O fazer poético à luz da Ciência
Midia
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Buscou-se alinhavar uma composição sem dissociar ciência e poesia, em alusão ao Dia Internacional da Poesia, comemorado em 21 de março; data comemorativa instituída em 16 de novembro de 1999, na 30ª Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), tendo como questão norteadora: Há interseção entre ambas, são convergentes e/ou divergentes? Como desafio considerou-se o pressuposto de que ambas caminham juntas, “par e passo”, e que não podemos dissociar uma da outra.
Considerando a premissa de que a ciência está em tudo e que a linguagem permeia todas as esferas do conhecimento, apesar da diversidade linguística, pretende-se abordar o poder da linguagem e sua relação com a ciência sob o ponto de vista real, dedutivo, imaginativo, bem como contextualizá-la em diversos momentos históricos.
Os fenômenos científicos sempre fascinaram poetas e escritores, foram e ainda são decantados em prosa e poesia. Os escritores, buscam em suas obras: a multiplicidade temática, com métrica ou não, a livre criação, sem dissociá-los do conteúdo e da forma e a subjetividade, para isso utilizam-se de recursos linguísticos, elementos inerentes ao fazer poético.
Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira – mas já tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum! (Monteiro Lobato)
Cada nova descoberta científica, cada nova tecnologia, acarreta novas formas linguísticas e novas metáforas. Não podemos dissociar, nem tampouco minimizar o efeito de uma para outra. Tanto a ciência quanto a literatura mostram o mundo de forma plural, e já aproveitando para parafrasear o compositor Milton Nascimento, a poesia tem que ir aonde a ciência está e vice-versa. E segundo o dramaturgo e romancista Bernard Shaw: “Alguns homens vêm as coisas como são e perguntam: por quê? Eu vejo as coisas como não são e pergunto: por que não?
Sabino (2006), ressaltou em sua dissertação, que a poética científica tem sido esparsamente tratada nos livros de história da literatura, embora seja constituída como um movimento literário de vanguarda que propunha uma nova mentalidade racionalista, antagônica, relativista, materialista, naturalista, anti-metafísica e anti-teológica, contrapondo-se aos ideais do romantismo[1]. Destacou que à medida que as ciências da natureza se propagavam, influíam nas ciências do homem, instaurando a relatividade, repelindo o sobrenatural, o sentimento de temor e o mistério.
Ainda reportou sobre a controvérsia surgida da possibilidade de se relacionar ciência e poesia, fato este contradito pelos defensores da tese de que a compilação poética era similar ao processo científico, consequência das descobertas, avanços tecnológicos, novos conhecimentos sobre organismos vivos, elementos que presentes à poesia aguçavam a verve poética da época.
No Brasil, a poesia científica surgiu na Faculdade de Direito, centro da Escola do Recife, na segunda metade do século XIX, onde perdurou até 1914, praticada concomitantemente na França, Bélgica, Espanha, Portugal e México, e só posteriormente, a poesia filosófico-científica alastrou-se para o Rio Grande do Sul (SABINO, 2006).
Ainda, o referido autor ressalvou que, como proposta estética, influenciada pelo Positivismo[2], foi considerada duradoura e significativa, perpassando todos os setores da atividade artística e intelectual, a qual serviu também como base teórica à implantação da República – a poética científica também influenciou a inserção da frase “ordem e progresso” da bandeira brasileira.
Martins Jr. (1883), afirmou que a poesia estivera sempre ligada à filosofia e à ciência, pois seus autores refletiam o “meio afetivo e intelectual” no qual viveram, porque apesar do teor realista, a poética científica não desconsidera a interioridade e a subjetividade do sujeito.
Castro (s.d.)[3], reportou como ícone brasileiro que associava ciência, natureza e poesia, Augusto dos Anjos, que em sua obra única “EU” (1912), foi pioneiro ao desafiar a tradição, por tratar temas como “a decrepitude dos cadáveres, os vermes, a prostituta, as substâncias químicas que compõem o corpo humano e até mesmo a descrição quase macabra da decomposição da matéria”, utilizou-se de um vocabulário em desconformidade ao cânone literário vigente, como exemplificado pelo poema “Psicologia do vencido”, conforme citação na sequência:
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há - de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Guimarães (s.d.), apregoou que Aluísio Azevedo foi influenciado pela literatura dos escritores francês Émile Zola e do português Eça de Queirós, que nos seus romances de tese descrevia e analisava a sociedade à luz do determinismo social e do materialismo positivista, tendências científicas vigentes no final do século XIX, as quais tratavam o ser humano como produto do meio e guiado por instintos animalescos.
Conforme Illingworth (2019), ciência e poesia não caminharam sempre juntas, e para isso citou como exemplo o médico e poeta inglês John Keats (1819), cujo poema Lamia escreveu que “...A filosofia podará as asas de um Anjo, decifrará os mistérios por régua e linha...” (tradução livre), e ao mesmo tempo, criticava as ciências naturais, porque elas subtraíam o encanto da poesia.
Exemplificando com Ada Lovelace, filha do poeta romântico Lord Byron, que foi exilado na Grécia, em suspeição de incesto. A mãe de Ada, Anabela, preocupada com os rumos que a filha poderia tomar e temendo que ela se tornasse uma poeta (maluca, malvada e perigosa), houve por bem dispensar-lhe a melhor educação cientifica, e com esse intuito apresentou-a ao matemático inglês Charles Babbage, inventor da máquina que desempenhava cálculos matemáticos complexos, capaz de imprimir e compilar gráficos e que, porém, nunca foi concluída.
Ada, que em sua rebeldia mantinha o hábito de escrever poesia, ao perceber o potencial da máquina, se programada adequadamente, pressupôs que poderia realizar qualquer tarefa, inclusive escrever cartas para o pai dela, até mesmo compor músicas ou escrever poesias. Essa máquina foi a precursora do computador desenvolvido pelo matemático Alan Turing, no século XX, comum a qualquer dispositivo vigente que serviria para ouvir música ou compilar um documento.
Ainda, citando o cientista-poeta Humphry Davy, descritor dos elementos sódio (Na) e potássio (K), dentre outros, que investigou as benesses médicas do óxido nitroso ou gás do riso e registrou alguns desses experimentos no poema Respirando o Óxido Nitroso (tradução livre), não apenas descrito com lógica científica, mas com a prática poética também. Ele teve sua poesia reconhecida pelos poetas William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge, considerados os precursores do romantismo na literatura inglesa.
A astrônoma-poeta canadense Rebecca Elson, uma das pioneiras no uso do telescópio Hubble (lançado na órbita da Terra no dia 24 de abril de 1990), no poema Aberração expressou as frustrações, fracassos experimentais e ambivalência emocional, alternando versos entre desapontamento devastador e esperança com novos experimentos, que seria impossível registro em redação científica (ILLINGWORTH, 2019).
Ventura (2021), físico-poeta, questionou se a literatura influenciaria cientistas em suas abordagens teóricas e práticas? Para responder a essas indagações, baseou-se nos físicos-escritores Charles Percy Snow (britânico; obra As Duas Culturas e Uma Nova Leitura) e Ernesto Sábato (argentino; obra O Túnel), os quais reafirmaram que a ciência e a literatura caminham “par e passo” e trazem histórias de entendimento do mundo em suas várias possibilidades.
Além deles, citou também o astrônomo-escritor brasileiro Ronaldo Mourão na obra Astronomia em Camões (2009), onde consta que “O melhor método para conhecer a cultura científica em determinada época é estudar as obras literárias e/ou publicações não especializadas que se utilizavam do conhecimento científico ensinado nas universidades naquele período”. Reportou que Luiz Camões (CAMÕES, OS LUSÍADAS, canto v, estância 14), foi o poeta precursor no Hemisfério Norte a dedicar um poema à constelação Cruzeiro do Sul, como partícipe das navegações portuguesas no final do século XV, in verbis:
Já descoberto tínhamos diante
Lá no novo Hemisfério, nova estrela,
Não vista de outra gente, que, ignorante,
Alguns tempos esteve incerta dela.
Vimos a parte menos rutilante
E, por falta de estrelas, menos bela,
Do Pólo fixo, onde inda se não sabe
Que outra terra comece ou o mar acabe.”
Ventura ainda ressaltou que a relação ciência e poesia retroage ao poeta Dante Alighieri, que em seus poemas retratava a cosmologia do universo ptolomaico[4].
Já Francesco Redi, que compôs poemas em observação aos fenômenos naturais, destacou em decorrência da ciência empírica de Galileu, o processo de cisão entre o progresso das ciências e a marginalização paulatina das artes e tornou-se pioneiro do método científico de Galileu em suas descobertas e análises. Coube a Galileu inspirar Antônio Gedeão (pseudônimo do físico português Rômulo de Carvalho) a escrever Um Poema para o próprio Galileu.
Ventura (2021) elencou autores e obras brasileiras relacionados à poesia científica, tais como: Augusto dos Anjos (abordou a Química em seu poema Psicologia de um Vencido, 1912); Murilo Mendes (musicou Estudo para um Caos, 1944); Cecília Meireles (Máquina Breve, 1964).
Outro exemplo a ser citado, é o do cantor e compositor Gilberto Gil, que além de ter musicado o poema de Arnaldo Antunes chamado A Ciência em si (1997)[5], compôs também Cérebro Eletrônico[6] em 1969 - dez anos antes do famoso PC (computador pessoal) e uns 25 anos antes do surgimento da internet comercial - nome dado ao computador na década de 60, o qual foi usado como tema de abertura da novela Tempos Modernos exibida em 2010 pela Rede Globo de Televisão, conforme trecho na sequência:
“Mas ele é mudo/
Mas ele não anda/
Só eu posso Pensar”.
Nesta canção, Gil quis ressaltar a importância da máquina como um auxiliar do homem, que a princípio parecia onipotente, porém se torna impotente e limitada diante da capacidade do homem, ou seja, ele não a trata como um substituto e sim como um auxiliar, pois apesar de tudo ela se torna restrita em detrimento da capacidade humana. Em 1996, o mesmo Gil compôs a música Pela Internet (SEGURA, 2017), lançada ao vivo em parceria com a IBM, cuja estrofe está transcrita na sequência:
Criar meu website
Fazer minha homepage
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada
Um barco que veleje
Todas sem controle remoto.
Será, um dia, A inteligência artificial
Capaz de escrever poesia?
Conforme Ventura (2021), Manoel de Barros tem sua poesia pantaneira[7] como ensinamento de Educação Ambiental nas escolas. Ainda, citou Haroldo de Campos (A Máquina do Mundo Repensada, 2005), que compôs o seguinte verso:
“– Einstein então encurva o espaço:
menos seguro fica o deus-relojoeiro da clássica mecânica
ou ao menos desenha-se outro enredo sobranceiro
ao de Newton: do espaço – qual sensório
Ventura destaca ainda que o percurso da ciência contribui para fruição estética de um poema e para tal, usou como referência A Poética do Devaneio de Gaston Bachelard, que escreveu “nas horas de grandes achados, uma imagem poética pode ser o germe de um mundo, o germe de um universo imaginado diante do devaneio de um poeta” ou mesmo Deleuze, que em Dois Regimes de Loucos, que comentou “a filosofia cria conceitos, a ciência cria funções e a arte cria percepções e afetos”, e conclui com o trecho transcrito abaixo:
SÍNTESE
Síntese da vida em quatro palavras:
duas variáveis físicas (tempo e trajetória);
duas variáveis metafísicas (vontade e talento).
de deus – de um absoluto-verdadeiro”
Conforme Santos (s.d.), no cinema observa-se também essa relação entre ciência e poesia. Charles Chaplin no filme Tempos modernos (1936), traça uma crítica à concentração da riqueza, por parte de poucos, à exploração da mão de obra operária, ao lucro desenfreado dos donos dos meios de produção onde a máquina domina o homem e o trabalhador não se apropria do que produz, tornando-se mero executor, sem direito a usufruir do que produz.
Peixoto (s.d.), corroborando com a premissa da relação entre ciência e poesia, embasa-se no poeta Manuel Bandeira, um dos principais representantes do Movimento Modernista brasileiro, que no poema Trem de Ferro usa de onomatopeias, sonoridade, jogo de palavras, para simbolizar o barulho do trem ao vapor, principal responsável pelo escoamento da produção de café, produto de exportação, quis também retratar o modelo de sociedade vigente naquela época, ao mesmo tempo em que aponta para o surgimento da revolução industrial, o auge da indústria cafeeira. Os versos de Trem de Ferro foram musicados duas vezes, a primeira delas por Villa-Lobos (1887-1959) e, mais tarde, por Antônio Carlos Jobim (1927-1994), conforme estrofe que segue:
“Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha”
Enfim, são inúmeras as manifestações poético-cientificas nas diversas áreas do conhecimento, na música, pintura, escultura, literatura, portanto pensar em poesia é refletir e ser reflexo, no fazer poético à luz da ciência, pois ambos estão em tudo.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] https://www.todamateria.com.br/romantismo-caracteristicas-e-contexto-historico/
[2] Movimento filosófico criado no século XIX que defendia a ordem e a ciência para a obtenção de progresso social, influenciando a fase conhecida como 1ª República no Brasil. https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/positivismo.htm.
[3] (s.d.) = sem data de publicação. Disponível em https://www.uc.pt/sibuc/Pdfs/ISBD3.
[4] Visão ptolomaica do Universo = o universo era circular e finito, tendo a terra no centro e imóvel as estrelas fixas como limite. Os planetas se moviam interminavelmente em órbitas perfeitas, circularmente. https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-cultura/5006598.
[5] A CIÊNCIA em si. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HjKvabHTAwg.
[6] CÉREBRO eletrônico. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-J5gTpiI3KU.
[7] SANTANA, E. S. O meio ambiente através da poética pantaneira de Manoel de Barros em Poesia Completa. EcoDebate. 12 ago 2016. Disponível em https://www.ecodebate.com.br/2016/08/12/o-meio-ambiente-atraves-da-poetica-pantaneira-de-manoel-de-barros-em-poesia-completa-artigo-de-elissandro-dos-santos-santana/.