Entrevistas concedidas a Carlos Fausto e Yonne Leite (Museu Nacional/UFRJ) e Carmen Weingrill e Vera Rita da Costa (Ciência Hoje)

Midia

Part of Entrevista Roberto Cardoso de Oliveira

Publicada em março de 1993

O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, membro honorário do Real Instituto de Antropologia da Grã Bretanha e Irlanda, Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio de janeiro, é um professor que se sente honrado de ter esta profissão. Ele a considera mesmo: um contrato divino, no sentido clássico". Mas a emoção veio também com a prática indigenista, como etnólogo do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) - "eu tinha a sensação de ter o Brasil nas mãos". Autor de mais de 12 livros, com diversas publicações no Brasil e no exterior, foi fundador do programa de pós-graduação do Museu Nacional/UFRJ, e da UnB, e participou do início do programa na Unicamp.

Nesta entrevista, Roberto Cardoso de Oliveira fala sobre a consciência hermenêutica, discute a pós-modernidade e os possíveis rumos da antropologia no Brasil, que ele considera bastante moderna.

Roberto, uma entrevista com um antropólogo deve sempre começar pela genealogia. Conte-nos um pouco de suas origens familiares.

Você sabe que numa sociedade como a nossa, que não é uma sociedade unilinear, em que você seguiria uma das ancestralidades, se você tem quatro avós, tem oito bisavós, 16 trisavôs, 32 tetravôs e assim por diante. Então, por que você seleciona uma ancestralidade? Isso tem um peso, inclusive sociológico. Por que você seleciona, digamos, entre tetravôs, um, e, não, 32? Minha família, por exemplo, acabou enfatizando uma linha porque ela foi muito mais significativa para sua formação. É uma linha que começa em 1785, quando o meu tetravô, Stanislau José de Oliveira, veio de Portugal para Campinas como professor de retórica da Corte, naturalmente expulso de Portugal, considerado livre pensador. Devia ser cristão novo, e acabou, talvez por questões religiosas, convidado a se retirar. Veio, então ao Brasil, como professor de retórica, onde chegou a ter como aluno, em Campinas, o Padre Feijó, futuro regente do Império.

Então, já havia na sua família uma tradição intelectual?

Na realidade não. O primogênito de meu tetravô transformou-se em um grande fazendeiro naquela área, tornando-se Visconde de Rio Claro e Barão de Araraquara. Esses títulos de nobreza, ele recebeu porque permitiu que a estrada de ferro Araraquara passasse por suas terras e ajudou a construí-la. O filho dele, meu bisavô, que retomou o nome do avô dele, Stanislau José de Oliveira, foi o segundo Barão de Araraquara. Este continuou como fazendeiro, mas depois mudou-se para São Paulo e morou lá nos Campos Elíseos. Minha avó, sua filha, casou-se com um fazendeiro também, L. Cezar de Mattos, de Piracicaba, que nas crises econômicas da época perdeu dinheiro com o café e veio morar em São Paulo, onde comprou uma casa na rua Bahia, bairro de Higienópolis, bem perto de onde moro atualmente. Nessa casa eu nasci. Meu pai, que morreu aos 32 anos, comercializava café e o exportava pelo porto de Santos. Ganhava muito dinheiro — e perdia também — com as quedas do café. Aliás, foi nessa cidade que conheceu minha mãe, quando ela e meus avós passavam férias na praia. Minha mãe conta que ele ganhou duas fortunas e perdeu igualmente as duas. Não existia, então, tradição intelectual. A vida intelectual da família recomeça comigo.

E como você acaba se encaminhando para a filosofia. Houve influência de algum professor?

Não tive nenhuma influência muito marcante no colégio. Aos 16 anos é que decidi ser filósofo e comecei, então, a ler. Eu achava que aquele negócio de filosofia era ler. Um amigo, estudante de filosofia, me orientou para o estudo da disciplina. Nós havíamos nos conhecido em São Joaquim da Barra, onde eu passava férias com meus primos. Depois eu me articulei com a turma dele, que era de estudantes do Colégio Paulistano, na Aclimação. Esse grupo de "brinquedo", eu diria, me influenciou muito, porque tinha os livros disponíveis, eu lia, me interessava e dei uma guinada para a filosofia.

Qual foi a reação de sua família?

Minha mãe ficou perplexa porque o seu grande sonho era que eu trabalhasse no Banco do Brasil. Tínhamos um primo que era alto funcionário do banco. Para uma família que havia perdido todo o dinheiro na queda do café e nas crises do país era preciso ter um salário, e um salário muito bom, porque se você não tem o capital, não tem mais terras, só pode sobreviver com um bom emprego. O susto só não foi maior porque, na época, um professor da USP ganhava muito bem, era um dos melhores salários pagos no país.

Na filosofia quais os professores que foram mais importantes em sua formação?

Eu entrei na Universidade de São Paulo em 1950, no tempo da rua Maria Antônia, e nessa época a área da filosofia era praticamente dominada pela influência francesa tanto assim que os professores que mais me influenciaram na área de filosofia foram franceses. Em primeiro lugar, o professor Gilles Gaston Granger, que influenciou inclusive minha visão de universidade. Outro professor, muito importante, foi Marcel Guéroult, que trazia a experiência francesa de cursos inteiramente escritos. Depois, ainda como professores franceses visitantes, tivemos, já no final, Claude Lefort que deu um curso muito interessante sobre Max Weber. Dos outros professores, falaria mais de um de quem poucos falam, mas que para mim foi muito importante, que é o Lívio Teixeira. Ele era um professor extremamente modesto, mas que dava os cursos de maior responsabilidade, os cursos monográficos, através dos quais a gente aprendia filosofia.

Em entrevista publicada há pouco no Current Anthropology, você diz que foi Granger quem lhe transmitiu o ethos acadêmico. Que ethos é esse?

E assumir a profissão de professor universitário tendo como referência um campo de honra básico, sentir-se honrado de ter esta profissão. Você atualiza essa honra diuturnamente, o famoso full time o tempo integral. E mais do que um simples contrato de trabalho, é um contrato divino, no seu sentido mais clássico. Desde que você assume a profissão de professor universitário você carrega todos os deveres e você se compraz desses deveres. É o conjunto desses deveres que constituem alguém como pessoa. É você procurar ensinar, dialogar, procurar exercitar a profissão, nas suas duas faces, o ensino e a pesquisa, a comunicação e a produção de conhecimentos.

Como se dá a passagem de seu interesse pela filosofia para as ciências humanas?

O estudo dos grandes filósofos auxiliaram a minha formação, mas o que me chamava a atenção como tema não era a história da filosofia. Eu estava então muito interessado nos trabalhos do Granger e na área de lógica, sobretudo em epistemologia. O grande tema para mim era a lógica das ciências, sobretudo a lógica das ciências humanas, razão pela qual eu, simultaneamente ao curso de filosofia, comecei a acompanhar os cursos de sociologia do Florestan Fernandes e do Roger Bastide. Já naquela época, eu achava que seria uma boa linha de trabalho ter uma visão dessas disciplinas, para depois trabalhar com a epistemologia das ciências humanas. Florestan, certamente mais que Bastide, foi uma das âncoras na minha formação. Por muito tempo eu coloquei duas âncoras principais na minha formação: Granger e Florestan. Mas, bem mais tarde, descobri que havia outra, bem escondida à qual nunca havia dado o valor necessário, mas que hoje eu dou, que foi Lívio Teixeira.

Como você se iniciou em etnologia indígena?

Eu terminei a universidade em 53 e, em janeiro de 54, já estava no Rio trabalhando em etnologia, convidado por Darcy Ribeiro, que então era um jovem antropólogo com uma capacidade criativa muito grande. Ele era sobretudo um manager excepcional: tinha organizado o Museu do índio e ativava toda a antropologia no Rio de Janeiro. Eu não tinha formação em etnologia e em 54/55 não fiz outra coisa além de ficar lendo, estudando e discutindo com ele. Em 55, o Darcy deu um curso de aperfeiçoamento em antropologia cultural e eu me tornei seu assistente. A minha entrada na antropologia já se dera com Florestan trabalhando com seus textos sobre os Tupinambás — e em parte com Bastide em seus estudos sobre o negro — mas meu ingresso na etnologia indígena mesmo, de índios vivos, foi no Museu do índio, com o Darcy Ribeiro.

Em que, então, a experiência no Museu do índio contribuiu para sua formação?

O que eu realmente aprendi no Rio foi sobre a realidade indígena brasileira, que me veio mais por uma prática indigenista do que por uma prática teórica. Eu comecei a ter, pela primeira vez — para um aluno de filosofia, cuja referência maior era a Europa, sobretudo a França, e que não sabia nada de Brasil — uma visão do país através das populações indígenas espalhadas pelo território nacional e que me chegavam através dos relatórios das inspetorias regionais. Eu tinha a sensação de ter o Brasil nas mãos, porque tinha informação de todas as regiões, sobretudo sobre situação de contato entre índios e brancos.

Você via tudo isso com entusiasmo ou com uma certa vertigem de estar se afastando da filosofia?

Não, eu não tinha vertigem. Em primeiro lugar porque eu tinha colocado como projeto de vida aprender antropologia, já que eu não tive muita chance de aprender sociologia, pois não me licenciara em ciências sociais. Desde que fui para o Serviço de Proteção aos índios, eu me dediquei totalmente a aprender etnologia, mas sempre com essa preocupação de não perder de vista a sociedade brasileira. O que sempre fez mais sentido para mim, foi estudar as populações indígenas, mas através delas tentar perceber essa face, que na época era muito mais obscura do que hoje, que é a dimensão agressiva da sociedade brasileira. Para mim era a face escura da lua — a relação entre a sociedade brasileira, definida teoricamente como morada do homem cordial, e esta mesma sociedade que liquidava as populações indígenas. E isto chegava a mim não pelas monografias que lia — porque os antropólogos tendiam a ficar muito presos à cultura, quase como se fosse uma coisa deslocada das pessoas de carne e osso que eram portadores dessa cultura — mas pelos relatórios indigenistas dos encarregados dos postos e dos delegados regionais. O índio aparecia para mim exatamente por aí, o que explica talvez por que meu trabalho era muito focalizado sobre relações interétnicas.

Para todo antropólogo a primeira experiência de pesquisa de campo tem um sabor de batismo profissional. Como foi a chegada do filósofo recém-formado e com estudo de um ano em antropologia nos Terena em 1955?

Eu tinha uma curiosidade enorme de ver um índio, que eu só havia visto em texto. Ficar numa aldeia, encetar relações com essa população era uma questão nova para mim. Não foi, contudo, traumático, talvez porque minha experiência foi atípica no que se refere ao pesquisador do campo, porque eu fui como etnólogo do SPI. Quando cheguei no campo, eu era uma pessoa que tinha uma autoridade sobre o encarregado de Posto Indígena, e eu não tive a experiência, que quase todos meus alunos tiveram, de ter que enfrentar o funcionário do Posto para poder fazer o seu trabalho. Lá eu mandava, mas mandava mesmo. Se eu achava que ele estava fazendo besteira, e besteira para mim eram atitudes etnocêntricas, eu não admitia. Eu tinha uma posição um pouco de guardião do índio, o que fez com que não só tivesse interferência, mas nunca me preocupasse em não ter interferência; eu achava que eu tinha de cumprir a função de indigenista simultaneamente com a de pesquisador. Isto é, lutar pelos direitos indígenas em qualquer circunstância.

Mas você como funcionário do SPI não passou pelo duro processo de negociação em torno dos "presentes", um aspecto delicado da relação pesquisador/índios?

Eu passei também por isso pelo seguinte: eu me assumia como funcionário com relação aos funcionários de postos e aos missionários que apareciam lá. Mas com relação aos índios eu me conduzia inspirado na tradição da pesquisa antropológica. Eles vinham falar comigo, me visitar, e eu tinha brindes. Qual eram os brindes que eu tinha? Entre os Terena o melhor presente eram os brindes coletivos. Então, eu logo mandei fazer engenhos para eles esmagarem cana e fazer garapa, fazer açúcar. Como atividade lúdica dos índios eu comprei bola de futebol, dois jogos de camisas diferentes para jogarem e eu jogava com eles. Todos os sábados, eu era o festeiro. Dava dinheiro para comprar café e eles compravam pinga por conta deles e escondiam no cerrado. No meu quarto, tinha sempre um saco de mate porque é uma área muito influenciada pela erva-mate (os índios, mais do que chimarrão, tomam tereré que é o mate frio que eles levam à roça). Então, todo o mundo que vinha me visitar, sobretudo as velhas, pediam "tereré, doto" e eu dava. No começo, dava cigarro também, mas eu não tinha como sustentar cigarro, e passei a fumar cachimbo.

Assim, logo fiquei com uma relação muito boa, porque era muito jovem, jogava futebol com eles, era festeiro, dava os bailes nos fins de semana, dançava xote, dava pó de café, pagava o sanfoneiro e dançava. E graças à dança nos fins de semana e ao futebol semanal, a minha vida durante meses passou muito mais rápida, porque se no começo eu jogava mais para fazer rapport, depois eu senti que estava jogando porque queria jogar, porque eu gostava do jogo e dançava porque gostava de dançar com aquelas moças.

Há uma foto sua entre os Terena, publicada recentemente, em que você traz um cachimbo enfiado na quina da boca e um revólver na cintura. Estes objetos parecem marcar a dupla identidade do pesquisador em campo: a de intelectual e a de "aventureiro". O revólver era necessidade ou etiqueta local?

Usar revólver era como andar de gravata. O encarregado de posto já me falou desde o começo: "Olha Dr. (e eu não era Dr., mas ele me chamava de Dr.) aqui macho tem que usar revólver. Tem duas coisas que macho tem que fazer para ser respeitado, usar o revólver quando for na cidade por a camisa por cima, porque a educação manda." Beleza isso, não é? Eles tem que sentir que você tem revólver, mas você não expõe o revólver. Só quando você está no mato, na aldeia, mas na cidade, em Miranda, você botava a camisa por cima.

E você cumpria a etiqueta do local...

Cumpria, exatamente. E a outra coisa era não montar em égua, só se montava cavalo e, se possível, boludo. O capitão da aldeia me vendeu o cavalo dele, macho, mas castrado. E era muito interessante porque eu fui várias vezes à aldeia, e a cada vez ele me vendia novamente, depois eu devolvia para ele. No fundo eu pagava o aluguel do cavalo, mas dessa forma eu tinha também um cavalo macho. Então, havia essas duas regras: usar o revólver e montar um cavalo, boludo se possível, senão macho; égua não, e égua barranqueira jamais.

Vamos voltar para a teoria. Os dois grandes modelos de contato entre populações indígenas e sociedade nacional disponíveis na época eram o modelo da aculturação, do culturalismo americano, e o da mudança social, mais afeito ao funcionalismo britânico. Como é que você começa a elaborar o seu modelo em contraposição a essas teorias?

Essas duas teorias - sobretudo o culturalismo americano - estavam disponíveis no mercado. Agora, eu já sentia insuficiente a teoria da aculturação desde meu livro Processo de assimilação dos Terena. Eu registro isso quando trabalho com a noção de assimilação, que oponho à aculturação (que seria um momento do processo de assimilação, cujo outro momento seria a perda da identidade). No livro eu não defendia a assimilação, absolutamente, mas apenas usava o conceito para mostrar que os Terena não estavam assimilados e nada os levava à assimilação, porque, embora eles perdessem a cultura, a identidade tribal está cada vez mais forte. Essa é a tese do livro. No começo dos anos 60, comecei a ter um contato maior com o Centro Latino Americano de Pesquisas Educacionais, onde Rodolfo Stavenhagen estava fazendo doutorado, orientado pelo Balandier. As ideias do Balandier expressas no livro LM sociologie de l'Afrique noire foram fundamentais para que eu começasse a trabalhar com a noção de colonialismo e de colonialismo interno, em cuja base estava uma leitura de experiência africanista do Balandier. A noção de colonialismo interno foi muito importante para consolidar uma linha de investigação de caráter bastante sociológico, influenciada pelo marxismo.

Em um de seus artigos, você afirma que a fricção interétnica é o equivalente lógico, mas não ontológico, da luta de classes. Qual a apropriação que você faz? do marxismo nos estudos de contato entre índios e brancos?

O marxismo foi sempre uma referência e que está muito misturada, do ponto de vista de uma antropologia cultural, com um certo sociologismo que eu trazia da minha formação em São Paulo. Tanto assim, que quando discuto a questão da fricção interétnica na introdução de O índio e o mundo dos brancos (1964), e faço uma crítica ao conceito de aculturação, eu estava querendo desenvolver um modelo de investigação que privilegiasse o conflito e não o consenso, muito mais os desequilíbrios do que os equilíbrios. Eu sentia que na noção de cultura, o que se privilegiava tanto na tradição americana quanto na inglesa era muito mais os sistemas de equilíbrio. Então, aí evidentemente Marx estaria presente, na medida dessa minha ênfase no conflito. A questão de classe social estava aí naturalmente. Por isso, quando eu falo que é uma estrutura lógica mas não ontológica, é porque eu senti que na relação entre índios e brancos o fato do antagonismo marcava, digamos, a essência do sistema. Então, cabia a mim investigar essa relação que, apesar de ser conflitiva, criava o sistema.

Mas não um sistema de classes...

Não, pois o conteúdo era diferente. Era preciso mostrar que etnia não tinha nada a ver com classe, para evitar o reducionismo classista que alguns antropólogos da América Latina tentavam operar. O que significava isso? Era tornar a etnia um epifenômeno, e a classe como um grande fenômeno substancial. Eu queria mostrar, ao contrário, que a etnia tinha tanta densidade, tanta realidade quanto a classe, e que no caso das populações indígenas, o sistema que se criava era um sistema interétnico e não um sistema de classes. Nos estudos da situação de classe dos índios, a etnia seria um sobredeterminador. Em 67 é que eu escrevo isso: "Problemas e hipóteses relativos à fricção interétnica", que é o sétimo capítulo da Sociologia do Brasil indígena, onde a minha intenção era ver como era constituído esse sistema interétnico e o que fazia com que ele se mantivesse articulado.

Nesse momento você ainda não trabalha com o tema da identidade étnica, que marca seus escritos da década de 70. Como surge esta questão?

Após defender minha tese de doutorado em 1966, eu retomei uma pesquisa que eu tinha desenvolvido entre os Ticuna, onde ainda estava trabalhando ao nível das relações sociais. Achei, então, que faltava uma análise da dimensão política, e tentei desenvolver uma análise da política nesse modelo. Três anos depois, eu fui para os Estados Unidos e fiquei um período em Harvard lendo. Foi, então, que eu comecei a trabalhar com a questão das representações, inspirado pelos trabalhos do grupo de Frederick Barth. O problema era muito claro, porque naquela época a antropologia havia dado o grande salto no que se refere ao estudo das representações, a partir dos trabalhos de Lévi-Strauss — sobretudo os seus escritos de 62, La pensée sauvage Le totemisme aujourd'hui. Nesse período eu achava que os meus trabalhos estavam marcados por um certo sociologismo, talvez privilegiando exclusivamente as relações sociais, e que faltava trabalhar o campo das representações. E para mim, o mais relevante nesse campo era a representação do Eu ou do Nós; isto é, o problema da própria identidade do grupo, como o índio se auto-identifica, e nessa auto-identificação como o índio se situa. Assim, durante os anos 70 me dediquei à questão da identidade, publicando os quatro ensaios que compõem o livro Identidade, etnia e estrutura social e dois outros ensaios que são parte do livro Enigmas e soluções, sobre etnicidade.

Ao lado de sua trajetória intelectual, você construiu um trajetória institucional como um dos fundadores do programa de pós-graduação do Museu Nacional, da UnB e da Unicamp...

Eu me considero fundador do programa do Museu Nacional e de Brasília e participei do início do programa da Unicamp. Acho que no caso da Unicamp foi muito importante para mim participar de uma obra coletiva, o que foi uma experiência nova porque, tanto no Museu Nacional como na Universidade de Brasília, eu senti como uma tarefa muito pessoal. No Museu Nacional, eu praticamente me lancei na coisa como desdobramento dos cursos de especialização que tinha dado a partir de 60. Achava importante continuar essa experiência de três anos, que eu sentia como um prolongamento da minha formação de aluno da USP, pautada na ideia do tempo integral, da ética de normalien da escola francesa. E no Rio de Janeiro não havia uma grande tradição de tempo integral. Eu acho que, no Rio, o Museu Nacional foi o primeiro a criar esse padrão em que a pesquisa e o ensino estão muito associados. Os alunos todos tinham recursos para a pesquisa e a pesquisa em antropologia não é barata, se você leva os alunos ao campo. E barata se você faz pesquisa urbana, mas se você leva para populações indígenas, para populações rurais, é cara e nós tivemos recursos para isso e acho que foi importante.

Em 72, fui contratado pela Universidade de Brasília com a missão expressa pelo próprio reitor, que era o Dr. Amadeu Cury, de organizar a pós-graduação em antropologia. Em Brasília, eu não tinha, como no Museu Nacional, que administrar recursos, porque eles eram administrados pela própria Universidade. Pudemos contratar várias pessoas: a Alcida Rita Ramos, o Ken Taylor, o Klaas Woortmann, o Peter Silverwood Cope. E já estavam lá, o Roque Laraia e o Júlio César Melatti, entre outros.

Essas experiências foram muito confortadoras para mim porque — eu digo a vocês hoje, que estou aposentado — a coisa que certamente me dá mais prazer é poder ter contato com jovens e estar debatendo, dialogando, exercitando a função de professor. Aposentadoria para mim é muito mais um afastamento absoluto da administração, você não tem que administrar mais nada, na melhor das hipóteses você administra sua própria vida, o que já é complicado.

Como se dá seu retorno à filosofia, em particular à epistemologia?

Lendo as coisas que escrevi no passado, vejo que sempre procurei trabalhar no reino da definição dos conceitos, talvez por força de minha formação. Sempre fiz antropologia, precisava fazer, gostava de fazer, mas nunca perdi o elo com a minha

disciplina de origem. Não que eu pretenda ser filósofo, mas acho que por não perder esta dimensão, hoje me sinto em condições de refletir melhor sobre a antropologia, tendo um distanciamento mínimo, uma capacidade de "estranhamento". Para você "estranhar" a sua disciplina você tem que ter condições de sair dela e, se sai dela, tem que estar em algum outro lugar, não há uma terceira posição. A epistemologia permite estudar justamente a natureza do conhecimento fornecido por uma disciplina e testar seu limite. A disciplina não é apenas um instrumento de conhecer o outro, mas algo que se pode conhecer também — ela é o mediador entre o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido. Ela está no meio, como um cristal, em que os raios incidem. Esse cristal tem um efeito. O que eu quero mostrar é que o conhecimento que você tem do objeto não é puro, é um conhecimento construído por um artefato que o medeia.

Essa volta à filosofia é sua, e num certo sentido também da antropologia, via o que se chamou, de modo impreciso, de pós-modernidade na disciplina. Como é que você vê esse movimento global da antropologia?

Isso daria para falar horas. Mas vou tentar ser muito sucinto. É um bom tema e eu gostaria de poder falar porque é uma oportunidade para destruir equívocos. As pessoas que ouvem dizer que o Roberto Cardoso está falando sobre hermenêutica tentam me identificar como defensor de uma antropologia pós-moderna. Em primeiro lugar, eu faço uma diferença entre a consciência hermenêutica e o problema hermenêutico. Eu acho que na antropologia desde as suas origens modernas — e eu coloco origens modernas com Malinowski, digamos, se quiser mesmo com Mauss — a consciência hermenêutica esteve presente. A interação quase dialógica com o outro, essa preocupação em penetrar na subjetividade do outro, e a criação, consciente ou não, de uma inter-subjetividade, faz um pouco parte da própria história da disciplina. Então, a consciência hermenêutica é algo que acompanha o desenvolvimento da disciplina, ainda que a questão hermenêutica não tenha sido tematizada enquanto tal. Esta questão começa a ser tematizada mais recentemente, sob a inspiração do que eu chamo de paradigma hermenêutico (que é um paradigma do século XIX), e que coloca para o antropólogo um problema que o obriga a refletir criticamente sobre o ato de textualizar a cultura que ele estuda, e sua posição enquanto autor.

A chamada antropologia pós-moderna, contudo, que procura atualizar esse paradigma, o faz de uma maneira incompleta, porque pega desse paradigma o desconforto com a autoridade do autor, mas por outro lado, abre mão de uma tradição, digamos científica, que está contida nos outros paradigmas que fazem a disciplina como nós a conhecemos.

Quais seriam esses paradigmas?

Eu falaria em pelo menos três paradigmas, que eu chamo paradigmas da ordem: o funcional-estruturalista na tradição inglesa, o culturalista na tradição norte-americana, e o racionalista na tradição francesa, que se exprime modernamente no estruturalismo de Lévi-Strauss. Então, o paradigma hermenêutico, a meu ver, pode ser pensado como um enxerto na matriz disciplinar formada por esses três paradigmas. Na medida em que nós pudermos enxertar a questão hermenêutica nos paradigmas da ordem, eu acho que a matriz disciplinar ganhará um dinamismo muito grande.

Por outro lado, os perigos da aplicação tardia do paradigma hermenêutico estariam em reduzir a antropologia a meros experimentos, que é uma tendência da chamada antropologia pós-moderna. Essa tendência é um desenvolvimento perverso da disciplina. Eu espero, ao contrário, que ao trazer a questão hermenêutica, eu esteja trazendo uma nova dimensão do saber, que seria aquela dimensão não tangível pelo exercício de métodos, essa dimensão que, como diria Paul Ricoeur, você trabalha num nível de um excedente de valor, um excedente de significação. São esses excedentes de significação que não devem ser postos fora, em nome de não estarem abrigados em metodologias canônicas. Esse é o acréscimo que poderíamos oferecer a uma disciplina que, sobre ser científica, não deve ser cientificista, pois ela deve se abrir a certa dimensão do real capaz de ser aprendida pela interpretação.

Felizmente, a nossa disciplina não sendo exata, temos um espaço bastante grande para exercitar a imaginação. Eu acho que se a imaginação é exercitada no nível nomológico e no nível dos próprios métodos — porque sem ela se aplicam mal os métodos — muito mais ela vai ser exercitada no nível da interpretação compreensiva. Nós podemos, então, acolher essa faculdade interpretativa de uma maneira natural no exercício da antropologia.

Como você avalia a antropologia feita no Brasil?

Eu acho que a antropologia brasileira é uma antropologia bastante moderna, no sentido de bastante atual, porque nesses últimos 25 anos tivemos ensino de antropologia em moldes que eu chamo modernos. O que é "em moldes modernos"? A pesquisa e o ensino sempre articulados, e os professores e alunos funcionando em full time.

Por outro lado, acho que a grande virtude da antropologia brasileira, em relação aos outros países latino-americanos, é que ela foi menos ideologizada, menos influenciada por uma concepção terceiro mundista, que se refletiu em universidades submetidas a uma influência muito forte do marxismo vulgar. Há casos, entretanto, que o pensamento marxista teve um papel mais consistente na formulação de antropologias do tipo que eu chamo de periféricas. E o caso, por exemplo, da antropologia quebequense, no Canadá francês. Nesse exemplo, encontra-se uma antropologia influenciada simultaneamente pelo estruturalismo levistraussiano, pelo marxismo e por uma consciência étnica considerável. O processo de etnização da antropologia canadense francófona exprime aí um estilo marcador de forte identidade étnica, como que traduzindo um evidente antagonismo com o poder central canadense, anglófono.

Você compararia a antropologia feita no Brasil com a de algum outro país?

Com a antropologia espanhola. A antropologia ensinada lá é mundial, recebendo a influência de todo lugar, da Inglaterra, Estados Unidos e da França. Tanto quanto nós, eles recebem esses influxos de todas a áreas, porque não tem uma tradição antropológica mais densa, como também nós não temos. E eles são modernos, tem bons antropólogos. Eu acho que, agora, temos que começar a olhar para os lados e ver os centros de ensino que estão numa posição igual a nossa. Inclusive para internacionalizar um pouco mais a pesquisa e a antropologia no Brasil, porque nós estamos muito voltados para as antropologias centrais, como a norte-americana, a britânica e a francesa. Eu acho que essa olhada para o lado vai ser talvez o indicador de maturidade da disciplina. Acho que é o momento de se mudar um pouco os eixos. Ou melhor, combinar os dois eixos, isto é, a perpendicularidade que marca nosso relacionamento com as antropologias centrais; é a horizontalidade que expressa a relação com as periféricas. Aliás, sobre as antropologias periféricas, estamos preparando dois livros: Estilos de Antropologia, uma obra coletiva com a participação de antropólogos da Unicamp, da UnB, da UFMG, além de colegas da Venezuela e do Canadá, e um outro ainda sem título, elaborado a duas mãos, por mim e por meu colega da Unicamp, Guillermo Rubem, sobre as antropologias quebequenses (do Canadá francês) e catalã (na Catalunha espanhola).

Para terminar, como é ser antropólogo no Brasil?

Em países que não se tem população indígena, em que o "outro" está fora, o antropólogo vai para a Ásia, para a África, para a América Latina. O nosso "outro", porém, está no próprio país, e, nesse caso, a dificuldade é muito maior porque nós somos parte da sociedade que liquida com essa população. Em termos morais, fatalmente você tem um comprometimento. Você não precisa se tornar um militante da causa mas, ao ser um professor, você é a seu modo um militante. Você coloca questões para que a juventude possa pensar e ter uma atitude crítica em relação à sociedade a que pertence. A mensagem que o antropólogo deve passar é a de que uma sociedade pluriétnica como a nossa deve aprender a conviver com as diferenças e criar condições para que essas diferenças possam existir. Acontece que essas condições implicam terras indígenas, o que para a sociedade nacional e para o Estado como o nosso não é território indígena, é terra. E preciso fazer essa diferença entre terra e território. Terra é uma mercadoria. Território é o país! Para o índio, o que se discute é seu país. Para o branco colonizador, considerando esse processo de colonialismo interno que vivenciamos ainda hoje, discute-se uma mercadoria, o valor da terra e do que se encontra nela.

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Entrevistas concedidas a Carlos Fausto e Yonne Leite (Museu Nacional/UFRJ) e Carmen Weingrill e Vera Rita da Costa (Ciência Hoje)