Literatura de Cordel: muito além da cultura e arte popular

Midia

Part of Literatura de Cordel: muito além da cultura e arte popular

Nos primórdios da dinastia Han, no ano 206 a.C., foi descrita a técnica de produção de papel pelo eunuco Ts’ai Lun, marco diferencial ao ofício da impressão, e pela leveza e produção econômica tornou-se o meio de comunicação chinês, alcançando a Europa (BAYERLEIN, 2018).

O referido autor citando Meggs (2009), reportou “Não se sabe ao certo se a impressão em relevo evoluiu dos sinetes chamados chops, que eram feitos mediante o entalhes de caracteres caligráficos numa superfície plana de jade, prata, ouro ou marfim”, dos decalques, das inscrições em pedra ou da síntese de ambos”, ressaltou que independentemente desta questão, se a impressão foi consequência das técnicas da xilogravura ou dos decalques em pedra ou da combinação de ambas, o fato é que ficou marcada sua participação na evolução da sociedade mundial.

Seguiu-se a isso, a invenção das técnicas de impressão em larga escala – forma de marcar uma superfície, a qual poderia ser feita em papel, tecido, plástico, acetato, madeira, chapa, vidro, dentre outras, trazendo conteúdos como figuras, letras, palavras, textos – buscando preservar os registros da época. Essas técnicas foram desenvolvidas em meados de 1455, pelo alemão Johannes Gutenberg, com a impressão da bíblia; este feito influenciou definitivamente os aspectos culturais e sociais do ocidente, modificando a tradição oral, falada ou cantada (SANGAROTE e CAMBOHA, 2019).

Na Europa, o cordel foi registrado a partir do século XII, na França, Espanha e Itália, e era associado aos povos greco-romanos, fenícios, cartagineses e saxões, porém tornou-se popular no período do Renascimento, entre os séculos XIV e XVI[1]. Trovadores portugueses cantavam histórias e contos populares na forma de poemas rítmicos em prosa, com métricas matemáticas, compostos por número de páginas múltiplo de quatro e uniformização do tamanho (11,0 x 15,5 cm), mantendo a tradição oral cantada e declamada, inclusive porque grande parte da população não era letrada. O surgimento da imprensa possibilitou a popularização desses registros, que passaram a ser expostos em papéis pendurados em cordéis, tradição originária de Portugal, expostos em corda fina e flexível, apelidados de barbante ou guita - para melhor visualização e fácil comercialização nas feiras das cidades, vilarejos e espaços regionais de cultura nordestina (MARINHO(a), s. d. [2]).

A colonização portuguesa no Brasil trouxe essa tradição adentrando pelo Nordeste brasileiro. Encontrando cenário fértil, ganhou uma identidade regional, tornando-se referência nacional, sobretudo nos estados do Pará (Norte), Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, e Rio Grande do Norte (Nordeste). Foi popularizada a partir do século XVIII, retratando de maneira simples as  contemporaneidades e costumes do  folclore brasileiro, cujo conteúdo retratava temas políticos, religiosos, profanos, lendas e mitos, além de episódios históricos e da realidade social. Os poemas são cantados ou declamados pelos autores/cordelistas/poetas de bancada ou de gabinete em forma de cantigas (rimas, métricas[3] e oração), acompanhados por repentistas, chamados violeiros, assemelhados aos trovadores medievais, os quais apresentavam história musicada e rimada nas ruas das cidades.  Complementando o texto impresso, os cordéis em formato tradicional trazem a capa ilustrada com a técnica em xilogravura[4], que segundo Meyer (1980) recebeu a denominação curiosa de “folha volante” (SIGNIFICADO, 2016; MARINHO(b),s.d;DIANA,s.d).

Acredita-se que entre 1893 e 1918, o paraibano Leandro Gomes de Barros conhecido como “o primeiro sem segundo”, teria começado a escrever folhetos e imprimi-los, iniciando a impressão sistemática das histórias rimadas em folhetos, publicando os primeiros versos. Percorrendo o sertão nordestino, adaptava à realidade do imaginário nordestino as heroicas aventuras de Homero, romances medievais e de cavalaria, além dos causos cotidianos, problemas sociais, histórias rotineiras e populares, integrando o sertão ao litoral, o rural ao urbano, criticando as diferenças sociais, privilégios da minoria empoderada (incluindo o clero católico) versus a pobreza da maioria. A partir de 1909, já estabelecido no Recife, Leandro passou a viver exclusivamente da produção e venda dos folhetos, tendo escrito 240 cordéis, tornando-se editor e proprietário (NEOENERGIA, s. d.; ZARAMELLA, 2021; SILVA FILHO e SANTOS; s. d.; citando GALVÃO, 2006).

Entre 1930 e 1960, o cordel ganhou projeção pela influência nas obras dos escritores João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna e Guimarães Rosa (DIANA, s. d.).

"O folheto-de-cordel e espetáculos populares como 'auto-de-guerreiros' ou o 'cavalo-marinho' são fontes preciosas para os artistas que sonham se unir a uma linguagem mais apegada às raízes da cultura brasileira. É que, em seu conjunto, tudo aquilo forma um espaço cultural criado por nosso próprio povo e no qual, por isso mesmo, ele se expressa sem maiores imposições ou deformações que lhe viessem de fora ou de cima", escreveu, em 1999, o escritor Ariano Suassuna, para quem a "imensa maioria do povo pobre do Brasil real" é o único contingente da população "verdadeiramente autorizado a criar uma arte popular brasileira" (NEOENERGIA, s. d.)

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 19 de novembro de 2018, reconheceu a literatura de cordel como Patrimônio Cultural Imaterial, caracterizada como gênero literário resultante da conexão entre as tradições orais e escritas da miscigenação brasileira das culturas africana, indígena, europeia e árabe (TOKARNIA, 2018).

A Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) foi criada em 07 de setembro de 1988, materializando o sonho de independência de três cordelistas: Gonçalo Ferreira da Silva, Presidente, Apolônio Alves dos Santos, Vice-presidente e Hélio Dutra, Diretor Cultural. A sede foi instalada em 1990, num prédio de dois andares, cedido, composto por depósito e loja, situado na Rua Leopoldo Fróes, 37, Santa Teresa, Rio de Janeiro. (LUCENA, 2015; http://www.ablc.com.br/a-ablc/historia/).

Ainda, Lucena (2015) reportou que parte do acervo da ABLC foi originário do antigo Centro de Cultura São Saruê (cultura nordestina), no qual constavam 13 mil folhetos e 1.300 livros, enfocando cultura popular, literatura de cordel, cultura nordestina e sertaneja, além de matrizes e gravuras. O corpo acadêmico da ABLC é composto de 40 cadeiras de membros efetivos, sendo que 25% delas podem ser ocupadas por membros não radicados no Rio de Janeiro. Leandro Gomes de Barros é o patrono da cadeira número 1, tendo outros ícones homenageados e respectivas cadeiras, tais como: Catulo da Paixão Cearense (10), Patativa do Assaré (15), Capistrano de Abreu (23) e Luís da Câmara Cascudo (26). Constam ainda vinculadas à ABLC, 25 cordeltecas reconhecidas em diversos municípios brasileiros, com respectivos acervos disponíveis às pesquisas (http://www.ablc.com.br/a-ablc/historia/http://www.ablc.com.br/cordeltecas/).

Nas últimas três décadas, a literatura de cordel integra o currículo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, fazendo o “caminho de volta” da herança dos colonizadores portugueses. Homenageia-se, oficialmente, o dia do poeta da literatura de cordel em 01 de agosto (ADORO PAPEL, 2017). Conforme comentário do antropólogo Antônio Alves, o cordel é um gênero da literatura que sofre preconceito por ser da cultura popular, mas que é um ensinador e ressaltou que incentiva o ensino de literatura tradicional e letrada, potencializando e permitindo a valorização e respeito ao multiculturalismo brasileiro (FAESA DIGITAL, 2018).

Apesar de algumas divergências regionais, a Academia de Cordel do Vale do Paraíba (ACVPB), comemora o dia 19 de novembro (data de nascimento do pioneiro cordelista Leandro Gomes de Barros), enquanto em Aracaju, é comemorado em 19 de julho, dia em que o sergipano João Firmino, patrono da primeira Cordelteca brasileira que funciona na Biblioteca Pública Clodomir Silva, tomou posse na ABLC (LEE, 2015).

O universo temático poético, diverso e inclusivo, alcançou os temas científicos, seja como ferramenta cultural regional, estratégia metodológica, divulgação científica e popularização da ciência.

Almeida, Massarani e Moreira (2016) analisaram o discurso de 50 cordéis, 22 de valorização biográfica de cientistas; 04 de cordelistas e 28 de críticas aos impactos ambientais negativos; 23 de cordelistas. Sob a alusão aos referidos temas associados às ciências, observaram ambivalência valorizando ou criticando os achados científicos e o desenvolvimento tecnológico, bem como, indicaram potencial positivo convergente para divulgação, popularização e pensamento crítico da ciência através da literatura de cordel.

Citando Farias e Alves (2009), que aludiram sobre folhetos do poeta Manoel Monteiro, entusiasta e disseminador do uso do cordel em sala de aula, preconizavam uma aproximação entre a categoria “Novo Cordel” e a classificação tradicional “Sociedade, Ciência e Reportagens”, por tratarem de temáticas contemporâneas.

No levantamento de temas em ciências, Almeida, Massarani e Moreira (2016), reportaram conteúdos sobre AIDS, questões ambientais, astronomia, microbiologia, física, instigando a criatividade pelo uso de uma linguagem popular, por meio da ludicidade e contextualização.

Silva e Arcanjo (2012) ratificaram o uso da ferramenta da literatura de cordel na atividade didática, ressaltando a adoção de múltiplas linguagens, novas práticas metodológicas (lúdicas, inovadoras e motivacionais) à construção do conhecimento (significação das informações), promovendo reflexões socioambientais e mudanças de hábitos.

Silva Filho e Santos (s. d.), físicos, analisaram dois cordéis, e utilizando abordagem não convencional, tematizaram o cientista Einstein e a Teoria da Relatividade, sendo “O ano mundial da física e o papel de Sobral na teoria da relatividade” (poeta Eugenio Dantas de Medeiros) e “Einstein, vida, obra e Pensamento” (poeta Gonçalo Ferreira da Silva). Verificaram a possibilidade de usá-los como ferramenta dinamizadora ao processo de aprendizagem, como introdução na disciplina de Ciências, aos discentes do Ensino Fundamental e Médio. Nos referidos cordéis, dois são em sextilhas (seis versos) e um é setilha ou septilha (sete versos):

Sextilha é uma estrofe de seis versos, geralmente dispostas da seguinte maneira, em nosso cordel tradicional: são rimados entre si os versos pares, ou seja: o segundo com o quarto e com o sexto, enquanto o primeiro, o terceiro e o quinto são livres. A organização é a seguinte: AB/CB/DB, podendo ser ainda adotado o esquema XA/XA/XA. Na Sextilha, o verso subsequente depende do seu antecessor (verso ímpar). (citando VIANA, 2006, p. 35).

Septilha são estrofes de sete versos. A distribuição de rima obedece ao sistema ABCBDDB com os versos 2º, 4º e 7º rimando iguais, 5º e 6º em versos monorrimos e os demais (1º e 3°) livres (citando RIBEIRO, 2006, p. 209).

A contagem das sílabas métricas de um verso tem características distintas. Três regras devem ser observadas. Primeira: Toda sílaba final átona terminada em vogal e a inicial da palavra seguinte começada também por vogal, forma uma única sílaba. Ex.: Grande amigo, divide-se: Gran-dea-migo Segunda: Se a vogal da sílaba final for tônica não ocorre elisão, ou seja, a junção das sílabas. Ex.: José Américo, divide-se: Jô-sé-A-mérico Terceira: Na última palavra do verso não se contam as sílabas seguintes à tônica. Ex.: Melancólico, divide-se: Me-lan-cólico (citando MENDES, 2004, p. 27).

Silva Filho e Santos (s. d.) observaram que os dois textos feitos em forma de literatura de cordel, além do aspecto auxiliar cognitivo, proporcionam valorização inclusiva da riqueza cultural nordestina, das demais regiões brasileiras, tornam-se dinamizadores e facilitadores no processo ensino aprendizagem, porque de forma lúdica possibilitam a memorização independente da disciplina. Ambos os textos apresentaram equívocos conceituais, o que poderia ser proveitoso para as discussões em sala.

Morais e Eugênio (2021) realizaram revisão sistemática nas 10 edições do Encontro Nacional de Ensino de Ciência e 07 edições do Encontro Nacional de Ensino de Biologia, localizando 12 trabalhos apresentados, os quais para análise foram alocados em duas categorias: i) Trabalhos sobre confecção do cordel em cursos de licenciatura; ii) Aplicação do cordel no contexto escolar na educação básica.

As referidas autoras ratificaram as potencialidades lúdicas da literatura de cordel no ensino das ciências, seja pelo estímulo à leitura, interpretação visual e compreensão do texto, e ressaltam as peculiaridades históricas, quais sejam: contextualização e questões culturais e sociais, elementos que podem acrescentar significados ao processo de ensino valorizando a interdisciplinaridade, motivação discente, valorização do contexto social e cultural, dentre outros aspectos cognitivos, inclusive possibilidade de promover socialização e cidadania. Pelos aspectos culturais regionais, popular e de baixo custo, os cordéis podem ser elaborados pelos discentes (citando CARREIRO e cols., 2012; FRACALANZA, AMARA e GOUVEIA, 1987).

Em 2022, em alusão ao bicentenário da independência do Brasil, ao deixar de ser colônia de Portugal, a literatura de cordel aparece como legado cultural português positivo, quando fundido à cultura nordestina, se diferenciou e se tornou independente, tanto na divulgação e popularização das ciências, na estratégia pedagógica, na inclusão de gênero quanto na popularização da informação, mote suficiente para ser rememorado no Canal Ciência, seja na participação no SBPC ou parabenizando em 01 de agosto, dia do poeta e da poetisa da literatura de cordel, cultura regional viva do povo brasileiro!

Cordel Oswaldo Cruz (ALMEIDA, MASSARANI e MOREIRA, 2016; citando SILVA, 2008, p.1).

No estudo Oswaldo Cruz

adotou como doutrina

rigorosa obediência

à mais rígida disciplina

até mesmo depois de

doutorado e medicina

Cordel Santos-Dumont (ALMEIDA, MASSARANI e MOREIRA, 2016; citando SILVA, 2002, p.5)

Santos-Dumont no entanto

como Pai da Aviação

teve com o seu invento

profunda decepção

de vê-lo como instrumento

de guerra e destruição

Em homenagem ao dia da literatura de Cordel (01/08) (ADORO PAPEL, 2017)

Hoje é dia de lembrar

o poeta do sertão,

aquele que conta história

com humor e muita ironia,

fala da vida de quem muitas vezes

no livro do dotô não cabia

     
     

 

NOTAS DE RODAPÉ

[1] Renascentismo, Renascença ou Renascimento: insurgiu como contraponto à hegemonia do catolicismo, que não permitia tradições consideradas pagãs, afetando a cultura da época e pesquisas científicas contrárias aos dogmas vigentes. Rompendo esse monopólio, com pensamentos novos e resgatando valores clássicos da Grécia Antiga e do auge do Império Romano, valorizava o ser humano, possibilitando experimentações, pesquisas, busca de conhecimento científico, com expressão artística mais livre, estimulada pela nova classe de pessoas, a burguesia. Disponível em https://www.concursosnobrasil.com.br/escola/historia/o-que-foi-o-renascimento.html.

[2] (s.d.) = sem data de publicação. Disponível em https://www.uc.pt/sibuc/Pdfs/ISBD3

[3] Existem diversas modalidades na literatura de cordel, quanto à forma de organização das rimas nas estrofes, a citar: parcela ou verso de quatro sílabas, verso de cinco sílabas, estrofes de quatro versos de sete sílabas, sextilhas, septilhas, oito pés de quadrão ou oitavas, décimas, martelo agaloado, galope à beira-mar, meio-quadrão, entre outros (SILVA FILHO e SANTOS, s.d.; citando VIANA, 2006, p. 43).

[4] Arte de gravar em madeira, onde se esculpe na madeira o desenho, seguindo-se: i) Entintagem: tinta é colocada na área que não foi encavada através de um rolo; ii) Impressão: transporte da imagem ao papel fazendo-se pressão a mão ou no prelo; iii) matriz: pode ser de madeira, linóleo, poliuretano, compensados, dentre outros (https://www.portalsaofrancisco.com.br/arte/xilogravura)

Título

Literatura de Cordel: muito além da cultura e arte popular