Entrevista concedida a Itamar Cavalcante e Vera Rita da Costa (Ciência Hoje) e Ronald Cintra Shellard (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, do Rio de Janeiro).
Midia
Part of Entrevista Paulo Emílio Vanzolini
Publicada em abril de 1996.
Aos 73 anos, completados no dia 25 de abril, Paulo Vanzolini é conhecido internacionalmente como especialista em répteis, uma autoridade em fauna e biogeografia da Amazônia, região que o fascina e à qual volta sempre que pode, em expedições científicas. A mais recente, filmada pelo cineasta Ricardo Dias, resultou no documentário No rio das Amazonas, vencedor do último Festival de Gramado (1994), e foi tema da tese de doutorado Fotógrafo viajante, de Antônio Carlos D'Ávila, defendida na Escola de Comunicação e Artes da USP. Sobre seu trabalho científico, Vanzolini é modesto, mas admite que foi graças à lagartixa do gênero Liolaemus, base da sua Teoria dos Refúgios, e a um litro de formol que sustentou os seis filhos. E é em grande parte com os direitos autorais dos sambas inesquecíveis que compôs — como os antológicos Ronda e A volta por cima - que agora constrói um barco para a próxima expedição à Amazônia. Os que temem sua proverbial ranzinzice o apelidaram de "besta-fera". Mas para quem o conhece na intimidade — dos tempos das rodas de samba e de cerveja — é um amigo leal, apenas pouco afeito à publicidade: gosta mesmo é do sossego do Museu de Zoologia da USP, que tem 110 anos, 32 dos quais sob sua direção.
Vamos começar por sua origem familiar...
Sou filho de um engenheiro que tinha quatro lados e quatro ângulos rigorosamente iguais: ele foi engenheiro civil e eletricista e acabou realizando o seu sonho de ser professor da Escola Politécnica da USP. Isso foi importante para mim, porque acabei me criando num ambiente universitário. Eu tinha grande ligação com meu pai: à noite, ficava sentado no chão, olhando-o trabalhar em sua mesa. Os amigos dele, os que iam visitá-lo, bater papo e tomar cerveja, eram professores universitários. Nessa época, adquiri profunda descrença no professor universitário: cresci sabendo que o professor universitário pertence a uma das classe mais infelizes, menos realizadas e mais frustradas que existem. E o pior: com alta frequência de má-conduta.
O senhor é médico de formação. De onde vem seu interesse pela biologia?
Um dos amigos de meu pai, professor universitário, com enorme influência na minha vida — e a quem não se aplicam essas críticas (ao contrário, era um cara cem por cento) — era o André Dreyfus. Ele me fez estudar medicina e não biologia. No início da década de 1940, quando eu terminava o secundário, já queria ser zoólogo de vertebrados. Mas o Dreyfus disse: "Não venha para esta faculdade! O Ernst Marcus, que é professor de zoologia, não sabe vertebrados. Vá para a Faculdade de Medicina, onde o curso básico é muito bom. Depois de formado, você vai para os Estados Unidos ou Inglaterra e faz o PhD." Foi o que fiz: fui para Harvard, nos Estados Unidos. Por ser formado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com o curso básico que eu tinha, dispensei metade dos créditos.
Então, seu interesse por zoologia de vertebrados começou na adolescência?
Eu era muito rebelde em matéria de escola e detestava as aulas. Meu pai era o contrário, e tremia de medo cada vez que eu tinha de fazer um exame. Então, ele me subornava. Na época de entrar para o ginásio, ele me prometeu uma bicicleta se eu passasse com distinção. Eu, é lógico, entrei. Peguei a bicicleta pela primeira vez e... -onde vocês acham que fui? — fui ao Butantã e me apaixonei. Eu tinha dez anos quando me apaixonei pelas cobras e pelos répteis. Desde então, trabalho no assunto.
Onde estudou no secundário?
Comecei num colégio chamado Liceu Nacional Rio Branco, aqui em São Paulo, considerado muito moderno. Depois, passei para o Ginásio do Estado, na rua das Flores, centro velho da cidade. Era um ótimo colégio. No quarto ano, resolvíamos problemas de física por derivadas. Tínhamos também grego e latim.
O Dreyfus não tentou atrair o senhor para a genética?
Não. O Dreyfus me conhecia desde que nasci, eu sempre visitava seu laboratório. Quando veio para São Paulo, não tinha cargo universitário. Era um franco-atirador: vivia de dar cursos de atualização em citologia, embriologia e genética. Era um conferencista brilhante, mas nunca tinha feito pesquisa alguma. Dava cursos de todos os assuntos, principalmente para os médicos. Mas o conselho de Dreyfus foi fundamental para mim, porque quando cheguei à Universidade de Harvard para fazer o doutorado em zoologia, em vez de fazer 16 créditos, tive de fazer só oito. Imagine o que significa isso em tempo e em dinheiro... Sabe em quanto tempo eu fiz o PhD em Harvard? Em três semestres.
Como o senhor se manteve em Harvard? Recebeu bolsa para ir para lá?
Fui para os Estados Unidos no final de 1948. Já trabalhava no Museu de Zoologia e pude levar para lá meu ordenado. Só que eu ganhava U$l50,00, o que era uma porcaria. O que me ajudou é que nessa época meu pai deu um carro para meu irmão e um enxoval de casamento para minha irmã. A minha parte ele deu em dinheiro. Então, eu só tinha dinheiro para viver no exterior seis meses. Quando o dinheiro estava acabando, falei para o Alfred Sherwood Romer, que era o meu chefe lá: ou arranjo bolsa, ou arranjo emprego, ou volto para casa. Ele imediatamente me arranjou um excelente emprego, uma excelente bolsa e fiquei muito feliz.
O senhor chegou a dar cursos em Harvard?
E lógico, porque eu precisava viver. O James Oryant Conant, um dos caras da bomba atômica, era o reitor de Harvard e um grande idealista do ensino universitário e científico. Ele achava que ciência devia ser para todos e criou o general education, programa de cursos sobre ciência para não-cientistas. Romer era responsável por um curso de evolucionismo: eram vinte conferencistas e o Romer centralizava as coisas. Mas ele não gostava disso e falou pra mim: "O dia em que o seu inglês estiver bom, dou-lhe esse emprego". Meu inglês melhorou depressa... Quando cheguei aos Estados Unidos, lia qualquer coisa em inglês, mas não falava. Lia Shakespeare e não comprava batata. Um dia fui comprar cebola e levei quase uma hora...
Como era o ambiente em Harvard? Como era trabalhar com Romer?
Era um cara maravilhoso, mas não gostava de ter estudante de pós-graduação nos calcanhares. Tinha porque precisava, mas não se interessava pelos estudantes. Mas, comigo, tinha um relacionamento diferente. Na época em que estive em seu laboratório, Romer trabalhava com crânios fósseis da Pensilvânia. Os crânios eram deformados, porque vinham de uma região em que os estratos eram de ardósia e haviam sido comprimidos. Ele ficava no laboratório recompondo os fósseis e eu ficava por perto, ouvindo o que ele falava. Era um cara que conhecia morfologia. Aprendi pra burro com essas aulas extras. Mas a maioria dos outros professores era ruim. Na biologia, Harvard é uma farsa, uma invenção, um marketing desgraçado.
Além de grande cientista, Romer era também uma magnífica pessoa. Todos os grandes homens daquele tempo passaram por seu laboratório em Harvard. Como gostava muito de mim, sempre me chamava com outros dois ou três assistentes mais chegados para tomar um uísque na casa dele, à noite. Em Harvard, adquiri tarimba internacional. Foi lá que conheci o Julian Huxley e o Padre Teillard de Chardin. Quando conheci o Teillard, pensei que era um nobre inglês. Nunca vi alguém tão distinto e bem-vestido na minha vida.
Como eram essas reuniões na casa de Romer? Havia discussões científicas?
Que nada! Como toda reunião de cientistas, tinha era muita fofoca. Íamos lá para contar as novidades e falar mal dos colegas. Eram reuniões descontraídas. Um cara que desde o primeiro dia em Havard ficou meu amigo foi Phillip J. Darlington. Ele era o único sujeito que sabia de biogeografia naquela época e estava trabalhando em seu famoso livro Zoogeography: the geographical distribuition of animais. Na época, publicou três artigos — sobre répteis, anfíbios e peixes — e Romer pediu que três alunos preparassem seminários sobre os artigos. Apresentei o seminário de répteis e o Darlington esteve presente. Ele concordou e discordou em várias coisas e acabou me convidando para conversar em seu laboratório. Fui e ficamos amigos íntimos. Ainda outro dia, dei a espingarda que comprei por causa dele. Era um grande coletor de bichos e ajudou-me a escolher uma arma para caçar quando voltasse para o Brasil. Já que perdi uma vista e não posso mais atirar, resolvi dar a espingarda de "mão-quente", antes de morrer.
O senhor conheceu os personagens mais novos e atuais de Harvard, como o Edward Wilson, autor da sociobiologia?
Claro! Wilson foi meu colega lá e é meu grande amigo. Recebo todos os seus livros com dedicatória.
E o Stephen G. Gould?
O primeiro computador que usei na vida era dele. Era um computador que parecia um tanque de lavar roupa. Dou-me muito bem com Stephen G. Gould. Ele é um sujeito muito inteligente, mas é muito "unicamp".
O que é ser unicamp?
É marketing para todos os lados.
Quanto à teoria de Wilson e às críticas que recebe, como o senhor avalia a sociobiologia?
É uma bela teoria e um negócio muito fecundo. Tem críticas que a gente prefere nem prestar atenção, porque é só enchimento de paciência.
O senhor acha importante a capacidade de escrever de forma acessível e atingir um público mais amplo?
Eu não ligo muito para o público.
Essa é uma visão muito elitista...
Sou elitista mesmo. Faço ciência para mim e mais meia dúzia de caras. Cada um que faça o seu serviço e me deixe com o meu.
O senhor não é pessoa de meios-termos: ou tem grandes amigos, ou grandes inimigos, não é?
Tenho mais inimigos que amigos, lógico! O homem deve ser julgado pelos seus amigos e pelos seus inimigos. Nasci para ser polícia; não suporto bandidos.
Professor, descreva um pouco o ambiente na Faculdade de Medicina. Quem foram seus contemporâneos?
Terminei a faculdade em 1947 e meus colegas de turma eram extremamente medíocres. Minha turma só deu um bom cardiologista, Toshiasu Fujioka. Eu convivia com muito pouca gente e ia à faculdade mais para fazer os exames. Nessa época, já era estagiário do Butantã e meu interesse já estava definido.
Os professores da Faculdade de Medicina, daquele tempo, também eram de uma mediocridade pavorosa. Querem um exemplo? Tive uma briga com o professor de anatomia e fui reprovado duas vezes. Tive de fazer os três anos de anatomia em cinco, porque, no exame final, o professor falou: "É costume dos alunos fazer arruaça no último dia de exame. Peço que não o façam, em respeito ao seu velho professor e ao material-cadáver, pobres indigentes que resgatam suas dívidas com a sociedade servindo ao ensino dos médicos." Fiquei revoltado com esse discurso, peguei minha prova e devolvi em branco. O professor perguntou aonde eu ia e respondi: "Vou embora, vou para algum lugar onde indigente não tenha dívida para resgatar com a sociedade." Vocês acham que tem cabimento um pensamento desses? Os "pobres indigentes" resgatarem suas dívidas ensinando anatomia para nós? Mais tarde, esse professor Renato Locchi mandou o William Saad Hossne dizer-me que eu tinha razão. Mas aí eu já tinha repetido duas vezes o curso de anatomia.
Vou dizer uma coisa: a vinda dos professores europeus foi um desastre para a USP. Todo mundo fala bem deles, mas eles foram uma lástima.
Neste ponto, o senhor está mesmo contra a corrente...
Basta ver o Alfonso Bovero: era admirado como grande anatomista e cientista, mas era um decorador de terceiro time. Nunca teve uma ideia na cabeça, não fez um trabalho bonito em anatomia. Na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, tivemos também o Marcus, na zoologia, e o Félix Rawitscher, na botânica, que não poderiam ter sido piores. Atrasaram a ciência no Brasil. Quanto aos matemáticos, não sei avaliar: o Giacomo Albanese, que foi meu professor particular, fez só um discípulo, o Benedetto Castrucci. O Luigi Fantappié foi logo embora...
A que o senhor atribui isso?
Em primeiro lugar, ao sistema de cátedra. Quando fiz concurso para a cátedra de zoologia, sabe quantos assistentes tinha o Marcus? Dezessete. Quer dizer, era um professor sentado com "bunda de chumbo" no topo de uma pirâmide de assistentes. Ele era "o" professor de zoologia, mas não dava artrópodes, porque não sabia de insetos; não dava ecologia, porque não sabia.... e não dava... Era um absurdo: o cara que dava ecologia ou insetos devia ser considerado um colega, não um assistente. O sistema de cátedra significava privilégio para alguns e atraso para a ciência. Eu era contra isso, daí terem me ferrado no concurso para a cátedra de zoologia. Eles sabiam que eu iria defender o fim do sistema europeu e da cátedra e a introdução do sistema universitário norte-americano na USP.
Esse foi o único motivo de sua reprovação?
Existe um trabalho publicado pelo CNPq, de um antropólogo, o George Zarur, que mostra isso. Eu me opunha moralmente à existência de um professor com 17 assistentes. Com o dinheiro que ganhava um professor de zoologia, eu pagaria no mínimo quatro ótimos professores para ensinar vertebrados, invertebrados, ecologia e comportamento animal. Era aceitável ver o Paulo Nogueira Neto, belo especialista em abelhas, estudando peixes à noite para dar aula no dia seguinte?
Ainda hoje se diz que a zoologia é um das áreas mais conservadoras da USP. O senhor concorda?
Não, a zoologia da USP está muito boa. Melhorou muito nesses anos que passaram. Dois ex-alunos meus, de primeiríssimo time, ensinam lá: Elisabeth Hõfling, que trabalha com anatomia funcional de aves, e Miguel Trefaut Rodriguez.
Não haveria nesse episódio do concurso certa resistência ao conhecimento novo que o senhor trazia de Harvard?
Não. Eles não queriam mexer com o sistema de cátedra, coisa que sabiam que eu faria.
Voltando à história de sua vida, onde o senhor morava aqui em São Paulo? O senhor caçava passarinho quando criança?
Eu nasci na avenida Brigadeiro Luiz Antônio, região central da cidade, e jogava muito futebol. Já tinha minhas coleções de bichos, mas não matava passarinhos. Criança não deve caçar passarinho, porque não sabe fazer taxidermia. Uma coisa que insisto muito — e todos os que trabalham em museu insistem - é o problema ético: você não deve matar um bicho para desperdiçar. Você começa no passarinho, vai para o macaco, chega no homem e não para mais. Só se pode matar um bicho se for para tirar dele uma informação científica que compense. Só pelo prazer, compensa? De jeito nenhum! Matar um passarinho que você não pode aproveitar é uma estupidez.
De onde vem seu gosto e convívio com a música?
Comecei a gostar disso em 1942-1943, por causa de um show acadêmico que existia no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito, no Largo de São Francisco. Era lá que nos reuníamos para conversar e tomar cerveja. Íamos tanto que acabei me tornando o apresentador do show. Lá, havia um regional de música muito bom, chefiado pelo Manuel Pedro Pimentel, que estudava direito na época e depois se tornou desembargador e secretário de Estado. O Pimentel era o violão-base do nosso regional. Tinha também outros rapazes, como Fausto Cerri e Carlos Fernando Sá, que eram cantores profissionais. Também o Bezerrinha, que morreu outro dia. O Fernandinho-chapéu-de-palha e a Inesita Barroso também andaram por lá. O Centro XI de Agosto era nosso ponto de encontro, onde nos reuníamos para jogar sinuca e discutir política.
O senhor era militante nessa época?
Não havia militância nessa época, porque não havia partidos políticos. Havia só a estudantada que acabava sendo um partido. Éramos contra o Getúlio Vargas. Lembro-me bem do 9 de novembro de 1943, quando fomos metralhados na rua pela polícia e mataram alguns estudantes no largo do Ouvidor. Em 1944-1945 o negócio ficou extremamente sério por causa do "queremismo". O Hugo Borghi, político da época, montou um grupo de bandidos para arrebentar comício dos outros. Nesse período, fui servir ao exército como voluntário.
Foi para a campanha da Itália?
Não fui porque a guerra acabou antes. Mas teria ido, porque achava que a mudança que estava acontecendo no mundo era tão grande que para se ter autoridade moral era preciso participar diretamente. Uma bobagem, mas naquele tempo eu pensava assim. Também não quis servir ao exército no Centro Preparatório de Oficiais da Reserva (CPOR) e fui servir como praça na Cavalaria. A Cavalaria foi uma escola de vida para mim: era aquela coisa de amansar cavalo e policiar zona de baixo meretrício... Era uma vida fabulosa, se bem que nós frequentávamos coisa melhor, não aquele "fundo de poço raspado".
Qual é sua primeira composição? E dessa época?
É Ronda! Fiz a música em 1945, no tempo em que andava na "zona". Vocês veem que é um negócio de uma pieguice tremenda... O que gosto mesmo é de ter criado, com outra música minha, uma expressão que ouço todo dia: "dar a volta por cima". Fiz a música em fins dos anos 40, início dos 50, e a expressão "caiu na língua".
Sua atividade de composição era feita na mesa de bar ou de modo elaborado e sistemático?
Esse negócio de mesa de bar é besteira.
Como foi compor Ronda? Foi trabalhoso?
Não, no começo é fortuito: você pega uma frase e uma melodia que caem bem juntas e experimenta, experimenta, experimenta. Depois, larga um tempo, tem uma ideia e volta e assim vai...
Compor é como escrever um paper de zoologia?
Não, porque o paper você tem completo na cabeça. Só se tem o trabalho de condensar o assunto e ser eficiente. Na música, você cria e recria. É como se ela fosse se formando em camadas. A música nunca foi uma coisa séria pra mim. Se fosse, eu iria aprender música, coisa que não sei e para a qual nem tenho jeito. Já o trabalho científico é sério e mais difícil.
O senhor não toca nada?
Nem caixa de fósforo! Um dia o Eduardo Gudim, que é muito meu amigo, foi dar um show para uns jornalistas numa dessas convenções e pediu que o Paulinho Nogueira e eu o acompanhássemos. Quando acabou, fui muito aplaudido e o Paulinho Nogueira falou para a plateia: "Vocês são muito simpáticos, mas não entendem nada de música, porque bateram palma para o único sujeito no mundo que não sabe a diferença entre tom maior e tom menor."
Pode-se não saber música, mas ter "ouvido musical"...
Não tenho ouvido nenhum! Minha mãe tocava piano. Minha irmã também tocava piano maravilhosamente e estava sendo preparada para ser concertista, mas aí casou com um politécnico "de quatro lados e quatro ângulos iguais" e fechou o piano no dia do casamento.
Seu trabalho como cientista tem uma preocupação universal com a ciência...
Meu trabalho não tem nada de contribuir com a ciência. Isso é o menos importante. O mais importante é o prazer estético de se fazer uma coisa que exista...
Mas como pesquisador o senhor andou o país inteiro e apresenta uma temática continental. Já na sua música, a temática é paulistana...
Minha melhor música, Capoeira de Arnaldo, é uma música nordestina!
Sim, mas as músicas que marcam o senhor como compositor são Ronda, Praça Clóvis ... e os críticos também o consideram um compositor paulistano.
Não sou responsável pela existência de críticos de música ou de arte. Essas são as músicas que o povo gosta, mas tenho muita música nordestina.
Os críticos não entendem de música?
Pode ser que entendam. Eu é que não entendo. Estou dizendo o que acho: minha melhor música é Capoeira do Arnaldo, que não tem nada a ver com a cidade de São Paulo. Quer dizer: tem, porque é aqui que o cara chega do Nordeste.
O senhor conheceu o Brasil viajando com o regional?
Não. As viagens com o regional eram pelo interior do Estado. Minhas viagens de pesquisa começaram em 1938, quando eu tinha 14 anos e era estagiário no Instituto Biológico. A primeira grande viagem que fiz nessa época foi para o Mato Grosso, acompanhando o pessoal do Biológico. Fomos de trem pela estrada Noroeste, que ia até La Paz, na Bolívia. Foi uma expedição ruim demais. Ficamos só uns dias e eu fazia o serviço braçal. Na década de 40 comecei a trabalhar como zoólogo na Amazônia.
Qual foi a sua primeira impressão da floresta?
Fiquei pouco, porque não tinha dinheiro, mas achei — e acho ainda — a Amazônia o melhor lugar do mundo.
Como é o dia-a-dia nessas expedições que o senhor, ainda hoje, faz à Amazônia?
Ou se está viajando de barco, ou procurando bicho no mato, ou se está na rede. É importante descansar! Passei os anos dos militares brigando com eles, principalmente com a Marinha. Volta e meia a Marinha me prendia, quer dizer, prendia meu barco, o batelão Garbe, homenagem a Ernesto Garbe, um dos primeiros colecionadores do Museu Paulista.
Por que seu barco era confiscado?
Confiscado, não. Era preso no porto por falta de pagamento de INPS e outras razões burocráticas. Numa dessas viagens, pelo Rio Madeira, estava comigo o José Cláudio da Silva, o pintor. A Marinha nos prendeu em Porto Velho e o Zé Cláudio aproveitou para pintar. Ele pintou 120 quadros nessa viagem e o marchand dele vendeu todos para o governo do Estado de São Paulo. Tem uma ala no palácio do governo chamada José Cláudio da Silva, com 120 quadros que ele pintou no Rio Madeira. São lindos.
Quando o senhor parte para uma expedição já tem definido o que vai procurar?
No começo, não, mas agora tenho. Trabalho em dois campos: um é a linha de pesquisa que desenvolvo, outro é a coleção. Quanto à pesquisa, por exemplo, descobri evidências de que a aparência - número de escamas, tamanho do focinho etc. - de uma espécie de lagartos na Amazônia mudou em determinado ano. Isso não deveria ter acontecido tão rapidamente e estou interessado em entender o que aconteceu. Quanto à estratégia de coleção, é preciso ter uma coleção bem-fechada, completa. Por exemplo, não tínhamos material de Rondônia. Então, fomos para lá, para o polo Noroeste, e fizemos uma linda coleção. Nossa coleção é basicamente da América do Sul, mas é preciso sempre ampliá-la em nível de gênero. Há pouco tempo, por exemplo, fiz uma permuta de 300 espécies com um museu do sul da Austrália. Essa é uma prática que falta no Brasil e que aprendi nos Estados Unidos: é preciso ter uma estratégia, uma política de coleções. Além das trocas com museus, uma viagem também pode atender à sua necessidade.
O senhor está em busca de alguma espécie atualmente?
Muitas. Vou dar um exemplo: há 30 anos um amigo meu, o Antenor Leitão de Carvalho, trouxe uma tartaruga aqui no laboratório. Veio com a tartaruga viva, debaixo do braço, perguntando que bicho era. Falei que era uma Pseudemys norte-americana, mas ele disse que não, que ela era do Maranhão. Ele nunca me contou de onde era o bicho, com medo de eu deixar escapar alguma informação e alguém "passar a perna" nele. O Antenor era muito habilidoso e criou o bicho em casa. Tinha uma piscina cheia de tartaruga em casa, mas não tinha uma nota de onde o bicho era.
Quando o Antenor morreu, ano passado, resolvi procurar a tartaruga. Fiz uma fotocópia de uma espécie parecida e pedi para uma ex-aluna minha, a Maria Socorro Pinheiro, que é do Maranhão, perguntar quem conhecia esse bicho por lá. Ela me respondeu que o bicho era comum nos Lençóis Maranhenses, aparecia na época das chuvas e se chamava pininga. Então, fui para o Maranhão e foi uma viagem danada: é preciso viajar de barco à noite toda até Primeira Cruz e depois atravessar 13 km de dunas de trator. Só que no dia em que chegamos — a Socorro e eu — o trator estava quebrado. Fizemos os 13 km a pé e em seis horas — dois quilômetros por hora, bem devagarinho... Quando chegamos nos Lençóis, disseram para gente que não tinha o bicho, porque a chuva tinha parado. Aí pensei: esse povo deve botar o bicho no poço para comer limo... Saí na rua perguntando e, antes da hora do almoço, comprei seis exemplares.
Quando voltei para São Paulo, publiquei um trabalho pesado que me deixou muito satisfeito. A descrição do gênero norte-americano estava cheia de coisas mal resolvidas e resolvi tudo aqui, sem sair dessa salinha, porque toda a bibliografia recente sobre répteis está nessas estantes. Mas aí comecei a cismar e a duvidar que 30 anos atrás, o Antenor ou qualquer outro pudessem ter ido a Lençóis Maranhenses. Esse bicho poderia ter vindo de algum outro lugar... Quando a SBPC me convidou para participar da Reunião Anual no Maranhão, fiquei feliz. Pensei: vou procurar de novo a pininga. Só que dessa vez fui para a Baixada Maranhense, zona muito pantanosa e ideal para tartarugas. Peguei um grande amigo e ex-aluno, o Celso Morato de Carvalho, que é professor em Sergipe, e fomos no carro dele. No primeiro posto de gasolina que paramos, perguntei para o cara: conhece um bicho chamado pininga? Tem por aqui? O cara respondeu: "Tem não senhor... Agora, 'capininga' tem!" Aí ele me disse que eu só ia encontrar em setembro, quer dizer, vou voltar lá...
E a mesma espécie que se encontra nos Lençóis e na Baixada Maranhense?
Não. É um negócio lindo, porque foram duas invasões diferentes. Ali, não tinha como perder, porque se fosse o mesmo bicho era um negócio extraordinário e se fosse outro bicho também seria extraordinário. É outro bicho. E melhor: esse trabalho só me custou, graças à SBPC, R$ 420,00, porque não tive de pagar a passagem aérea.
Por que o Antenor não publicou o trabalho antes?
O Antenor era especialista em anfíbios e muito meticuloso. Esse gênero apresentava muitos problemas de anatomia.
O senhor é conhecido pela biblioteca de zoologia que mantém...
A biblioteca do museu é completa. Nesta sala, tenho cem por cento do que se publicou sobre répteis na América do Sul. O que não está no original está em fotocópia, mas está aqui. Todas as espécies de répteis da América do Sul estão fichadas e todas as citações, desde a primeira, estão anotadas. Isso facilita muito, pois não preciso sair para fazer um trabalho.
O senhor tem ajuda para organizar esse arquivo?
Tenho só ajuda da datilógrafa da seção. Mas a iniciativa e anotação original são minhas. A grande besteira que se faz no Brasil é usar técnico para essas coisas. Aqui, mesmo depois de datilografado, volta para minha mão para conferir e eu mesmo arquivo. Quando temos um estudante bom dou para ele fazer, mas no momento não temos nenhum. Outro dia veio aqui um estudante pedindo para eu traduzir uma descrição original de peixe, porque era em latim e não tem um ictiólogo no Brasil que seja capaz de fazer uma tradução. Aprendi latim depois, porque na escola não aprendi nada.
O senhor é assim organizado com seus cadernos de campo?
Sou, sim. Faço o dia-a-dia das viagens, com itinerários, aldeias e povoados que visito e a quilometragem percorrida. Não chega a ser trabalhoso, mas é preciso disciplina. É preciso tirar da cabeça que expedição científica é aventura. Expedição científica é feita na mais rigorosa rotina. É você fazer a coisa certa, sempre igualzinha e não sair atrás de aventura. Claro que rotina permite flexibilidade: se eu ficar até duas da manhã no brejo, no dia seguinte acordo mais tarde. Se num dia estiver chovendo, não saio, fico na rede. Uma vez por semana paro de trabalhar. É preciso descansar, tomar uma cerveja.
O senhor já teve dificuldades com os órgãos de defesa ambiental por causa de suas coletas?
Só uma vez, foi com o Museu Goeldi. O Ibama invadiu um acampamento meu e apreendeu o material coletado. Levaram meu material para Belém e nunca devolveram. Um dia a gente se encontra de novo...
Por que fizeram isso?
Disseram que eu tinha colocado estrangeiros irregularmente no país. Vejam se pode: o cara passa pela Polícia Federal e tem o seu passaporte carimbado no aeroporto e eu é que estou pondo estrangeiro irregular no país?
As organizações não-governamentais questionam as coletas para pesquisa?
Não, o negócio deles é o impacto ecológico. Exemplo: a Votorantim quer fazer uma represa no rio Ribeira, na fronteira entre São Paulo e Paraná. A represa iria melhorar consideravelmente a região, dar emprego à população e até melhorar a ecologia, porque a lei manda que florestem a região em torno da área. Aquela é uma das regiões mais arrebentadas do Brasil. Na reunião do Consema, levantam-se meu amigo Aziz Ab'Sáber e o senhor Fábio Feldman e começam a dizer que há Mata Atlântica lá. Eles tiveram nas mãos o Relatório de Impacto Ambiental (Rima), descrevendo a região e com fotografias. A cobertura arbórea da região é de 4% e não tem mata virgem. É tudo capoeira secundária, terciária, quaternária. São extensões de samambaias e jaborandi, um negócio horrível, que só pode melhorar com a represa. Mas eles têm ideia fixa.
O senhor está planejando alguma nova expedição?
Como sou aposentado, juntei dinheiro e mandei fazer um barco. Vou sair viajando sozinho. Depois de quarenta anos viajando, não preciso de marinheiro. Está só faltando um dinheiro extra, que estou trabalhando para ganhar. Mas já estão pondo o leme no barco e quando estiver pronto vou sair. Vou viajar cada vez que tiver dinheiro para a passagem de avião até Manaus.
Professor, o senhor foi um dos fundadores da Fapesp...
Por encargo do professor Carvalho Pinto, escrevi a lei de criação da Fapesp.
Como é sua rotina hoje, depois de aposentado?
O que me atrapalhou um pouco foi a perda do olho direito, por causa de glaucoma. Hoje, eu valho só meio Rondon, porque o Rondon perdeu os dois e eu perdi um só. Mas isso não chegou a afetar minha produção. Só no começo, porque não enxergava bem. Operei quatro vezes os dois olhos: o direito eu perdi e o esquerdo agora está ótimo. Os óculos novos que o médico me deu resolveram.
Quem faz parte da sua equipe aqui no museu?
Não tenho equipe. Nunca tive equipe. Sou eu, comigo mesmo. A secretária é do departamento, não é minha. A chefe da seção de répteis foi minha assistente muitos anos e é minha grande amiga; por isso, o relacionamento aqui no museu permanece como sempre foi.
Por que não ter equipe, não trabalhar em equipe?
É opção minha. Trabalhando em equipe, você se nivela com o pior. É como partido político: se você entrou no partido se compara a todos os membros.
O senhor nunca militou? Como foi seu relacionamento na universidade com o debate ideológico?
Sempre fui contra a militância. Eu era... socialista utópico. Sabe por que eu não era anarquista? Porque nunca consegui estudar o anarquismo, para ser. Meu bisavô era anarquista, fugiu da Itália para morar no Brasil, numa colônia anarquista. Eu sempre tive muita vontade de ser anarquista, mas nunca tive tempo de estudar o anarquismo.
Qual a sua avaliação da ciência brasileira? O senhor acha que ela evoluiu ou que está aquém do que deveria?
O que você chama de ciência no Brasil? No caso da medicina, por exemplo, se todos que fazem pesquisa parassem, ninguém iria reparar no mundo inteiro. No Brasil, podia-se notar, porque fazer pesquisa no país eleva o nível interno da profissão. Então, é importante que se faça pesquisa no Brasil, não pela pesquisa ou para competir, mas para elevar o nível do profissional médico. Dizer que está aquém é um julgamento norte-americano, mercantilista. Veja só as ciências biológicas: a briga hoje é para patentear genes e coisa assim. A lista dos mais citados da USP é uma besteira. Tem alguns dos caras mais burros que conheço citados lá. Basta o cara ser ligado a um laboratório no exterior: ele dá um espirro lá fora, ecoa aqui e outro cara o cita. Que ciência é essa?
O que o senhor acha dos investimentos em C&T?
Ciência é um termo muito geral. Hoje, por exemplo, financio minha pesquisa. É verdade que estou em fim de carreira, mas financio minha pesquisa num nível muito bom. O zoólogo pode se dar a esse luxo. Já um bioquímico tem que fazer uma pesquisa que lhe dê grant. A não ser que o nome dele garanta os recursos. Enquanto o pesquisador precisar garantir o seu grant com resultados, ele tem que ficar no trilho dos outros.
Isso não impede a abertura de novos caminhos?
É preciso avaliar se você tem força para criar um trilho próprio e se te deixam. Não tive problemas, mas isso não é o normal. A teoria que fiz sobre formação de espécies, Teoria dos Refúgios, é de 1970 e é aceita até hoje. Fazê-la não me custou nada, a não ser meia dúzia de viagens à Amazônia e ser amigo do Aziz Ab'Sáber, que me explicou um monte de coisas por fora dos livros. Nós, os zoólogos, podemos nos dar a esse luxo. Se você pega um bioquímico que precisa de equipamento e muito dinheiro, ele só consegue isso se rezar pela cartilha da profissão. Ele vai entrar na rotina da profissão. O Leloir, por exemplo, ganhou o prêmio Nobel trabalhando no porão da casa dele, na Argentina. Só que era milionário e sustentava sua pesquisa.
Como o senhor formulou a Teoria dos Refúgios e como avalia as críticas que a ela são feitas?
Os críticos em geral são incompetentes. São pessoas que nunca andaram no mato. Os refúgios estão aí: estamos agora passando de uma fase úmida para uma fase seca e é possível ver as manchas de refúgios em cerrados e caatingas. Tem um refúgio em Rondônia lindo, num pedaço de lajeiro. Deixei a Teoria dos Refúgios de lado porque não é assunto para biólogo, é para paleopalinólogo e para geomorfólogo. Posso dizer "houve um refúgio", mas onde foi só os especialistas dessas áreas é que poderão dizer. É uma bobagem querer descobrir onde foi o refúgio por raciocínio biológico.
Diz-se que a Teoria dos Refúgios é uma bobagem porque em todo canto da Amazônia se encontra endemismo e...
Quem falou essa besteira? Endemismo? Bobagem.... A análise de fotografia de satélites, feita com pseudocor, mostra uma heterogeneidade — não é refúgio — e manchas de solo na Amazônia. Isso só demostra que existe uma grande heterogeneidade da Amazônia e não tem nada a ver com refúgio. Um refúgio é uma coisa extrema. É quando o clima chega ao extremo de liquidar com uma formação vegetal, reduzindo-o a pequenas porções.
Como surgiu essa teoria?
Existe uma lagartixa, do gênero Liolaemus, cuja distribuição vem do Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro. Ela vive em ambientes de dunas. Comentei com o Aziz Ab'Sáber que, se tivéssemos um jeito de saber quando houve dunas contínuas entre o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro, poderíamos reconstituir a história dessa distribuição. O Aziz então me disse que essa era uma das poucas coisas que se sabia e puxou a bibliografia sobre o assunto para mim. Foi aí que comecei a me interessar.
Qual foi a participação do Jürgen Haffer na Teoria dos Refúgios?
Foi uma loucura. Estávamos trabalhando simultaneamente no mesmo assunto sem saber. Só que eu estava trabalhando em parceria com o Ernest Williams, dos Estados Unidos. Por causa da distância, não tínhamos oportunidade de nos encontrar para escrever o trabalho. Quando estávamos sentados aqui, na diretoria do museu, terminando o trabalho, chegou um envelope da revista Science pedindo-me um parecer sobre o artigo de Haffer. Falei para o Williams: acabam de nos passar a perna. Mas não desanimamos, ficamos entusiasmados com a coincidência entre os refúgios levantados por nós e por Haffer. Eram cinco coincidências em nove. Mandamos então nosso material e os artigos do Ab'Sáber para o Haffer e pedi à revista Science que não mantivesse em sigilo o meu parecer. O Haffer estava em Johanesburgo (África do Sul) quando recebeu nosso material. Entrou num avião e veio para cá, conversar conosco.
Essa é uma situação inusitada porque, em geral, esses casos geram disputas e conflitos.
De jeito nenhum. Com a gente foi diferente, somos grandes amigos.
O que o senhor acha do cientista na política?
É um direito do cientista. Ele tanto pode ser muito bom, como não ser. Tem algum bom?
José Goldenberg, por exemplo.
Eu estou falando de cientista!
Está correto dizer que o senhor é tipicamente paulista?
Ah, sou! Nem me considero brasileiro. Sou paulista mesmo! Adoro o Brasil e sinto-me à vontade em qualquer lugar do país, mas sou paulista. Por vício de ofício, sou obrigado a observar o jeito do povo e conheço o Brasil inteiro. Um dia, um amigo, o Miguel Petrere, passou por um lugar e anotou um nome, porque queria "esfregar no meu focinho" e dizer que eu não conhecia. Ele chegou e disse: "Duvido que você conheça Baixão dos Doidos." Respondi: "Agora chama Timorante e fica entre Ouricuri e Exu." Mas é brincadeira, porque aqui em São Paulo mesmo tem muito lugar onde ainda não fui.
Nas suas andanças, como o senhor se relaciona com o caboclo, o povo do lugar?
Não sou endeusador de caboclo e costumo me relacionar com eles como com qualquer outra pessoa. Mas, por exemplo, conheci um onceiro no Mato Grosso do Sul, o Tonho-Onceiro, e adorei o cara. Em 1982, já tinha ouvido falar do Tonho quando fui para o Programa Polo Noroeste e agora pude conhecê-lo. É um cara espetacular, precisam ver ele ensinando os cachorros a caçar onça. Aprendi muito com esse Tonho!
Em suas viagens, o senhor coletou músicas?
Não, sistematicamente nunca. Quando meu pai morreu, fiquei muito mal de vida, com muitas dívidas e fui trabalhar em televisão. Por meia hora na semana, eles me pagavam mais do que o museu o mês inteiro. Foi o Eduardo Moreira, que eu conhecia da faculdade, e o Raul Duarte que me levaram para fazer produção na TV Record. Produzi Alvarenga e Ranchinho, Aracy de Almeida e outros. Só saí em 1953. Nessa época, São Paulo só tinha duas estações de televisão e os donos eram amigos. Então, resolveram fazer um projeto juntos em 1954 (IV Centenário) e uma das partes era trazer cantadores nordestinos. Fui encarregado de trazer esses cantadores. Mandei trazer Dimas e Otacílio e busquei nos livros os diversos tipos de toada. Quer dizer, eu não conhecia, apenas formalizei os tipos. Na hora da apresentação, escrevia em folha de papel craft o tipo de toada, colocava num cavalete e orientava a dupla a cantar e improvisar segundo aquele padrão. O programa agradou demais. Aí, começou todo mundo a me procurar por causa disso e comecei a aprender o assunto sem querer.
O senhor também conheceu o Nordeste estudando répteis?
Tudo que tenho e fiz foi a lagartixa que me deu. Com um litro de formol e estudando lagartixa, criei seis filhos.
Como o senhor conheceu Sérgio Buarque de Holanda e sua família?
Serjão veio para São Paulo para ser diretor do Museu do Ipiranga e foi morar na rua Haddock Lobo. A Maria Amélia, mulher dele, era parente de Geraldo Vidigal, um dos grandes amigos meus. Então, conheci o Serjão, me apaixonei e ia toda noite para casa dele cantar samba com a Maria Amélia. Eu ajudei a criar o Chico Buarque. Na minha opinião, ele é o maior talento que já tivemos na música popular. Com dezoito anos, fez Pedro Pedreiro, música e letra que não podem ser melhoradas.
Quem mais participava dos encontros na casa do Sérgio Buarque?
A casa do Sérgio Buarque era um ponto de encontro, mas não eram reuniões formais. O Arnaldo Horta, o Mário Nene, o Luiz Coelho e o Oscar Pedroso Horta viviam lá. O Antônio Cândido e o Paulo Emílio também.
O senhor teve música concorrendo nos festivais da Record?
Não por minha vontade. Uma vez, estava fazendo uma música, ela estava quase pronta, mas eu tinha dúvidas numas passagens. Dei a música para o Toquinho dar uma olhada para mim. Ele pegou e terminou a música, como colaboração nossa, e inscreveu-a num festival. Tiramos oitavo lugar, mas foi como o português que baixou para amarrar o sapato no Jockey Club... A música não estava terminada.
O senhor recebe direitos autorais de Ronda?
De vez em quando, tem algum. A última coisa que ganhei foram US$ 30 mil para alugar A volta por cima para a propaganda do band-aid. Vejam só: desse total, chegaram na minha mão só US$ 17 mil. O culpado por essa bagunça do direito autoral é o Ernesto Geisel, porque a lei de direitos autorais exigia que o disco fosse numerado e o Geisel retirou isso. Os clubes noturnos, os bares e as rádios pagam direitinho. Quem não paga são as gravadoras. O Geisel vetou a cláusula de numerar os discos, alegando que as companhias já informavam ao governo sobre a tiragem. Quer dizer, ele botou o cabrito tomando conta da horta.
Querem saber qual o retrato do Brasil atual? É o preço da comida não ter mudado e o do restaurante ter triplicado.