Entrevista concedida pelo Prof. Dr. Heráclio Duarte Tavares sobre César Lattes. Entrevistado por Giulia Engel Accorsi.
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Part of Entrevista Prof. Dr. Heráclio Duarte Tavares
Entrevista concedida pelo Prof. Dr. Heráclio Duarte Tavares sobre César Lattes. Entrevistado por Giulia Engel Accorsi.
Data da entrevista: 13 de outubro de 2023.
Observações sobre o formato da entrevista: o entrevistado respondeu às perguntas em formato de texto. Absolutamente nenhuma das respostas foi alterada de qualquer modo pela entrevistadora, de forma que o texto que se segue consiste nas respostas do Prof. Tavares em formato original e integral.
Canal Ciência (CC): Sabemos que a descrição e as análises dos mésons pi envolveram diferentes pesquisadores. Quais foram as contribuições específicas de César Lattes para o conhecimento dessas partículas? Em outras palavras, o que diferenciou os esforços dele dos esforços dos demais cientistas?
Professor Doutor Heráclio Duarte Tavares (HT): César Lattes esteve no centro da investigação experimental dos mésons. Posso até arriscar que ele próprio foi o centro dessas investigações. É importante marcar, logo de início, que o méson não era visto diretamente, mas, sim, indiretamente. Para entendermos o porquê, tanto da centralidade de Lattes nesse processo bem como essa visão indireta dos mésons, é necessário compreendermos como a física experimental nuclear, e de partículas, que nasceu com o trabalho de Lattes, eram feitas nos anos 1940.
Ciência não é algo perfeito. Digo, a ciência se fundamenta em dados que servem como base para que os cientistas construam enunciados sobre como a realidade funciona. Na física, os dados são, via de regra, medidas de alguns aspectos específicos de fenômenos naturais ou de fenômenos provocados em laboratório. Essas medidas são feitas com instrumentos e as características dos dados produzidos estarão de acordo com a natureza do instrumento que os produziu. Se o instrumento produz sons e/ou move ponteiros que indicam quantidades de energia na passagem de partículas carregadas, como é o caso do contador Geiger Müller, os cientistas vão trabalhar com a quantidade desses sons em um intervalo de tempo e/ou com a intensidade de movimentação desse ponteiro, também em um intervalo de tempo.
Dito isso, a equipe da Universidade de Bristol, a qual Lattes ficou vinculado em 1946 e 1947, usou emulsões nucleares para registrar as passagens de partículas carregadas por sua estrutura. Quando uma partícula carregada, por exemplo, um próton, passava pela emulsão, ela deixava um rastro. Esse rastro tinha sua espessura, comprimento, intensidade da cor escura que produzia e direção medidas. Essas características do rastro guardam relação com a energia, com a massa e, consequentemente, com a identidade da partícula que o causou.
No geral, quem fazia o trabalho de análise desses rastros eram mulheres, que atuavam como “microscopistas” (esse ponto daria uma bela pesquisa sobre a divisão de tarefas e sua relação com os gêneros na ciência), e físicos recém-formados. E esse é um dos pontos importantes para entender o papel de Lattes no processo de identificação dos mésons. Através do microscópio, ou seja, usando a visão em um trabalho absolutamente extenuante fisicamente, uma parte específica do grupo de pesquisa do Laboratório de Física da Universidade de Bristol desenvolvia sua habilidade visual para identificar os detalhes dos rastros que cada uma das partículas carregadas deixava ao atravessar as emulsões nucleares.
Como Lattes era o físico recém-formado que mais atuava no trabalho de análise dos rastros, ao notar um que era diferente de todos os outros que conhecia, ele imediatamente considerou a possibilidade de estar diante de um vestígio causado por um méson, devido às características esperadas de sua massa e outras especificidades, que, desde 1935, eram refinadas teoricamente.
Agora estamos em condições de responder à pergunta. Boa formação, à época, muitos físicos que trabalhavam na área nuclear possuíam. O que diferenciou os esforços de Lattes foi o fato de ele ter desenvolvido uma habilidade visual para identificar traços causados por mésons antes do que qualquer outro físico no mundo. Isso foi possível porque, ao chegar à Universidade de Bristol em 1946, a ele foi dada a tarefa de regular (os cientistas dizem calibrar) a nova emulsão nuclear, o “novo” detector de partículas que acabara de chegar ao laboratório. Essa calibração foi feita através do estudo exaustivo de traços causados por diferentes partículas carregadas, o que lhe conferiu uma expertise visual nessa técnica que, em sua época, ninguém possuía. Em síntese, Lattes foi uma das primeiras pessoas no mundo que aprendeu como identificar o traço causado por mésons.
CC: Por que a descrição dos mésons pi foi tão importante e quais foram/são as aplicações das conclusões dos estudos sobre eles do ponto de vista mais prático?
HT: Os resultados da ciência de vanguarda não necessariamente possuem uma aplicação imediata. Eles podem ser entendidos como pequenas peças de um quebra-cabeça sem fim, e sem imagem definida, que tentamos montar.
A importância da observação experimental dos mésons em 1947 e 1948 se dá, basicamente, por um lado, porque foi a abertura para o mundo subnuclear, nível da matéria ainda mais elementar do que o dos prótons e nêutrons, criando a possibilidade, em termos de estrutura de pensamento, para que, por exemplo, os quarks, fossem cogitados anos depois. Por outro lado, a necessidade de instrumentos e tecnologia para produzi-los, detectá-los e observá-los possibilitou que, ao longo do tempo, alguns desses itens transpusessem a esfera do uso estritamente científico e fossem incorporados no nosso dia a dia.
Nas primeiras décadas pós-observação experimental dos mésons, os cientistas se dedicaram ao estudo de várias outras subpartículas e arranjos da matéria. Por conta de sua característica de massa, carga e energia de projeção por aceleradores, no final dos anos 1950, um dos físicos, colega de Lattes em Bristol, Peter Fowler, irradiou o méson pi negativo contra tecidos com tumores, causando interações com o intuito de eliminá-los. Esse é um dos exemplos que, de forma indireta, o trabalho pioneiro no universo das subpartículas que Lattes realizou se liga.
Alguns dos grandes aceleradores de partículas que conhecemos hoje, como o Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), pertencente à Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, mais conhecida por CERN, são derivados, grosso modo, do cíclotron que Lattes operou em Berkeley. Muitos dos princípios usados ainda são os mesmos, como o de controle magnético do feixe e das partículas geradas pós-colisão.
Nos anos 1940, o chefe do grupo de pesquisa de Lattes na Universidade de Berkeley, Eugene Gardner, criou um sistema de troca de informações entre os cientistas de seu laboratório que consistia em colar cartas que físicos de todo o mundo enviavam com sugestões de experiências, em ordem cronológica, no caderno de bancada usado por toda a equipe. Isso porque o cíclotron da Universidade de Berkeley era o mais poderoso do mundo e havia limitações de acesso a suas instalações. De todo modo, a necessidade de fazer circular ideias importantes levou Gardner a desenvolver esse sistema de troca de informações. Ao longo dos anos, a massa de dados produzidos por aceleradores de partículas aumentou significativamente, levando os cientistas a desenvolverem outros sistemas de troca de informações, como a base HTTP e HTML, criados no CERN, que teve a primeira página de Internet no mundo nos anos 1990.
Outro aspecto interessante é que, ao chegar a Berkeley, em 1948, e ter uma equipe de engenheiros e físicos focada somente no bom funcionamento do acelerador em detrimento da análise dos dados que ele produzia, Lattes atuou tão e somente como usuário do tempo de máquina, explorando ao máximo sua potência criativa e dando forma à figura de “usuário”, prática adotada até hoje em vários laboratórios pelo mundo.
Desta forma, é possível perceber que o trabalho de Lattes forneceu muitas premissas e algumas práticas científicas que outras pesquisas fizeram uso anos depois. Estas, diante de outras condições e necessidades, transformaram alguns de seus resultados em tecnologia com usos, digamos, mais evidentes para a sociedade.
Se entendermos a realidade como um quebra-cabeça, por mais que tenhamos a pretensão de montá-lo por inteiro, conseguiremos encaixar apenas algumas pequenas partes. Ciência é uma forma sistematizada, que usa linguagem e operações lógicas, de se montar esse quebra-cabeça. Algumas pessoas vão notar, inclusive, que as imagens desse quebra-cabeça, com o tempo ou dependo da sociedade que o olha, mudam e que, no limite, para algumas sociedades sequer há quebra-cabeça.
CC: Como já mencionado, os estudos sobre os mésons pi envolveram diferentes pesquisadores. Mas o Prêmio Nobel que deles resultou laureou apenas um dos cientistas - o inglês Cecil Powell. Em diversas ocasiões, o Prêmio Nobel foi dividido entre dois ou mais pesquisadores - aliás, atualmente isso tem acontecido bastante. Você poderia comentar os principais fatores que contribuíram para que os nomes de Lattes e Giuseppe Occhialini fossem excluídos da premiação?
HT: Antes de tudo, é importante entendermos que a premiação do Nobel, para além de seu caráter científico, possui uma dimensão política. Seus ganhadores assumem posições de representação e passam a ter menos tempo para fazer ciência. O caso da concessão do prêmio Nobel de física a Cecil Powell, em 1950, é emblemático porque mostra que quem foi valorizado foi o chefe do laboratório que concebeu o programa de pesquisa que, por sua vez, mesmo sem intenção explícita, levou à identificação dos mésons, e não o cientista que a realizou de fato.
É inegável que quase todo o programa de pesquisa que Lattes executou havia sido pensado por Powell. Entretanto, produzir e/ou procurar por mésons estava nos planos de nenhum dos dois até o segundo semestre de 1946. Powell estava interessado em estudar processos de desintegração de partículas usando as emulsões nucleares como detectores. Lattes, ao enviar emulsões carregadas com boro ao monte Chacaltaya, em La Paz, na Bolívia, no segundo semestre de 1946, queria estudar nêutrons cósmicos. Contudo, a análise dessas emulsões enviadas a Chacaltaya revelou que elas haviam sido atingidas por mésons.
O que Powell não previu foi que a pessoa que ficasse à frente da realização de seu programa desenvolveria, a partir do manejo do conjunto instrumental (microscópio, emulsão e colisores) que ele disponibilizara no laboratório que liderava na Universidade de Bristol, uma capacidade de observação que a tornaria “mais apta”, por certo tempo, para analisar as evidências que as emulsões forneciam. Isso porque essa análise consistia na realização de medidas de rastros e exaustivas contagens de grãos, por áreas especificas, o que obrigava a pessoa a ficar observando formas ao microscópio por horas.
Powell quase não trabalhava ao microscópio analisando os detectores (as emulsões), preferindo atuar como um gestor científico. Essa situação, principalmente após a identificação dos mésons, incomodava Lattes, que ironizava o fato de Powell não realizar a parte rotineira do trabalho de laboratório, conforme cartas ao físico brasileiro José Leite Lopes, recentemente trazidas à luz, revelam. Parece-me que toda a questão em torno do Nobel de 1950, no que diz respeito ao trabalho científico, é considerar se quem devia ganhá-lo foi quem executou a pesquisa ou quem a arquitetou, construiu os instrumentos, viabilizou a execução dos estudos etc.
Detalhe importante é que no discurso do mestre de cerimônias de apresentação da premiação de Powell, em 1950, todo o trabalho de Lattes é narrado na voz passiva, como se o trabalho tivesse sido feito sem alguém o executando, extraindo do físico brasileiro a condução da agência de toda pesquisa. Os motivos da apresentação de Powell na cerimônia de entrega do Nobel ter sido feito dessa forma ainda são desconhecidos.
CC: Depois da repercussão dos resultados das pesquisas para as quais Lattes contribuiu de forma singular, sua figura passou a ser um símbolo da ciência nacional. O senhor poderia falar um pouco sobre esse contexto?
HT: De início, é importante salientar que sua pergunta é sobre o período histórico o qual boa parte da estrutura ligada à produção industrial nacional foi criada pelo Estado brasileiro. Petrobrás, Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Sistema S, Leis trabalhistas e outras instituições, juntamente com a oferta de condições para nosso desenvolvimento econômico (seguindo o modelo capitalista), surgiram ao longo dos Governos Vargas.
Nesse período, precedida por inclinações ditatoriais que alcançaram o Brasil, passamos por uma Guerra mundial que, de certa forma, atingiu as poucas universidades brasileiras que existiam. A Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade do Distrito Federal (UDF) haviam sido criadas a menos de uma década e formavam seus quadros docentes com professores de origem alemã, italiana, francesa. Quando o Brasil declarou guerra aos países do Eixo, em 1941, alguns deles se tornaram inimigos do Estado e tiveram que abandonar nosso país. Outros, como é o caso de Giuseppe Occhialini, viveram, literalmente, escondidos no Brasil.
A comunidade científica brasileira nos anos 1930 não era como conhecemos hoje. Ocorreram iniciativas de pressão para a organização da prática científica, é verdade, capitaneadas por grupos ligados às áreas da biologia e saúde a partir de interesses econômicos do Estado de São Paulo, o que era algo ainda bem distante de alcançar a amplitude e complexidade cultural que nosso território possui. Todavia, temos que reconhecer que ocorreram ações isoladas de representações de indústrias e empresas particulares, que concediam bolsas de estudo a jovens de destaque científico para que se dirigissem aos poucos centros de estudo existentes no Brasil. Isso era feito sem a regularidade e dimensão que a ciência precisa ter para alcançar resultados relevantes.
Agências estrangeiras de fomento à pesquisa, como, por exemplo, a Rockefeller, atuavam concedendo alguma verba a cientistas na América do Sul, inclusive a brasileiros. Esse apoio possuía forte cunho político com os cientistas estadunidenses atuando como verdadeiros diplomatas em busca de suporte às posições políticas de seu país. O próprio Lattes, quando detectou os mésons produzidos por aceleradores na Universidade de Berkeley, nos EUA, gozava do apoio financeiro da Rockefeller.
Em resumo, quando Lattes alcançou seus resultados de impacto em 1947 e 1948, a pergunta pertinente que, aos poucos, começamos a fazer era: se não há um órgão brasileiro de fomento à ciência e as universidades são incipientes, que estrutura ou centro de pesquisa o formou? A resposta a essa pergunta está no fato de a USP ter se preocupado em trazer para o Brasil para criar o seu Departamento de Física um cientista relativamente jovem, com passagens por centros de pesquisa já consolidados, possuindo e, dessa forma, podendo replicar em São Paulo o habitus da comunidade científica internacional. Foi assim que Gleb Wataghin, russo de nascimento e italiano por escolha, veio para o Brasil e foi o mentor de Lattes.
Voltando aos mésons, a fama repentina que Lattes alcançou com seus resultados derivou de vários fatores. Nos EUA, por exemplo, ele foi capa de revistas, deu inúmeras entrevistas e recebeu convites para lecionar em universidades na costa leste e oeste. Todas essas ações de divulgação foram planejadas por Ernest Lawrence, chefe do Laboratório de física da Universidade de Berkeley, no qual Lattes trabalhava. A ideia de Lawrence era que através da ampla circulação social dos resultados exitosos alcançados pelo físico brasileiro o Governo dos EUA e a iniciativa privada continuassem a fomentar a construção de grandes aceleradores de partículas, área na qual atuava.
Já no Brasil, José Leite Lopes articulou junto a jornais que davam espaço à ciência, como o A Manhã e seu suplemento “Ciência para todos”, reportagens especiais sobre o trabalho de Lattes. Programas de rádio e revistas semanais ajudaram a construir sua fama, explorada de maneira a atender um propósito específico de institucionalização federal do fomento à ciência. Junto a isso, a percepção do Governo brasileiro no imediato pós-Guerra, cuja lembrança do uso militar da energia nuclear era recente, era a de que o Brasil não podia permanecer alheio ao incentivo sistematizado à ciência. Não é à toa que o CNPq foi criado em 1951, com o trabalho de Lattes figurando como justificativa em seu projeto de Lei e com ele compondo o primeiro comitê de assessoramento do órgão.
Mais do que símbolo, eu diria que o trabalho de Lattes foi a energia que impulsionou o surgimento da estrutura de fomento à ciência no Brasil.
CC: Em sua visão como historiador das ciências e como pesquisador que se debruçou amplamente sobre a trajetória de Lattes, o que precisamos ter em mente quando olhamos para a vida de um cientista com a projeção dele? Quero dizer, muitas pessoas, quando conhecem a história de Lattes e de suas contribuições científicas, acabam por concluir que ele era um ser humano especial, com habilidades intelectuais acima da média - um verdadeiro gênio. O quanto essa imagem é de fato realista e quais são os problemas de se construir uma visão como essa sobre certos/as cientistas?
HT: Uma das coisas fundamentais a se ter em mente quando olhamos para figuras de destaque em suas áreas de atuação, seja na ciência, no esporte, na arte etc., é que o fator dedicação é imprescindível, mas não é tudo.
Lattes foi extremamente dedicado ao que fazia. Desde sua graduação, passando por diferentes laboratórios na Inglaterra e nos EUA, ele respirava ciência. Não é difícil encontrar em suas cartas relatos de trabalho ao longo da madrugada e declarações explícitas de prazer por sua profissão. Percebe-se com facilidade, ao analisar suas evidências, que ele era um apaixonado pelo que fazia.
Todavia, para que as pessoas possam cultivar suas potencialidades, talentos e paixões, no mundo em que vivemos, é necessária a existência de estruturas que as incentive simbolicamente, por um lado, e que as suportem materialmente, por outro. Usualmente, as famílias e pessoas próximas atendem ao primeiro quesito. Se, em sua fase inicial de vida, a pessoa possui em seu núcleo familiar ou círculo mais próximo, como o de professores da formação básica, referências de práticas virtuosas, as condições para estimular potências, sejam elas de quaisquer tipos, estão dadas. Se, além do estímulo simbólico, esse ao redor oferece as condições materiais adequadas, temos a criação de circunstâncias para que talentos aflorem e alcançamos o segundo quesito apontado anteriormente.
Foi o pai de Lattes que comentou com seu cliente de banco, Gleb Wataghin, professor de física da USP, que um de seus filhos, então com 16 anos de idade, tinha facilidade com matemática. Bastou uma conversa com o rapaz para que Wataghin o convencesse a realizar os exames para a USP. Isso em uma época em que ser físico, assim como ser artista, assegurava o sustento financeiro de ninguém.
Lattes esteve em condições de realizar seus feitos porque teve tanto as condições simbólicas como materiais ao seu alcance. Família estruturada simbolicamente e materialmente, excelente escola, universidade criada com professores que combinavam ensino e pesquisa, incentivo de agências e empresas privadas internacionais. Sim. É Fato que Lattes desenvolveu uma intuição experimental como nenhum outro físico de sua época. Ele construiu alguns dos instrumentos que usou na USP, concebeu arranjos experimentais em aceleradores nos EUA e na Inglaterra e foi elemento central no processo de investigação que abriu as portas para um novo mundo na física. Quando olhamos para o processo histórico no qual César Lattes estava inserido, percebemos que ele possuía talento e vontade desde a tenra idade. Entretanto, vemos que ele somente esteve em condições de explorá-los por conta das estruturas ao seu redor. E se essas estruturas fossem oferecidas a todos?
Em cartas escritas assim que deixou o Brasil, em fevereiro de 1946, Lattes revela que um de seus maiores desejos era que todos brasileiros tivessem acesso ao conhecimento científico de qualidade. Para isso, ele abriria mão de posições em laboratórios e universidades bem estruturados no exterior e voltaria para o Brasil. Foi exatamente isso que ele fez em 1949, quando era reconhecido mundialmente por seu trabalho com os mésons e tinha convites de trabalho em laboratórios de todo o mundo. Ao voltar para o Brasil, ele deixou, um pouco, de ser cientista para se tornar o símbolo necessário para que a oferta da estrutura material a quem quisesse fazer ciência surgisse em nosso país.
Um dos maiores problemas da visão equivocada da genialidade é que ela reduz as ações ao nível individual, às vezes acompanhada da ideia de mérito, o que encobre toda a circunstância e processos históricos que dizem respeito à sociedade nas quais os sujeitos estão inseridos. As genialidades só afloram se, em algum momento, houver estruturas que as cultivem.