Entrevista concedida a Bernardo Kucinski, jornalista.

Midia

Part of Entrevista Simão Mathias

Publicada em novembro/dezembro de 1982.

(1908-1991)

O professor Simão Mathias, sócio número 134 da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e um de seus mais destacados líderes na década passada, tem hoje 74 anos. Foi um dos quatro alunos da primeira turma da Escola de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que iniciou suas atividades em São Paulo em 1935. Foi também o primeiro doutorando em ciências da nova faculdade, defendendo uma tese em físico-química. Em seguida, passou dois anos nos Estados Unidos, "onde de fato aprendi físico-química", diria ele mais tarde em seus depoimentos. De volta ao Brasil, conseguiu com grande insistência a verba necessária para construir o primeiro laboratório de físico-química do país, montado com suas próprias mãos, que serviu para a formação de gerações de pesquisadores. Em 1960, como chefe do Departamento de Química, organizou a centralização de todos os departamentos de química existentes na USP num único grande instituto. Foi da diretoria da SBPC, ao tempo em que era dirigida por Warwick Kerr (é seu presidente de honra) e atuou com empenho na abortada tentativa de reforma universitária do final dos anos 60. Hoje afastado da química, o professor Simão Mathias dedica-se ao estudo da história e filosofia da ciência, agregado ao grupo de história da ciência do Departamento de História da USP.

Professor Simão Mathias, como o senhor chegou à físico-química?

Por aproximações sucessivas. Minha grande paixão, quando jovem, era a matemática. Mas nos anos 20, não havia universidade e o lugar onde se estudava matemática era a Escola Politécnica. Naquela época, os pais é que determinavam o caminho dos filhos, e como eu já tinha um irmão na engenharia civil, só restava a engenharia química como algo próximo da matemática. Minha mãe alegava que a química conduzia a uma profissão, enquanto ser matemático não era nada, era como ser poeta. Mas, fui obrigado a sair da Politécnica quando veio a crise e meu pai perdeu tudo o que tinha. Enquanto trabalhava, estudava odontologia à noite. Quando surgiu em 1934 a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, tive a chance de realizar minha vocação. Como a família insistia na questão da profissão, escolhi a química, e dentro desta a físico-química.

Essa sua paixão pela matemática era normal em jovens da sua geração?

Minha geração foi muito privilegiada. Como não havia universidade, o nível do secundário era muito elevado, o que de certa forma supria a deficiência. Estudava-se filosofia, e tudo era lido em francês. Eu ia muito à biblioteca pública, praticamente todas as noites, e comecei a ler textos de matemática em francês. Fiquei empolgado. Aos 18 anos li o Discurso sobre o Método, de Descartes.

Então o senhor sempre esteve na profissão errada?

Sim, se fosse seguir meu impulso teria feito matemática, ou talvez astronomia.

senhor construiu o primeiro laboratório de físico-química em São Paulo. Como compara os laboratórios daquela época com os de hoje, nos quais basta apertar um botão e surgem os resultados tabelados e num gráfico?

Houve quase uma revolução sob esse aspecto. Naquela época não havia recursos. Para fazer qualquer coisa mais criativa a pessoa tinha que idear e construir seu próprio aparelho, tudo com suas próprias mãos. Eu havia estado nos Estados Unidos entre 1942 e 1944, na Universidade de Wisconsin. Lá, e em outros lugares, tive uma ideia bem clara de como ensinar físico-química. Ao voltar, propus a construção do laboratório e tive que criar uma pequena oficina mecânica e treinar um técnico vidreiro. Construí os aparelhos, as células dielétricas, e por eles foram passando meus estudantes. Foi assim que começou o ensino de físico-química em São Paulo.

Era mais sólida a. formação de um cientista experimental nesse tipo de laboratório, construído por ele mesmo?

Há um aspecto quase filosófico nisso, porque a pesquisa científica é um ato no qual o pesquisador está em contato com a natureza através de seus sentidos. A introdução da aparelhagem moderna de certa forma cria um obstáculo entre o pesquisador e a natureza. Eu diria que naquela época havia um contato mais direto. A aparelhagem era mais simples, o próprio pesquisador construía seu aparelho, que era uma extensão de seus sentidos.

Mas a aparelhagem moderna simplifica extraordinariamente a tarefa de pensar do pesquisador, não é?

Claro, o que levava um ano para ser medido hoje é feito em uma semana. Se eu hoje estivesse ativo na pesquisa, aguardaria a chegada dos novos modelos de aparelhos com a mesma ansiedade de todos.

Professor Mathias, eu gostaria que o senhor falasse um pouco desse personagem sempre onipresente quando se trata das origens da química no Brasil, Heinrich Rheinboldt, que criou o departamento de química da Faculdade de Filosofia.

Bem, ele era o típico Herr Professor, a figura tradicional do professor universitário alemão, extremamente formal. Em pesquisa química de nível contemporâneo, ele foi o primeiro, não só em São Paulo, mas em todo o Brasil. Mas eu diria que ele foi antes de tudo um educador, um grande educador. Com ele não só aprendemos química, mas também a disciplina no trabalho, o respeito mútuo. Rheinboldt foi um dos professores europeus convidados por Teodoro Ramos, quando foi fundada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, junto com Wataghin para a física, Fantappié para a matemática, Breslaw para a zoologia e Ravitcher para a botânica. Todos grandes nomes, já conhecidos internacionalmente. Minha geração foi privilegiada, pois tivemos a oportunidade de usufruir desse ambiente europeu da mais alta erudição.

Professor Mathias, quando se cogitou de reunir todos os departamentos de química da universidade num único instituto, processo aliás coordenado pelo senhor, teve um papel importante um donativo de 500.000 dólares da Fundação Ford, que propiciou a construção do conjunto. O senhor acha que esse donativo era fruto de uma visão da indústria química como etapa preliminar importante no surto de industrialização que ocorreria depois?

É possível. Eu não sei que razões levaram a Fundação Ford a oferecer o donativo, mas não foi só a Ford. Tivemos muitos recursos nesta época, o que aliás reforça a hipótese da sua pergunta. O BNDE ajudou, o CNPq ajudou, e até a Capes. Foi um período realmente de muitos recursos. E hoje, de fato, o Instituto de Química da USP é o mais importante centro de pesquisas químicas da América Latina, com um ativo intercâmbio com o exterior.

O Instituto de Química sempre teve mais ligação com a indústria do que outros departamentos da Faculdade de Filosofia. Por outro lado, há pouca pesquisa básica na indústria nacional. Como o senhor explica isso?

A química é a base da indústria e é uma ciência essencialmente experimental. Só nos últimos anos, a indústria passou a requerer, além de químicos, também pessoal de eletrônica, físicos de estado sólido etc. Mas a ligação da química com a indústria sempre ficou dentro de limites, porque toda a indústria está praticamente nas mãos das multinacionais e tem seus centros de pesquisa no exterior. Apenas nos últimos anos, uma ou outra empresa instalou laboratórios aqui, sempre de pesquisa aplicada.

Professor Simão Mathias, o Instituto de Química também sofreu processo de queda no nível de ensino em virtude da massificação dos últimos anos?

Na química isso também ocorreu, mas em menor escala. A minha opinião é que o Instituto de Química conseguiu manter o rigor de ensino e pesquisa. Mas de uns anos para cá, estamos correndo novo risco de provocar queda no nível de ensino, devido à lei que criou o ingresso na carreira de magistério superior por concurso. Muitos jovens sequer tiveram tempo de completar o mestrado, ainda não publicaram trabalhos, e já se tornam docentes através de concurso. Então, corremos o risco de ter um número grande de elementos medíocres que, uma vez dentro da universidade, nunca mais saem.

Aliás, apesar de ter sido o primeiro doutor em ciências da Faculdade de Filosofia, o senhor sempre foi contra os concursos, não é?

Sim, e agora mais do que nunca. Basta ver como as universidades europeias selecionam seus professores. Ninguém se torna um professor numa universidade europeia ou americana sem ter se revelado como cientista. Na Alemanha, quem indica o novo professor é uma comissão formada por cientistas não só alemães mas também de outros países.

Sua menção à mediocrização do ensino nos remete à luta pela reforma universitária do final dos anos 60, na qual o senhor teve uma participação ativa. Poderia falar sobre isso?

É extremamente difícil, porque me envolvi com tal paixão que não consigo ainda hoje fazer um depoimento objetivo. Mas tanto quanto possa me lembrar daquela atmosfera, foi uma luta para salvar alguns princípios fundamentais. O que nós propúnhamos era a criação de uma universidade nos moldes e no espírito da antiga Faculdade de Filosofia. Um lugar onde as ideias se desenvolvessem sem inibição, onde houvesse um intercâmbio vivo de ideias, um contato entre os homens das ciências exatas e das humanas, a verdadeira universidade. Mas éramos ingênuos. Acreditávamos que esse espírito poderia ser incorporado à Universidade de São Paulo e nos esquecemos da força da tradição das escolas profissionais do passado incorporadas à USP,à Politécnica, à Medicina,à Faculdade de Direito. Elas tinham tradições muito mais fortes...

Foi nessa época também da luta pela reforma universitária que o senhor se destacou como um dos dirigentes da SBPC. Poderia falar como isso se deu?

Nessa época entrei para a diretoria da SBPC, da qual já era um dos primeiros membros. Achei que a SBPC poderia entrar na luta pela preservação dos valores universitários e para isso era preciso torná-la uma organização grande como a equivalente norte-americana, que tinha então 140.000 membros. Era necessário também interligar setores das ciências exatas e naturais com as humanas. Foi a partir dessa época, que a SBPC começou a ganhar maior dimensão, até culminar com a Reunião Anual de 1977, que teve de ser feita em São Paulo devido à falta de auxílio governamental para a sua realização em Fortaleza, como estava programado.

Professor Mathias, uma última pergunta: o que o senhor faz hoje, já aposentado da físico química?

Realizo um sonho da juventude. Estudo história e filosofia da ciência. Já publiquei um trabalho sobre alquimia, que é parte de um plano de estudo da filosofia da ciência à luz da evolução da química. Desde o secundário eu me interessava por isso e meu interesse foi estimulado pelas longas conversas com o professor Rheinboldt, que conhecia profundamente a história da química.

Título

Entrevista concedida a Bernardo Kucinski, jornalista.