Entrevista concedida a Lineu Freire-Maia (Instituto de Ciências Biológicas, UFMG) e Marise Muniz (Ciência Hoje).
Midia
Part of Entrevista Wilson Teixeira Beraldo
Publicada em outubro de 1990.
Ao reproduzir, em sua edição de 10 de julho de 1988, matéria distribuída pela agência de notícias UPI atribuindo a pesquisadores alemães a origem da bradicinina, o jornal Estado de Minas subtraía inadvertidamente à ciência brasileira uma de suas mais importantes descobertas. Na verdade, a bradicinina — substância envolvida na regulação da pressão arterial, cuja descoberta revolucionou as pesquisas biomédicas — foi identificada pelos cientistas brasileiros Maurício Rocha e Silva, Gastão Rosenfeld e Wilson Teixeira Beraldo, após experiências com a liberação de histamina, a partir do veneno de cobras. Em dezembro de 1947, movido pela obstinação do aprendiz dedicado, Wilson Teixeira Beraldo acabou por precipitar a descoberta da nova substância ao repetir os testes com amostra que já havia revelado resultados negativos. "Tudo não passou de um acaso", teima em dizer o pesquisador.
Não pensem, porém, os desavisados que sua participação nessa valiosa descoberta tenha acendido nele a fogueira da vaidade. Wilson Beraldo jamais trocou a postura de aprendiz pela de mestre ao longo de sua brilhante carreira de professor e pesquisador. A ele se devem a introdução da parte experimental e a implantação do método não-diretivo de ensino no Departamento de Fisiologia e Biofísica da Universidade Federal de Minas Gerais, onde, na década de 1960, instalaria o primeiro laboratório de fisiologia dessa universidade e organizaria, pouco depois, seu curso de pós-graduação na área. Mas, ao dedicar-se a essas tarefas cuidou de não preterir os iniciantes: até pouco tempo atrás, podia ser visto dando aulas a alunos recém-admitidos, exemplo tomado do velho mestre Baeta Vianna, que o influenciou decisivamente na adoção da carreira de pesquisador, contra o desejo do pai de vê-lo agrônomo ou veterinário.
Sócio-fundador da SBPC, hoje Beraldo é seu presidente de honra. Das 42 reuniões anuais promovidas pela entidade desde sua criação, em 1948, ele participou de nada menos que 39. Interinamente, assumiu sua presidência num momento delicado, no período da ditadura militar. A esse gesto político soma-se outro, entre os raros episódios dessa natureza em que se envolveu ao longo de sua vida. Em 1987, surpreendeu a comunidade científica ao desafiar ninguém menos do que o então governador de Minas Gerais, Newton Cardoso, em plena solenidade pública. "Pode parecer absurdo", ironiza, "mas isso me conferiu mais popularidade do que a minha participação na descoberta da bradicinina."
Aos 73 anos, com mais de 150 trabalhos publicados, Beraldo ainda se mostra com vigor para desacatar a condição de inativo imposta nos contracheques dos aposentados, e faz da atividade de pesquisa sua principal motivação. Envolvido, atualmente, em projeto que busca verificar os efeitos da radiação no útero de rata, chega à universidade às nove da manhã e só deixa o laboratório às seis da tarde. "Ao invés de procurar psicoterapeuta, dedico-me ao trabalho, que rende juros altos à minha saúde", recomenda.
O que o levou a estudar medicina?
Decidi estudar medicina por influência do doutor José Brigagão Ferreira, que, na minha juventude, era o único médico de minha cidade natal, Silvianópolis, no sul de Minas. Por ser muito amigo de minha família, acabei me aproximando dele. Ele era muito simpático, inteligente, uma pessoa entusiasmada. Os enormes benefícios que prestou à minha cidade me estimularam a seguir a carreira de medicina.
Por que o senhor desistiu de clinicar em sua cidade, como havia planejado, e decidiu dedicar-se à pesquisa?
No segundo ano da Faculdade de Medicina, cursei a cadeira de química fisiológica com o professor Baeta Vianna, que exerceu uma influência muito grande não apenas sobre mim, mas também sobre meus colegas Carlos Diniz, Leal Prado, Sebastião Baeta Henriques e Olga B. Henriques. Os alunos faziam estágio no laboratório do professor Baeta e lá aprendíamos, por exemplo, a titular ácido clorídrico do estômago. Colhíamos as amostras introduzindo uma sonda no estômago de um colega e elaborávamos a seguir a curva de acidez. O professor Baeta dava uma orientação experimental ao ensino de bioquímica. Ele gostava muito dos alunos, passava o dia na faculdade e trabalhava até aos sábados. Como fazíamos experimentos também com animais, tínhamos que ir a escola nos fins de semana para dar-lhes ração. Foi o professor Baeta que despertou em mim o gosto pela pesquisa.
O professor Baeta acabou levando-o para o laboratório. Ele foi importante também na sua formação científica?
Foi muito importante porque seu método experimental e quantitativo era muito rigoroso. Com ele, aprendi a pesar em balança analítica e adquiri disciplina no laboratório, onde tínhamos hora certa para chegar e de onde saíamos só quando terminávamos o que deveria ser feito. Foi ele quem propiciou meu primeiro contato com o método experimental. O professor Baeta não só dava ênfase à parte quantitativa da química fisiológica como também nos proporcionava uma visão geral da ciência que pretendíamos fazer. Ele não foi propriamente um investigador; foi acima de tudo um formador de recursos humanos.
Em que período o senhor cursou a Faculdade de Medicina?
Entrei na Faculdade em 1937. Antes, havia feito dois anos do chamado curso complementar, que funcionava na Faculdade de Medicina. Só depois é que se fazia o vestibular para o curso médico. Nessa época, as cadeiras eram feitas separadamente. No primeiro ano, tínhamos anatomia e histologia; no segundo, fisiologia e química fisiológica; no terceiro, patologia geral e assim por diante. O aluno não fazia, como hoje, um aglomerado de cadeiras de uma só vez.
Nessa época havia pesquisa na Faculdade de Medicina?
Não me lembro de haver pesquisa na Faculdade de Medicina nessa época; na fisiologia e na bioquímica, pelo menos, não havia. Mas, posso dizer que o professor Amílcar Vianna Martins fazia alguma coisa na parasitologia, embora seu verdadeiro laboratório de pesquisa estivesse no Instituto Ezequiel Dias, onde se destacavam também os trabalhos sobre escorpionismo feitos pelo professor Octávio Magalhães.
Que lembranças o senhor tem da época em que morava na pensão da Dona Marucas?
A casa onde funcionou a pensão ainda está de pé, atrás do Colégio Arnaldo. Dos companheiros que tive, me lembro bem da Iracema Bacarini, que depois foi professora de patologia na Faculdade de Medicina, e do Darcy Ribeiro, mais interessado em literatura e sociologia. Ele já era muito agitado e irônico, levantava e deitava tarde. Naquela época, muitas pensões acolhiam estudantes vindos do interior. Eu vim do sul de Minas, o Darcy de Montes Claros, a Iracema Bacarini de São João del Rei. Tenho lembranças saudosas desse tempo.
Por que o senhor se mudou para São Paulo ao concluir o curso?
Fui para São Paulo com um grupo de pessoas interessadas em fazer pesquisa. Não queríamos fazer clínica e aqui havia pouca oportunidade de emprego para pesquisadores. Resolvemos nos aventurar em São Paulo, conhecer um centro maior e ver em especial o que estava sendo feito no Instituto Butantã.
A convite do Ribeiro do Vale, o Leal Prado acabou ficando no Butantã. O Carlos Diniz, que sempre teve muita visão das coisas, foi o primeiro a viajar para São Paulo e lá conheceu o Butantã e o Instituto Biológico, que estavam entre os principais centros de pesquisa do país. Mas, como ele voltou e ficou trabalhando com o professor Baeta Vianna, foi um dos últimos da turma a se mudar. O Butantã não podia absorver todo o pessoal que havia se deslocado para São Paulo; por isso fomos trabalhar numa indústria de produtos farmacêuticos, a Laborterápica. Lá fazíamos dosagem de vitamina A em óleo de fígado de bacalhau para preparar fortificantes. Era um trabalho mais técnico. Enquanto eu trabalhava nessa empresa, na área técnica, o Leal foi para a Escola Paulista de Medicina como professor assistente. Quando passou a titular, convidou-me para ser seu assistente de bioquímica em tempo parcial. Comecei na Escola Paulista em 1944, e em 1945, fui convidado para trabalhar na USP. Surgiu uma vaga na fisiologia e o doutor Dutra de Oliveira, um dos proprietários da Laborterápica e livre-docente da Faculdade de Medicina da USP, apresentou-me ao professor Franklin Moura Campos para substituir um de seus assistentes, que havia se licenciado e não reassumiu. Então lá fiquei e fiz concurso para livre-docente.
Foi nessa época que o senhor começou a trabalhar com o professor Maurício Rocha e Silva?
Comecei a trabalhar com o Rocha e Silva em 1946. Quando estava na Faculdade de Medicina da USP, a linha de pesquisa do Departamento de Fisiologia era voltada para a nutrição, a avitaminose, o baixo teor de proteínas. Considerava esse trabalho muito lento. Para saber se determinado alimento tinha ou não vitamina, eram necessários dois ou três meses de trabalhos com animais de laboratório. No carnaval de 1946, fui ao Rio ver o Antônio Oliveira Lima, um alergista famoso, que havia sido discípulo do professor Baeta Vianna em Belo Horizonte. Como eu estava indeciso sobre que tipo de pesquisa fazer, ele me sugeriu estudar a asma alérgica experimental, então muito em voga, e me passou toda a literatura disponível sobre o assunto. A técnica consistia em colocar cobaias numa redoma de vidro e pulverizá-las com um pó obtido da caspa da pele de cavalo. Esse pó contém proteínas que sensibilizam as cobaias. Aproximadamente duas semanas depois, a cobaia começava a apresentar sintomas de asma, tossindo e espirrando até entrar em convulsão. Com essa técnica, comecei a pesquisar ainda na USP. Como na época, a histamina era o único mediador conhecido das reações alérgicas, o Oliveira Lima sugeriu que eu procurasse o Rocha e Silva para aprender a dosar histamina. Fui ao Rocha e Silva com esse propósito, mas ele me tirou a ideia da cabeça e disse que eu deveria estudar choque anafilático, sua linha de pesquisa no Instituto Biológico de São Paulo.
A experiência para produzir o choque anafilático consistia em sensibilizar animais, injetando-lhes albumina de ovo durante algum tempo. Vinte dias após a primeira injeção, o animal ficava sensibilizado. Quando o antígeno era injetado, a pressão caía, configurando-se o choque anafilático. No sangue desses animais constatávamos altas concentrações de histamina. O Rocha e Silva estava totalmente empolgado com essa experiência e me convenceu a aderir à sua linha de trabalho. Conduzimos juntos a pesquisa do choque anafilático durante algum tempo, até sua viagem a Londres, onde ele foi trabalhar com o Hans O. Schild, no University College. Nesse período, tentei montar uma linha de pesquisa sobre histamina no Departamento de Fisiologia da USP, pois queria dar continuidade às experiências com choque anafilático em cobaias. Quando voltou ao Brasil, Rocha e Silva me chamou para continuar o trabalho, dizendo que tinha visto em Londres a liberação de histamina pela ação do veneno de cobra. Segundo ele, pesquisas feitas pelos cientistas ingleses com cobras australianas e indianas mostravam a liberação de histamina pelos venenos. Decidimos então fazer o mesmo teste utilizando venenos de cobras brasileiras.
Nessa época, apareceu no laboratório o Gastão Rosenfeld, que trabalhava com veneno de jararaca no Instituto Butantã e se interessava pela hematologia, principalmente pela coagulação sangüínea. Como ele quisesse entender por que o veneno da jararaca aumentava o tempo de coagulação, acabou unindo-se a nós. Constatou-se então que a heparina, um potente anticoagulante, estava presente no sangue de animais submetidos a choque anafilático. Como ficou demonstrado que o sangue do animal que recebia uma dose do veneno não coagulava, o Gastão achou que pudesse estar ocorrendo liberação de heparina. Para verificar essa possibilidade, fizemos uma perfusão de fígado isolado de cão com o sangue, injetando em seguida veneno de jararaca. Mas, a experiência mostrou que o veneno não provocava liberação de heparina. Resolvemos então estudar o efeito do veneno da jararaca no animal inteiro, com o objetivo de verificar se ele liberava histamina, conforme indicavam pesquisas feitas em cobras australianas por pesquisadores australianos e ingleses. A primeira experiência nessa direção foi feita em um cão anestesiado, no qual injetamos veneno de jararaca. A pressão caiu, retiramos uma pequena amostra de sangue do animal e colocamos no banho com intestino isolado de cobaia, pois a histamina contrai essa preparação biológica. Testamos então o sangue colhido antes e depois da injeção do veneno e verificamos que não ocorria liberação de histamina. Repetimos a experiência diversas vezes, mas o resultado era sempre negativo.
Foi durante essas experiências que o senhor descobriu, ao lado do Rocha e Silva e do Gastão Rosenfeld, a bradicinina? Como se deu essa descoberta? Foi um acaso?
Depois de uma dessas experiências de que estava falando, as amostras de sangue ainda estavam nos tubos de ensaio em cima da mesa. Era uma sexta-feira e, como em todas as semanas, havia uma reunião no Instituto Biológico para discutir resultados de suas pesquisas. O Rocha e Silva se preparava para ir à reunião, mas eu tinha decidido ficar no laboratório refazendo os testes com as amostras utilizadas em experiências anteriores. Num desses testes, fui surpreendido ao verificar contração muscular do intestino da cobaia, causada por uma amostra que havia apresentado resultado negativo. Chamei o Rocha e Silva e contei a ele o que havia observado. Ele ficou tão surpreso com o fato que desistiu da reunião e ficamos até tarde no laboratório repetindo o teste. Foi na verdade um acaso, mas isso só acontece quando se está trabalhando. A feliz coincidência foi provocada pela minha inexperiência e pela vontade de repetir os testes. Se eu tivesse ido à reunião, certamente a descoberta da bradicinina teria uma outra história.
A descoberta da bradicinina não foi reconhecida de imediato. Por que muitos cientistas duvidaram da existência da nova substância?
A primeira nota sobre a descoberta da bradicinina saiu na revista Ciência e Cultura, em 1949. No ano seguinte, foi publicado um trabalho completo no American Journal of Physiology, quando houve o reconhecimento oficial da descoberta pela comunidade científica internacional. Mas no Brasil, houve dúvidas em torno da nova descoberta. Durante uma reunião da Sociedade de Biologia de São Paulo, por exemplo, ela chegou a ser contestada. O Rocha e Silva era um dos candidatos à vaga de professor catedrático de farmacologia da Faculdade de Medicina da USP e o Jaime Pereira, que era o titular, queria passar a cátedra para uma pessoa de sua família. Talvez por isso, ele tenha contestado a descoberta, afirmando na Sociedade que a bradicinina não existia, que era uma mistura de histamina com ATP. O Jaime Pereira chegou mesmo a publicar dois trabalhos contestando a existência da nova substância. Mas, ele não foi o único. Na Alemanha, disseram que a bradicinina já havia sido descoberta por pesquisadores alemães. Na verdade, eles descobriram a calicreína, uma enzima que libera a calidina, semelhante à bradicinina. Mas, a partir de 1955, quando os pesquisadores ingleses Hilton e Lewis estudaram o papel da bradicinina na vasodilatação da glândula salivar, sua existência passou a ser aceita no Brasil e no exterior e não se questionou mais a origem da descoberta.
Por que o Brasil importa o captopril, droga obtida com a descoberta da bradicinina, que controla a pressão arterial?
Com a descoberta da bradicinina, um dos discípulos do professor Rocha e Silva, Sérgio Henrique Ferreira, de Ribeirão Preto, verificou que o veneno da jararaca contém, além da enzima que libera a bradicinina, uma substância que potencia sua ação, a que chamou BPF — Bradykinin Potenciating Factor. Sérgio Ferreira descobriu esse fator ao verificar que, potenciando a bradicinina, a queda da pressão arterial aumentava. Esse fator age de duas maneiras: inibe a conversão da angiotensina I em angiotensina II, que eleva a pressão arterial, e potencia a bradicinina, que a abaixa. Daí o sucesso de sua descoberta. O BPF foi sintetizado por uma indústria farmacêutica norte-americana, que sintetizou a seguir o BPF de uso oral, denominado captopril, droga que hoje importamos. Mas, de fato o captopril tem sua origem na bradicinina, em primeiro lugar, e posteriormente no BPF, ambos descobertos no Brasil. O problema é que a indústria brasileira não estava capacitada a produzir esse medicamento, pois isso exigiria um investimento fabuloso sem a certeza do retorno de lucros. As indústrias norte-americanas, ao contrário, têm recursos para arriscar num investimento incerto.
Que cientistas o influenciaram no tempo em que o senhor esteve fora do país para aperfeiçoar seus estudos?
Estive nos Estados Unidos de 1950 a 1951, mas lá eu me conduzi praticamente sozinho. O Rocha e Silva me encaminhou para a Northwestern University, em Chicago, onde trabalhei com o Carl Dragstedt, um especialista em histamina, quando o estudo da bradicinina ensaiava seus primeiros passos. Mas, como ele estava meio doente, não pôde me ajudar muito. Ao contrário, eu é que acabei influenciando um de seus discípulos, o Van Arman, "desencaminhando-o" para o estudo do sistema calicreínacinina. Em Chicago, estudei a formação de bradicinina no choque anafilático. A viagem que de fato aproveitei foi a que fiz em 1953 à Inglaterra. Ao lado de William Feldberg, trabalhei durante um ano no National Institute for Medicai Research, estudando a calicreína urinária pela perfusão de rim isolado do cão. Em 1930, os alemães E.K. Frey, H. Kraut e Schultz afirmavam que, retirando o pâncreas, não mais se observaria a calicreína na urina. Durante o trabalho, começamos a achar que essa enzima provinha do rim e não do pâncreas. Com base nessa interpretação, Feldberg sugeriu que fizéssemos uma perfusão do rim isolado do cão para verificar que órgão afinal era o responsável pela presença de calicreína na urina. A experiência mostrou que a calicreína aparecia na urina independentemente do pâncreas. Esse foi o grande proveito de meus estudos com o professor Feldberg em Londres. Outra boa contribuição de Feldberg foi mostrar-me a importância de redigir os trabalhos científicos simultaneamente à obtenção de dados. Nesse ponto ele chegava a exagerar, sugerindo que eu trabalhasse três dias na semana e escrevesse durante os outros dois. Ele argumentava que as ideias ficam mais claras quando colocadas no papel. Hoje, vejo o quanto o aluno de pós-graduação retarda a conclusão de sua tese ao acumular dados durante o período experimental para só depois começar a redigi-la. Assim fica difícil lembrar detalhes das experiências. Essa foi a grande lição que aprendi com Feldberg. Ele tem atualmente 90 anos e ainda vai ao instituto para trabalhar. Por ocasião de seus 80 anos, fiz questão de ir a Londres cumprimentá-lo. Foi uma bela festa.
Que impacto a descoberta da bradicinina provocou no campo das pesquisas biomédicas?
A maior importância da bradicinina diz respeito à sua ação no controle da pressão arterial, envolvendo o potenciador que deu origem ao captopril. Mas, a bradicinina é também um dos mediadores do processo inflamatório, conforme temos constatado ao estudar a formação de novos vasos. A pesquisadora brasileira Sílvia Andrade, que trabalha conosco no Laboratório de Fisiologia da UFMG, está desenvolvendo em Londres um método bastante interessante de formação de novos vasos. Foi ela que nos passou essa tecnologia. Daí a importância de as pessoas saírem para o exterior: elas trazem métodos e informações que estimulam as pesquisas em curso nos nossos laboratórios. Para discutir essas experiências, temos congressos internacionais sobre o sistema calicreína-cinina. O último foi realizado no Japão, em 1987, e o próximo está programado para o ano que vem e será realizado na Alemanha.
O senhor fez descobertas importantes usando técnicas simples, como a metodologia do banho do músculo liso. Essa técnica está superada atualmente?
Não, esta técnica foi utilizada para a elaboração de um trabalho com que colaborei, publicado este ano no Biochemical Pharmacology. Aliás, utilizando técnicas tidas como superadas, ainda é possível fazer muita coisa.
O que o trouxe de volta a Belo Horizonte na década de 1960?
Através do Baeta Vianna, fiquei sabendo que o professor Octávio Magalhães havia se aposentado, surgindo uma vaga na fisiologia da UFMG. Mas, a pressão maior partiu da Fundação Rockefeller, que na época tinha muito interesse em estimular o ensino e a pesquisa no Brasil. Na USP, por exemplo, a fundação deu um apoio valioso ao montar o laboratório do professor Moura Campos, com quem trabalhei. O grupo Rockefeller me procurou dizendo que daria o apoio necessário para que eu ocupasse a vaga do professor Magalhães. Esse foi seguramente o estímulo maior que recebi para voltar. Embora gostasse muito de São Paulo, onde morei 16 anos, achei que era um dever voltar ao meu Estado de origem para dar alguma contribuição. E não me arrependi de ter feito essa escolha.
O senhor fez concurso para a cátedra em 1962, não?
Lembro que participaram da banca examinadora o Franklin Moura Campos, da USP, com quem trabalhei em São Paulo, o Thales Martins, catedrático da Escola Paulista de Medicina, o Paulo Galvão, também da Escola Paulista, o professor Baeta e o professor Oromar Moreira, da UFMG. Passei com nove e tanto, não chegou a dez.
Como era o ensino de fisiologia quando o senhor chegou?
A impressão que tive era de que não havia nada na parte experimental. Os professores não podiam incentivar pesquisas nessa área por não haver equipamentos adequados. Eu trazia da USP a vivência de uma parte experimental muito ativa, além de apostilas e trabalhos realizados pelos alunos. Com a chegada do equipamento da Rockefeller, foi possível montar um curso com ênfase na parte experimental.
O senhor introduziu também mudanças sensíveis na metodologia de ensino, não?
Por influência de um grupo de professores americanos convidados a dar um curso na Faculdade de Medicina da UFMG, decidi introduzir um novo método de ensino na fisiologia. O sistema que adotavam consistia em substituir a aula tradicional por grupos de discussão, uma espécie de terapia em que se abordavam vários temas da matéria em estudo. Isso me empolgou muito. Com o apoio do psicanalista Galeno Alvarenga e do Carlos Diniz, que também gostou da ideia, tentei instalar no Laboratório de Fisiologia o chamado método não-diretivo de ensino, baseado na teoria do psicólogo norte-americano Carl Rogers. Nesses grupos, em que debatíamos assuntos variados, os alunos emitiam suas opiniões, cabendo ao professor apenas estimular o debate. Na parte experimental, acho que exageramos ao deixar para o aluno a responsabilidade de fazer tudo. Percebemos depois que isso era um erro, pois a parte experimental demanda que o professor dê mais assistência aos alunos. Decidimos então aplicar o método apenas nas aulas teóricas. Fiquei tão entusiasmado com o método não-diretivo, que cheguei a exagerar na dose por ocasião de um congresso latino-americano que organizamos na UFMG, em 1969. Em vez de fazer as tradicionais conferências e exposições de trabalhos, resolvi adotar as discussões em grupo. O argentino Bernardo Houssay, prêmio Nobel de fisiologia, achou tudo muito estranho e confessou-se um pouco chocado com o método. Mas, o congresso funcionou muito bem.
Que importância o senhor atribui à SBPC no desenvolvimento da ciência brasileira?
Antes da SBPC, não havia no país reuniões científicas de expressão nacional. Para se ter uma ideia, à primeira reunião da Sociedade de Biologia do Brasil, realizada em Salvador por volta de 1946, compareceram apenas 12 pessoas. A SBPC foi fundada em 8 de junho de 1948. Nesse ano, o Instituto Butantã passava por uma fase difícil provocada pela interferência política do então governador de São Paulo, Adhemar de Barros. O governador chegava ao ponto de proibir a pesquisa no Instituto, determinando que ali se produzissem exclusivamente soros e vacinas. Dessa crise, surgiu a ideia de formar uma sociedade que defendesse a pesquisa e os pesquisadores, liderada pelo Rocha e Silva. A reunião de fundação da SBPC ocorreu na sala da Associação Médica de São Paulo e atraiu mais de cem pessoas. Eu sou o sócio número 29, logo atrás do Haity Moussatché, da Fundação Oswaldo Cruz. Hoje, a SBPC tem mais de 30 mil sócios e atrai para suas reuniões cerca de três mil congressistas. É uma potência! Sua criação foi importantíssima para o país.
O senhor assumiu interinamente a presidência da SBPC num momento difícil...
Foi na época da ditadura. Eu era vice-presidente da Sociedade na chapa liderada pelo Oscar Sala. O Rocha e Silva estava na França e lá deu uma entrevista criticando um encontro ocorrido entre o Sala e o então candidato à presidência, general Figueiredo, afirmando que estava havendo certa influência do governo militar na SBPC. A notícia repercutiu na imprensa brasileira e o Sala decidiu renunciar justamente na cerimônia de abertura da 30ª reunião anual, realizada em São Paulo, em julho de 1978. Em seu discurso, ele deixou claro que não havia gostado da acusação do Rocha e Silva e que, por esse motivo, deixava a presidência da Sociedade. Eu não podia imaginar que ele teria essa atitude, deixando-me na mão em plena solenidade. Fiquei completamente surpreso, mas tive que conduzir a reunião assim mesmo. Felizmente pude contar com o apoio do professor Carlos Diniz, que na época era primeiro-secretário.
Dizem que o senhor é viciado em reuniões da SBPC...
Gosto muito dessas reuniões. Para mim, é uma excelente oportunidade para reencontrar colegas de todo o Brasil. Acho também muito bonita a participação dos jovens, sempre muito entusiasmados. Em encontros especializados, reúnem-se quase exclusivamente professores, pesquisadores e alunos de pós-graduação. Já na SBPC, a gente encontra até secundaristas, na maior animação, em seu primeiro contato com a ciência. Isso me estimula muito.
O senhor se recusou a cumprimentar o governador Newton Cardoso numa solenidade pública. Como foi esse episódio?
Pode parecer exagero, mas acho que fiquei mais conhecido por esse episódio do que pela minha participação na descoberta da bradicinina. Logo que assumiu o poder, em 1987, o governador Newton Cardoso resolveu destituir arbitrariamente todos os membros do Conselho Curador da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, a Fapemig, da qual eu fazia parte. Não sabíamos qual era a real intenção dele. Imagino que ele julgava que recebíamos altos salários. Na verdade, não ganhávamos nada para julgar os pedidos de solicitação de auxílio à pesquisa. O que nos disseram na época é que o governador queria colocar no Conselho pessoas de sua confiança para julgar os processos de acordo com sua conveniência. Fui destituído, assim como o professor Amílcar Martins, o Zigman Brener e todos os demais. Naquele ano, por coincidência, recebi do jornal Estado de Minas um prêmio de sua promoção "Os Melhores do Ano". Foi uma concorrida recepção no teatro Palácio das Artes, para a qual foram convidados nomes ilustres do meio acadêmico e empresarial. O Minas Gerais, órgão oficial do Estado, havia publicado naqueles dias a exoneração do Conselho da Fapemig e, por precaução, eu havia feito um xerox da matéria e guardado. No dia da cerimônia, levei o documento no bolso. Foi um ato premeditado, pois eu sabia que o governador estaria presente e deveria cumprimentar os homenageados. Quem me entregou o prêmio foi o professor Hilton Rocha, mas depois da cerimônia o governador foi cumprimentar um a um os agraciados. Na minha vez, sequer me levantei. Tirei do bolso o xerox e disse: "Governador, lamento muito não poder receber seus cumprimentos. O senhor me destituiu do Conselho da Fapemig sem ao menos explicar o porquê". Ele ficou atordoado e criou-se aquela confusão: seus guarda-costas vieram correndo e ele saiu, dedo em riste, dizendo em voz alta que eu era um moço mal-educado. Apesar da confusão criada, gostei muito do "moço". Na plateia todos presenciaram a cena e, quando cheguei lá embaixo, fui mais cumprimentado por meu gesto contra o governador do que propriamente pela homenagem que havia recebido.
O senhor se aposentou, mas continua trabalhando. Parece que o senhor resiste a se enquadrar na denominação "inativo" que consta dos contracheques dos aposentados...
Não gosto dessa palavra nem tenho intenção de interromper meus trabalhos. A gente descansa trabalhando; é muito mais interessante. Na UFMG, trabalho em pesquisa e tenho meus compromissos com os pós-graduandos, mas sem rigidez de horário. Chego à universidade por volta das nove da manhã e saio às seis da tarde. Tenho o maior interesse em incentivar os jovens. Com a Leonora Mata-Machado, a Gilce Oliveira e o Giovanni Braz, por exemplo, estou fazendo radiação do útero isolado de rata. Nossa intenção é verificar se a radiação age na mecânica do músculo ou nos receptores que captam a bradicinina e outros mediadores. Mesmo sem remuneração do CNPq, continuaria a colaborar nessas pesquisas, pois isso é para mim uma terapia. Ao invés de procurar psiquiatra ou ficar me queixando da vida para os amigos, vou trabalhar. Esse é o melhor investimento que faço na minha saúde. E me rende juros altos!
O senhor poderia falar sobre sua vida antes de se mudar para Belo Horizonte?
Meu pai foi prefeito da cidade, era comerciante. Minha mãe era de uma família religiosa. Fiz o grupo escolar em Silvianópolis numa escola muito simples, que sequer dispunha de instalação sanitária. Nessa época, fui coroinha e ajudava a rezar a missa em latim. Meu pai tinha um sítio onde, quando criança, a gente ia apartar vaca. Já o ginásio fiz num internato de Pouso Alegre administrado por padres. Quando terminei o curso, me mandaram para Belo Horizonte para fazer o científico. Vim decidido a fazer o curso de medicina, sabendo que essa era a minha opção profissional. Meu pai queria que eu fosse agrônomo ou veterinário. Se dependesse de sua vontade, eu teria estudado em Viçosa. Ele chegou até a me oferecer um cartório na minha terra na esperança de que eu me fixasse lá, mas tudo isso foi inútil; eu não tinha nenhuma dúvida sobre o que deveria fazer.
Além da pesquisa, o que mais o diverte?
Gosto muito de música. Há 15 anos, faço parte de um grupo que se reúne semanalmente para ouvir os clássicos. Esse grupo existe há uns 50 anos e de lá para cá vem se renovando. A princípio, esses encontros musicais ocorriam uma vez por semana; hoje acontecem duas vezes, às sextas e aos sábados. As sessões começam sempre às oito da noite, com luz apagada, e ali pelas dez são interrompidas para um pequeno lanche, que não dura mais de 15 minutos. Depois as luzes voltam a se apagar e a sessão termina com uma cantata de Bach. Do grupo, eu sou o que tem menos informação musical. Os outros acompanham tudo o que está ocorrendo na área, conhecem todas as regências, os maestros. Depois da música, vem a literatura. Gosto muito de Guimarães Rosa e, atualmente, tenho apreciado muito livros da área de psicanálise e comportamento. Além disto, minha segunda filha, Sílvia, dedicou-se à música, toca flauta. Tenho duas filhas e três netinhas. A primeira, Heloísa, é professora de química na UFMG. Minha mulher faleceu em 1987, de modo que hoje divido meu tempo entre a universidade, a música e as netas. Moro com a Gabriela, uma tartaruga que vive comigo há uns 30 anos.
O senhor se interessa por política?
Não participo da política, limito-me a votar em quem acredito que possa fazer alguma coisa pelo país. Mas, estou me lembrando, cheguei a me entusiasmar com o movimento integralista quando estava no ginásio. Na minha ingenuidade juvenil, achava aquilo muito bonito. Quando cheguei em casa e comentei com meu pai sobre o movimento, ele me deu um teco daqueles! Mas isso foi coisa de menino. Na verdade, nunca manifestei simpatia por movimentos políticos, fossem de direita ou de esquerda. No meu tempo não havia centro acadêmico e eu nunca me interessei ou participei de movimento estudantil, de organizações políticas ou religiosas. Não tenho religião e acho difícil entender o que pode vir depois da vida material. Mas, há uma coisa que sempre me intrigou na religião: se Deus é o todo-poderoso, se pode antever que vamos errar, sofrer acidentes, padecer, não poderia impedir que essas coisas acontecessem? Se Ele tem todas as forças, por que permitir tanta injustiça social, crianças passando fome, pessoas sem ter onde morar, abandonadas, sofrendo? Com a força que, dizem, que Deus tem, eu mudava isso. Vocês não?