.

 

A liberta Maria Felipa de Oliveira


Descendente de sudaneses, provavelmente nascida em 1799, na Rua da Gameleira. Morou na região de Beribeira e depois num casarão chamado "Convento", no Arraial da Ponta das Baleias, áreas integrantes da Ilha de Itaparica que abrigava pescadores, carpinteiros e marisqueiras - (Silveira, 2022).

Há escassos registros ou documentos históricos que atestem a existência dela e de seus feitos, que podem ser lenda ou realidade. A inexatidão e as circunstâncias do seu nascimento continuam incertos, desconhecendo a condição se era negra alforriada, uma escrava ou se nasceu livre (Kruschewsky, 2021).

Assim, Maria Felipa integra o imaginário popular, mantido pela tradição oral, as histórias sobre ela são contadas e cantadas no Recôncavo Baiano: mulher negra, marisqueira que trabalhava na indústria baleeira, ganhadeira (como liberta, prestava diversos serviços remunerados), adepta do clandestino candomblé, que trazia a ancestralidade, e capoeirista, conforme Damasceno (2021) e Silva (2022). Silveira (2022) citando Prata (2018), comentou que Maria Felipa impactava pelas suas características: alta, cabelos encaracolados, corpulenta e vigorosa, se vestia com batas brancas bordadas, saias rodadas, turbante, torço e chinelas, e quando lutava capoeira amarrava a saia nas pernas e rodopiava.

De acordo com a tradição oral, Maria Felipa, com 23-24 anos, teve destaque na resistência baiana pela independência, na defesa da Ilha de Itaparica. Conforme a tradição, Filipa se alistou na Campanha da Independência, que incluía índios, negros livres e escravizados - africanos e brasileiros e até alguns portugueses, favoráveis à independência e à resistência na ilha. Liderava um grupo de 40 pessoas composto por brancos brasileiros, alguns portugueses, indígenas e possivelmente mulheres, que monitoravam barcos, observando as praias, as matas, os caminhos e morros de Balaústre e Josefa com visão estratégica, posicionada próxima aos campos de guerra, de onde poderia identificar os portugueses que desciam dos barcos para saquear Itaparica. Essa mesma tradição indica que ela teria participado de combate direto, na batalha de 7 de janeiro (Damasceno, 2021; Silva, 2022).

Ainda, reportaram que nesse evento épico da surra, Felipa e suas companheiras com danças insinuantes, na praia, atraiam os militares para se lançar sobre eles com o molho de cansanção (gênero Cnidoscolus L.), com galhos repletos de espinhos e folhas urticantes, que esconderam sob os arbustos e que produz queimaduras dolorosas. Noutra versão, dizia-se que nas roupas largas, as mulheres esconderam os ramos comuns com flores e espinhos e ocultavam as peixeiras de trabalho.

Outro episódio foi o do incêndio de navios portugueses causado por tochas, lançadas de uma canoa conduzida por Maria Felipa e suas companheiras, acarretando, assim, perdas às tropas inimigas. Considera-se fato na tradição oral que Maria Felipa e suas lideradas obtiveram sucesso na missão de defender Itaparica, impedindo os portugueses de reabastecer os mantimentos durante o conflito (Damasceno, 2021; Correia, 2022).

Tendo existido ou não, Maria Felipa de Oliveira foi declarada, em 26 de julho de 2018, como “Heroína da Pátria Brasileira” pela Lei Federal nº 13.697, e teve o nome registrado no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, o qual se encontra no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, localizado em Brasília – DF (Silveira, 2022). Registra-se o falecimento dela, em 4 de julho de 1873, entre 73 e 74 anos.

Correia (2022), reportou que após um período de apagão, buscou-se comunicar o protagonismo de Maria Felipa, uma mulher negra e destemida, que com sua coragem lutou e marcou a história da Independência do Brasil. Apesar das citações pelos escritores Ubaldo Ribeiro e Xavier Marques, ela sobrevive na oralidade popular da Bahia, no imaginário heroico orgulhoso da população baiana. O livro publicado em 18 de setembro de 2010, na Biblioteca Juracy Magalhães Júnior, em Itaparica – BA, intitulado “Maria Felipa de Oliveira - Heroína da Independência da Bahia” (Editora Quarteto, 2010; 148 p.), foi resultado da pesquisa de oito anos da Profa. Eny Kleyde Vasconcelos Farias, do Núcleo de Interpretação do Patrimônio das Faculdades Olga Mettig.

“[...] Que outras Marias possam se sentir encorajadas, possíveis e grandes como Felipa, que tenham participação na sociedade vivendo uma emancipação plena sem serem invisibilizadas. Viva Maria Felipa de Oliveira. Viva as Marias que fazem o Brasil” (Correia, 2022).

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02 Julho/2024: 201 anos da Independência do Brasil, na Bahia – Figuras femininas históricas