Depoimento Maria Elisa Shellard e Entrevista Cássio Leite Vieira
Midia
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Depoimento de Maria Elisa Shellard na ocasião de lançamento do livro Ciência para o Brasil: Ronald Cintra Shellard (1948-2021), pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), em evento no Núcleo de Informação C&T e Biblioteca (NIB), no Edifício César Lattes do CBPF, no Rio de Janeiro (RJ):
Senhor Ministro Paulo Alvim, senhor diretor do CBPF, Márcio Portes de Albuquerque, amigas e amigos. Boa tarde a todos e todas. E muito obrigada pela presença.
Este foi um ano bastante difícil e de muitas incertezas. Viver sem o Roni ao meu lado foi uma tarefa árdua e com muitos momentos de imensa saudade e de tristeza. Tive a grande sorte de ter vivido ao lado dele por 25 anos – os melhores da minha vida.
Ele era uma pessoa notável, de grande generosidade, sabedoria e com vasta alegria de viver. Era um homem feliz e realizado. Em seus últimos dias de vida, chegou a me dizer que, caso não conseguisse vencer a doença, iria com tranquilidade, porque considerava ter tido uma vida plena. Amava sua profissão. Tudo o que ele fez pela ciência e o legado que deixou foram construídos com base na verdade e dedicação.
Como marido, pai, avô e amigo, ele, com certeza, foi nota 10 – e com louvor. Ele sempre estará conosco, e, certamente, sempre fará muita falta.
Às vezes, me sinto perdida sem os conselhos do Roni. Porém, devo confessar que, em certas ocasiões, suas palavras conciliadoras me deixavam irritada, mas, pouco depois, eu me dava conta de que, mais uma vez, ele tinha razão.
Hoje, pela primeira vez, depois de tantas homenagens prestadas ao Roni, fiquei com vontade de falar isso, porque considero este livro a melhor homenagem que poderia ter sido feita ao Roni.
Portanto, senhor Ministro Paulo Alvim, gostaria de agradecer ao senhor, de todo o coração, seu empenho em tornar esse projeto realidade. E fica também aqui minha gratidão ao CBPF e sua equipe – principalmente, ao amigo Márcio, que me deu a mão nos piores momentos deste ano para mim.
Além de sua importância cientifica, este livro também tem um grande significado emocional. Explico: este projeto foi desenvolvido por grandes profissionais que, por sua vez, também eram amigos muito caros ao Roni e a mim! A obra é fruto de uma operação casada de competência e imensa vontade de eternizar a vida e obra de um grande amigo.
Agradeço ao jornalista Cássio Leite Vieira e ao professor Antonio Augusto Passos Videira, editores do livro, bem como aos designers Cláudia Fleury e Henrique Viviane, responsáveis pelo projeto gráfico da obra – todos queridos amigos meus. Tive a grande honra e oportunidade de fazer as ilustrações para o livro, o que me encheu de alegria e satisfação.
Mais uma vez, obrigada pela presença de todos e todas. E boa leitura.
Entrevista sobre Ronald Shellard, concedida por Cássio Leite Vieira, jornalista, em abril/2023.
Em sua opinião, que visão Ronald Shellard possuía sobre ciência e tecnologia (processo de produção do conhecimento em C&T, papel de C&T no desenvolvimento nacional, engajamento em políticas públicas, divulgação científica, sugestões para a melhoria e enfrentamento dos desafios pelos quais passa a ciência brasileira etc.)?
Em minha opinião, acho que a primeira pergunta que deveríamos fazer sobre Ronald Cintra Shellard, ex-diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), é a seguinte: Por que um físico experimental de altas energias – área em que a autoria dos resultados é ‘diluída’, com milhares de cientistas assinando um artigo – recebeu tantas homenagens depois de sua morte – bem mais do que cientistas mais renomados e citados do que ele?
A resposta, acredito, é multifatorial. Primeiramente, porque Shellard sempre acreditou que a ciência como um todo (e não só a física) deveria ser uma política de estado no Brasil, ou seja, fazer parte, como os historiadores da ciência dizem, de um projeto de nação.
Ele acreditava piamente que a ciência poderia – e deveria – ser aplicada na resolução dos grandes problemas brasileiros, do saneamento básico e transportes a violência e habitação.
Mas poderíamos contrapor esse argumento com o seguinte: grande parte da comunidade científica pensa assim.
Então, por que Shellard?
Acho que a resposta está no fato de ele ter sempre posto em prática, à medida de seu alcance, essa crença pessoal. E, para isso, foi preciso fazer política – aqui, não no sentido pejorativo que o termo tem atualmente –, estabelecer relações profissionais e de amizade em vários níveis e esferas. Shellard fez isso, sempre em nome do bem-estar do CBPF e da própria ciência no Brasil.
Praticou, arrisco dizer, uma política científica apartidária – isso o levou a bons relacionamentos com ministros de Ciência e Tecnologia no Brasil. Era sempre consultado pela esfera federal – e sou testemunha disso – sobre grandes projetos, iniciativas e ações de ciência e tecnologia. Suas opiniões e sugestões tornaram-se importantes para autoridades em Brasília – a ponto de o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) encomendar um livro em sua homenagem depois de sua morte, Ciência para o Brasil – Ronald Cintra Shellard (1948-2021). Nessa obra, está larga coletânea de textos que ele escreveu sobre política científica, por exemplo.
Acrescento outro tópico à resposta. Shellard sempre se destacou como bom administrador da ciência. Essa atividade é algo pouco valorizado na comunidade científica do Brasil, mas essencial para a prática científica – afinal, administrar ciência, com base, por exemplo, na proposição e no gerenciamento de projetos, é tão importante quanto a prática teórica ou experimental dessa cultura – já batizada a mais importante do século passado (e deste, sem dúvida).
Shellard reconhecia que a inserção internacional da ciência brasileira era de extrema importância; portanto, insistentemente, estabeleceu redes com colegas e experimentos no exterior, bem como, sempre que possível, ocupou cargos de liderança em colaborações internacionais. Tudo em nome da visibilidade da ciência praticada no Brasil, país que tem ainda participação provinciana no que costumo designar geopolítica.
Nesse sentido, foi, por exemplo, pioneiro na proposição de participação do Brasil como país associado do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN) – não chegou a ver a concretização desse sonho, que ocorreu meses depois de sua morte.
Ele trazia apreço em especial pelo desenvolvimento de instrumentação científica no Brasil, por saber que, dessa área de pesquisa brotariam não só resultados científicos importantes, mas também aqueles que poderiam estreitar as relações entre academia e indústria – outra de suas preocupações constantes.
A paixão dele era o projeto de detectores, área em que o Brasil ainda se encontra num tipo de infância, se comparado com países com tradição científica.
Por fim, agrego elemento extra científico para tentar responder à questão sobre as homenagens: as ações de Shellard, tanto profissionais quanto pessoais, sempre foram marcadas pela generosidade – matéria-prima rara, a meu ver. Sempre estendeu a mão para os que buscavam sua ajuda, não importando qual fosse o pedido em questão. Ajudava no limite de suas capacidades e possibilidades. Nele, encontrávamos generosidade. Sempre em excesso.
Outro aspecto marcante de Shellard: o reconhecimento de que divulgar ciência para o grande público é de extrema importância. Nesse quesito, ele, mais uma vez, pôs em prática o que defendia: no CBPF, reorganizou a área de comunicações; apoiou a publicação (em papel e em versão eletrônica) de livros e panfletos – sempre distribuídos gratuitamente; recebeu com entusiasmo o projeto do chamado Grafite da Ciência, que ocupa toda a extensão de um dos muros externos do CBPF – e, talvez, a maior manifestação artística voltada exclusivamente para a ciência e tecnologia no mundo.
Também foi autor prolífico de textos de divulgação científica para revistas da área, como a Ciência Hoje, publicada atualmente pelo Instituto Ciência Hoje. Boa parte da coletânea de seus textos no livro em sua homenagem versa sobre divulgação de resultados e projetos na área de física de partículas. Sabia calibrar a linguagem para o grande público, eliminando dos textos tecnicismos e preciosismos ininteligíveis para a maioria das pessoas.
Como você descreve as relações interpessoais de Ronald Shellard (personalidade, visão de mundo mais ampla, valores, militância, frases marcantes etc.)?
Como disse, a generosidade foi traço marcante de sua personalidade. Shellard era também leitor voraz, e os temas dessas leituras cobriam espectro amplo, de romances e ensaios a filosofia e ciência.
Era assinante de publicações prestigiosas. Cito duas delas: The Economist e New York Review of Books. A biblioteca pessoal dele era vasta – a ponto de livros se acumularem sobre cadeiras e em pilhas no chão, por causa de estantes já repletas.
Shellard nasceu em família paulistana tradicional de classe média alta. Estudou em bons colégios particulares. Cursou cerca de três anos de engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, graduação que, não finalizada, foi trocada pela de física, na mesma universidade, onde se formou bacharel em 1970, partindo em seguida para a pós-graduação.
Colegas da graduação em física alegam que Shellard tinha uma ‘postura social’ em relação aos problemas sociais e políticos brasileiros, mas nunca chegou a ser militante, no sentido estrito do termo – mesmo tendo cursado física nos anos conhecidos como ‘Maio de 68’, nos quais reinou a efervescência da política universitária, replicando ambiente que ocorria no mesmo período na França.
Uma diversidade de assuntos lhe interessava, mas, acredito, sempre mirou o mundo pela perspectiva da ciência – para ele, como dissemos, essencial para o desenvolvimento do país e bem-estar de sua população.
No livro em sua homenagem, há passagens e frases marcantes (algumas contundentes) sobre a ciência no Brasil. Gosto particularmente de uma, que foi título de um de seus textos: “Sobre ciência, no Brasil, nem o óbvio é óbvio”. Diz muito sobre como é, infelizmente, conduzida a política científica no país. Seus oito textos para serem lidos no Senado – algo que, penso, nunca ocorreu – são peça ímpar sobre a importância das chamadas Unidades Vinculadas (ou Unidades de Pesquisa) do MCTI.
Quais as maiores contribuições de Ronald Shellard para a pesquisa nacional?
Como disse, Shellard era um físico experimental na área de altas energias, área em que o trabalho científico é essencialmente comunitário e, por consequência, na qual autoria é ‘diluída’ – os únicos destaques são, geralmente, para os chefes do projeto.
É preciso dizer que Shellard iniciou a carreira como físico teórico, trocando-a pela de experimental no fim da década de 1980, quando foi seduzido por aquilo que viu no CERN. A partir daí, sempre trabalhou em colaborações internacionais – por vezes, em mais de uma simultaneamente.
Se tivéssemos que pinçar apenas uma de suas grandes contribuições científicas, provavelmente, ela seria o fato de ele ter sido um dos fundadores do Observatório de Raios Cósmicos Pierre Auger, em meados da década de 1990 – ainda hoje, o maior experimento na área, ocupando cerca de 3 mil km2 dos pampas argentinos, ao pé das cordilheira dos Andes. O Auger, como costuma ser chamada a colaboração, deu muita visibilidade à física (e à ciência) do Brasil. Em minha opinião, representou salto quantitativo e qualitativo para a física experimental feita no Brasil.
Shellard e colegas foram responsáveis por ampla participação do Brasil nesse projeto internacional, que estreitou – como Shellard sempre defendeu – laços com a indústria brasileira, por meio da fabricação de equipamentos (baterias e tanques de água, por exemplo), adequados ao experimento.
Pouco antes de morrer, montou com colegas brasileiros e estrangeiros um projeto ao qual dedicou anos: o SWGO (sigla, em inglês, para Observatório Meridional de Campo Amplo para Raios Gama), ainda em construção. Foi mais um de seus legados científicos.
Como Shellard era percebido por seus pares, alunos, colegas de trabalho, em relação ao prestígio, legitimidade e respeito nos diferentes ambientes profissionais?
As homenagens que Shellard recebeu depois de sua morte são a maior prova do respeito que seus pares nutriam por ele. Acredito que o prestígio dele começou a ganhar momento a partir de sua participação no Observatório Auger, mas recebeu maior impulso quando ele assumiu o primeiro mandato como diretor do CBPF.
Nesse cargo, tornou-se referência para outros colegas diretores das chamadas Unidades Vinculadas ao MCTI. Ele atuou como um tipo de porta-voz dos anseios e das demandas desses institutos de pesquisa, liderando campanhas para a valorização do papel dessas instituições.
Para isso, foi várias vezes ao Congresso Nacional, a fim de falar com políticos e chegou a discursar no Senado sobre a importância da pesquisa feita nessas unidades.
Shellard costumava dizer que o principal papel das Unidades Vinculadas era o de ser a infraestrutura para a pesquisa nacional em vários campos do conhecimento – o CBPF, por exemplo, tem vários laboratórios multiusuários, os quais podem ser usados por pesquisadores e pesquisadoras de outras instituições, bastando para isso submeter projeto a uma comissão.
Quais as contribuições de Shellard para a formação de novas gerações de cientistas e/ou pesquisadores?
Shellard sempre gostou de orientar e dar aulas. Em minha opinião, na última década, não orientou um maior número de estudantes por causa da falta de tempo, devido aos cargos de chefia que ocupava.
Mas ele sempre enfatizava que ciência era atividade de jovens. No CBPF, sempre fazia questão de que jovens pós-docs ou pós-graduando(a)s tivessem papel ativo em várias atividades do instituto.
Também incentivou, como pôde, a participação de mulheres na física, sempre as encorajando e promovendo ambiente igualitário no CBPF.
Quais foram os maiores desafios encontrados durante a trajetória acadêmica de Shellard?
Creio que um dos grandes desafios que Shellard enfrentou, foi o de sua transformação de teórico em experimental. Isso se deu em um momento em que a participação do Brasil em colaborações internacionais da área de altas energias dava seus primeiros passos, em meados da década de 1980, quando houve convênio entre o país e o Laboratório Fermi (Fermilab), dos EUA.
Shellard, acredito, foi o primeiro físico brasileiro a passar mais tempo no CERN. Viu a colaboração com esse laboratório europeu como grande oportunidade para a física do Brasil. Mas se defrontou com o ceticismo de seus pares no país, por ser atividade de pesquisa tida como ‘cara’.
Penso que ele nunca desistiu de concretizar essa participação – a qual, como disse, acabou se concretizando pouco depois de sua morte. Foi uma batalha de décadas, podemos dizer.
Como Ronald Shellard impactou a ciência nacional e o que representou na sua percepção?
Acho que a resposta para esta pergunta foi dada anteriormente, mas vale repeti-la aqui. Shellard sempre viu na ciência um instrumento não só para o bem-estar e riqueza do povo brasileiro, mas também como solução para os grandes problemas – ou deveríamos dizer mazelas? – do país.
Muitos defendiam – e defendem – ideias semelhantes, mas Shellard, a seu modo e com as ferramentas a ele disponíveis, as pôs em prática, por meio da política institucional e científica; do estabelecimento de conexões com pares no Brasil e exterior; da proposição de projetos amplos; da fundação de institutos, como o Instituto da Metrópole, sociedade civil voltada para o uso da ciência na solução de problemas urbanos; do bom relacionamento que sempre tentou manter com os gestores de Brasília. Shellard, nesse sentido, deixou a palavra de lado e passou à ação.
Mas arrisco dizer, que muito de seu impacto na ciência nacional se deveu ao fato de Shellard ser percebido por seu pares como o que realmente era: pessoa agradável, atenciosa, educada, disposta sempre a ouvir – mesmo opiniões diametralmente opostas às suas. E, por último, mas não menos importante, pelo fato de ter sido uma pessoa generosa. Enfim, uma boa pessoa.
Ciência é mais do que simplesmente ciência: é uma cultura multifacetada e humana em sua essência. E, em minha opinião, essas características da pessoa se somaram àquelas do pesquisador, e o resultado dessa adição, tudo indica, foi bem-sucedido. Daí, a importância de Shellard para a ciência no Brasil.