Entrevista concedida a Vera Rita da Costa (Ciência Hoje).

Midia

Part of Entrevista Otto Richard Gottlieb

Publicada em outubro de 1988.

O cientista que habita a torre de marfim, costuma-se dizer, é aquele que se isola dos problemas sociais. Este não é o caso de Otto R. Gottlieb. Seus mais de 40 anos dedicados à química não o fizeram esquecer problemas como a devastação das florestas, a crise populacional e a deterioração ambiental. No entanto, ele defende, sim, a torre de marfim. Só que a torre que preconiza é o lugar distante do imediatismo das pressões conjunturais. Para ele, a resolução das questões momentâneas cabe à tecnologia. Já o compromisso da ciência é com a descoberta de fatos inéditos que, correlacionados com fatos conhecidos, ajudem a entender o funcionamento da natureza. Descoberta que, num segundo momento, poderá reverter em influência prática para a sociedade. Por isso, acredita ele, o cientista e o tecnologista têm papéis diferentes. Mas Otto vê, ainda, outra função para a torre. Longe de se deixar enclausurar, ele a escala. "Do seu alto", afirma, "se discernem as fronteiras do nosso conhecimento e, além delas, as áreas de ignorância".

Como nasceu seu interesse pela química?

Considero a química uma herança de família. Meu avô paterno fabricava louça esmaltada na Tchecoslováquia e meu pai era químico da fábrica. Meu avô materno exportava café do Rio de Janeiro e de Vitória desde 1880. Tanto que no casamento de meus pais se dizia que na xícara se verteu o café. Fiz o primário na Tchecoslováquia, terminei o secundário na Inglaterra e me uni à família em 1939 no Rio de Janeiro, onde, desde 1936, minha mãe gerenciava a exportadora de café e meu pai fundara uma fábrica para a transformação química de óleos essenciais em matéria-prima para perfumaria.

Adaptei meu currículo escolar europeu ao brasileiro estudando dois anos no Colégio Universitário, na época "o melhor curso complementar" de engenharia do Rio de Janeiro. O colégio foi extinto um ano depois de minha saída. Reorganização do secundário? Talvez. Mas o curso era bom demais, causando inveja aos educandários congêneres. Depois entrei na Escola Nacional de Química, no Rio de Janeiro. Em 1945, quando me formei em química industrial, a fábrica estava muito bem e meu pai insistiu para que eu fosse trabalhar com ele. Não queria muito, mas acabei indo e fiquei por dez anos. Lá eu fazia de tudo: comprava, vendia, projetava e executava reações químicas, por vezes até alimentava as caldeiras e virava garrafões.

Quando o senhor começou a pesquisar?

Fiz os primeiros trabalhos quando estava no quarto ano do curso de química. Eram sobre a composição da borracha da mangabeira, que parecia na época destinada a fortalecer os magros estoques de borracha de Hevea (seringueira), e a síntese do DDT, um inseticida pouco conhecido naquele tempo. Ambos foram publicados em 1945, com dois colegas de turma. Na fábrica, eu fazia pesquisa como um alento. Foi lá que inventei a titrimetria gasométrica, um método de análise inorgânica muito particular e diferente dos existentes, em que o ponto final da titulação é dado pelo início ou o fim do desprendimento de um gás. Cheguei a publicá-lo em revistas estrangeiras, mas não sei dizer se é ou foi usado alguma vez.

senhor não pensou em seguir a carreira acadêmica?

Quando fiz os primeiros trabalhos sobre a borracha da mangabeira e o DDT, o professor Otto Rothe, da tecnologia orgânica, convidou-me para ser seu assistente, pressentindo minha vocação para o ensino. Mas eu vinha de uma experiência muito ruim: dando aula num cursinho pré-vestibular, senti pânico ao olhar para a turma. Decidi, nessa ocasião, que não era indicado para dar aulas e não aceitei o convite. Isso atrasou muito — quase 20 anos — mas não impediu minha volta para a universidade.

Durante esses dez anos de trabalho na fábrica senti-me muito isolado. Resolvi, então, me aproximar da Associação Brasileira de Química, onde se reuniam periodicamente os químicos do Rio de Janeiro. Lá conheci Pérola Zaltzman, assistente de Walter Mors. Foi ela quem me falou da possibilidade de conseguir uma bolsa do CNPq para o Instituto de Química Agrícola (IQA), influindo decisivamente em minha vida com esse palpite. Aliás, a Pérola foi em seguida fazer um estágio no National Institutes of Health (NIH), em Bethesda, nos Estados Unidos, e lá ficou, casando com Marshall Nirenberg, posteriormente agraciado com o prêmio Nobel pelo desvendamento do código genético. Pérola se tornou assim o brasileiro que mais perto chegou de um prêmio Nobel...

que se pesquisava no Instituto de Química Agrícola quando o senhor lá ingressou, em 1955?

Nesse período, praticamente todo o instituto — exceto a seção de pedologia (disciplina que estuda os solos) estava interessada na análise química das plantas brasileiras. Uma das primeiras tarefas que recebi referia-se a uma planta da Amazônia. Miranda Bastos, um dendrólogo (analista da composição de uma floresta), tinha visitado destiladas de pau-rosa e verificado que os cavacos residuais, mesmo depois de extraído o óleo essencial, queimavam muito bem. Imaginou então que, nas condições primitivas reinantes, nem todo o óleo era extraído. Analisei o material e verifiquei que o motivo da queima não era o óleo, mas outros materiais combustíveis que isolei e cuja estrutura determinei em parceria com os colegas Mauro Magalhães e Walter Mors. Como é poderosa a força do destino: o óleo essencial de pau-rosa era a matéria-prima mais importante da fábrica de meu pai e o subproduto do processo de extração desse óleo marcou minha estréia em investigação científica. Desde então, mesmo tendo ampliado um tanto o leque dos meus interesses, continuo estudando as plantas da Amazônia, seus extratos brutos, as substâncias que podem ser isoladas e a sua estrutura. Até hoje me parece incrível que o IQA tenha sido extinto.

E por que acabaram com essa instituição?

Se formos buscar a resposta oficial, ouviremos uma história sobre a modernização do Ministério da Agricultura, o que de fato ocorreu e levou, em última instância, à criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Mas isso é conversa! Nada impedia que a modernização se desse com a extinção de unidades fracas e a manutenção das fortes. Aconteceu, no entanto, que o instituto era famoso demais, reconhecidamente um dos pouquíssimos locais no país onde se fazia pesquisa química de alta qualidade, recebendo verbas e colaboradores internacionais. A inveja é uma arma mortífera, certeira e que não perdoa.

Toda a ciência brasileira protestou, mas de nada adiantou. Não houve um mínimo de preocupação do governo em preservar a atividade de ótimo nível que se fazia no instituto. Até hoje sinto arrepio perante a insensatez de terem cortado as asas da pesquisa de produtos naturais no Brasil. Assistimos, pasmos e indefesos, à evasão de nosso material vegetal para os Estados Unidos, Alemanha, Japão e Suíça, países que não desconhecem que substâncias químicas vegetais, naturais ou sintetizadas, representam um negócio multibilionário. Imagine se o Brasil, em vez de anular um ramo florescente de investigação, tivesse investido nele, como fez a China. Aqui, a química de produtos naturais é hoje campo de treinamento de alunos de pós-graduação em busca de um título universitário.

senhor ainda trabalhava no Instituto de Química Agrícola quando foi estagiar no Instituto Weizmann, em Israel. Como foi essa experiência?

Quando fechou a fábrica de meu pai, em 1959, fui efetivado no Instituto de Química Agrícola. Livre dos encargos da fábrica, pude me dedicar integralmente à pesquisa e julguei necessário voltar a estudar, principalmente a química orgânica moderna, que começava a se desenvolver no Brasil. Tudo mudou a partir da década de 1960 - a interpretação dos problemas, a maquinaria, os laboratórios. O Walter Mors tinha ido para os Estados Unidos trabalhar justamente com aquele que, mais do que qualquer outro, estava arquitetando essas transformações, o professor Carl Djerassi. Pouco depois, fui estagiar no Instituto Weizmann. Nessa época, acabara de ser introduzida uma nova ferramenta para o químico, o espectrômetro de ressonância magnética nuclear.

Durante um ano trabalhei nos princípios anticancerígenos de cucurbitáceas (a família das abóboras) e — uma experiência muito penosa para mim — consegui demonstrar, operando um aparelho histórico funcionando a 30 MHz, que cinco anos de trabalho do meu orientador, David Lavie, baseados na química orgânica clássica, tinham partido de uma hipótese falsa. Quando voltei para o Brasil, comecei a propagar a ressonância magnética nuclear e outros tipos de espectrometria. Fiz conferências, passei a dar aulas e publiquei dois livros didáticos sobre a aplicação de técnicas instrumentais à análise orgânica. Um sobre espectrometria de massa, prefaciado pelo professor Djerassi, já em segunda edição (modernizada por Raimundo Braz, Afrânio Craveiro e Wilson Alencar), e outro sobre espectrometria de ressonância magnética nuclear, prefaciado por Ricardo Ferreira. Não envergonhei Djerassi e Ferreira. Decorridos tantos anos, com tão fantásticos progressos nas duas áreas, as mensagens básicas dos meus livrinhos continuam válidas e, como descobri recentemente, há professores que continuam a usá-los!

Como se deu sua reaproximação com a universidade?

Na época da extinção do IQA, visitei o Instituto Oswaldo Cruz e a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, buscando identificar um lugar que fosse bom para o grupo com que trabalhava, mas o que me ofereciam representava um retrocesso nas perspectivas de pesquisa. Anos antes, Mauro Magalhães e eu havíamos tentado montar cursos práticos e teóricos em diversas instituições, principalmente no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia e na Universidade Federal de Minas (UFMG). O início da colaboração com a UFMG ocorreu exatamente no ano em que o Instituto de Química Agrícola estava acabando, compensando assim as frustrações com relação a esse órgão. Quando já não suportava a situação, Jacques Danon me veiculou uma proposta de trabalho na Universidade de Brasília.

A Universidade de Brasília (UnB) estava nascendo. Como foi participar desse processo?

Em 1962, a proposta de participar da implantação da UnB me pareceu um sonho. Pretendia-se criar uma universidade diferente, com ênfase em pesquisas e cursos de pós-graduação. Começamos a trabalhar num galpão absolutamente vazio. O prédio fora planejado para abrigar serviços gerais e uma oficina mecânica, de maneira que não oferecia nada além da estrutura de cimento. Reuni em Brasília profissionais que já haviam trabalhado comigo, do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza e Recife. Foram chamados para fazer pesquisa, assistir aulas de pós-graduação e depois — não antes - serem professores de graduação. Brasília não incorreria no erro de colocar neófitos para dar aula! Existiam outras vantagens: uma boa biblioteca, equipamentos e disponibilidade de técnicos de laboratório. Nossas universidades infelizmente desconsideram os técnicos. Mas é fato que nunca se fez muito em ciência, e menos se faz hoje em dia, sem eles.

No começo de 1964, com pouco ainda a fazer na UnB, fui a mando do Darcy Ribeiro, que estava à frente do projeto, para as universidades de Sheffield (como professor visitante), Inglaterra, e Indiana, nos Estados Unidos. Quando voltei, comecei efetivamente minha carreira universitária plena. Mudei para o campus de Brasília e dediquei-me ao ensino de pós-graduação e de graduação. O sonho acabou em 1965, como se sabe de maneira extremamente dramática.

O senhor foi chamado pelo presidente Castelo Branco para discutir a crise na universidade...

Quando voltei do exterior, em meados de 1964, a universidade já havia sido "depurada". Mas isso não impediu uma continuada e rigorosa vigilância sobre os professores remanescentes. Assim mesmo vivemos um clima de excelente produtividade, graças à liderança do reitor Zeferino Vaz. Quando, porém, o clima ficou sombrio demais também para ele, que acabou se retirando, tudo deteriorou velozmente. No final de 1965, oito professores foram dispensados por intervenção direta do governo. Uma carta solicitando apoio à comunidade científica internacional foi prontamente atendida e o embaixador americano Lincoln Gordon levou a Brasília um abaixo-assinado. Nesse mesmo dia, fui convocado ao Palácio do Planalto.

Inicialmente, a conversa foi satisfatória. Castelo Branco contou ter visitado minha cidade natal, Brno, e elogiou a conservação do campo de batalha napoleônico nas proximidades. Mas logo ele se exaltou e começou a gritar. Raramente presenciei alguém se alterar tanto como o presidente naquele dia. Ele via a atitude do embaixador americano como uma interferência estrangeira nos assuntos brasileiros. Para nós, era uma intervenção a favor da liberdade individual. Convocado possivelmente por ser considerado moderado e mesmo apolítico, tentei explicar o sentido da fraternidade científica internacional, mas não deu certo. Poucos dias depois a universidade acabou.

Após esse episódio, o senhor pediu demissão...

Os professores tencionaram protestar contra a demissão dos oito colegas com uma greve. O assunto foi ventilado numa reunião clandestina - a UnB estava sob ocupação militar e as reuniões tinham sido proibidas. Eu disse que não entraria em greve. Trabalhava porque queria e gostava, se a universidade não me desse condições, iria para outro lugar. No dia seguinte, em questão de minutos, praticamente todos os professores do Instituto de Ciências Exatas assinaram uma lista de demissão, o que demonstra o idealismo da categoria no Brasil. Ganhava-se 20% a mais do que se pagava na Universidade de São Paulo, assim mesmo fomos embora espontaneamente. Nenhum de nós ignorava, além disso, que essa atitude de protesto poderia comprometer nossa readmissão por outras instituições oficiais, o que não aconteceu. Pensando além dos benefícios próprios, deixamos para trás o mais satisfatório, descontraído e construtivo ambiente profissional que já encontrei. Em Brasília, o que hoje é raríssimo, havia um espírito universitário em busca permanente de renovação, professores escolhidos a dedo entre os melhores do país e um avançado sistema como regimento.

senhor manteve, em Brasília, seu interesse pelas plantas brasileiras. Como é trabalhar com a química de produtos naturais?

Manoel da Frota Moreira, anos a fio diretor científico do CNPq, costumava sorrir ao me ver percorrer semanalmente, após 1965, o triângulo Minas Gerais (UFMG), Rio de Janeiro (UFRRJ), São Paulo (USP), com excursões mais esporádicas à Universidade Federal de Pernambuco e ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Mas eu tinha um segredo que possibilitava essa atuação: um único e apaixonante tipo de trabalho — a química de produtos naturais. É uma atividade que não permite individualismos, nem dá resultados imediatos. Muitas pessoas pensam que deveríamos dominar todo o processo, da coleta de uma planta à sua utilização farmacológica ou outra. No entanto, não é possível fazer tudo com o mesmo nível de excelência. Ao químico de produtos naturais interessa a fabulosa diversidade das substâncias vegetais com respeito à sua beleza tridimensional e suas variadas transformações. Temos um fantástico mundo brasileiro a explorar. Quem executará essa tarefa se esmorecermos e virarmos botânicos, químicos de síntese, tecnologistas ou farmacológicos? Fomos nós que criamos a base de toda a química orgânica brasileira moderna, com suas múltiplas ramificações.

Como foi a sua experiência na Universidade Federal de Minas Gerais?

Foi o maior grupo que tive a alegria de gerar. Como antes na UnB e concomitantemente na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, ali consegui implantar pesquisa e disciplinas teóricas em química orgânica, e foi onde despertei vocações duradouras com maior intensidade. O desfecho da colaboração com a UFMG ilustra bem uma faceta geral da minha atuação acadêmica no Brasil. O CNPq tinha atribuído nível de excelência, o que equivale dizer apoio financeiro ao mestrado em química orgânica, mas como os trabalhos e cursos iam muito bem, solicitou-se reconhecimento do doutorado. Negaram o pedido com a justificativa de não incentivar o que diziam ser um "feudo de Gottlieb". O evento merece dois comentários. Primeiro: esse é o fim de todo pioneiro. Chega o momento em que a continuação de seus préstimos dificulta o progresso ulterior. Segundo: sucesso em universidade brasileira não é garantia de continuidade de apoio.

E a experiência no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa)?

Os primeiros contatos com o Inpa surgiram durante uma excursão para coletar plantas em 1960. Organizamos um curso de atualização em química de produtos naturais, ajudamos no aperfeiçoamento do laboratório e começamos a auxiliar nas pesquisas. O plano era tornar o Inpa auto-suficiente, capaz de processar uma planta da coleta até a obtenção das substâncias puras, coisa que acontece atualmente.

Durante vários anos, trabalhamos na maior felicidade. As plantas eram preparadas e trituradas até o ponto mais elaborado possível para a época e remetidas para os nossos laboratórios no sul. A Amazônia lucrou em conhecimentos de sua flora e nossos colaboradores assinaram uma centena de belas publicações. Como programado, o Inpa ficou progressivamente dono da técnica toda. Mas ocorreu que bruscamente retiraram a instituição de nossa tutela, deixando-nos numa situação gravíssima na Universidade Rural, sem matéria-prima amazônica para o estudo de nossos pós-graduandos. Fui vencendo essa dificuldade por meio de várias vias: o estudo das plantas de outras regiões do país; a colaboração com o professor Klaus Kubitzki, profundo conhecedor da biologia das nossas lauráceas (família dos louros) e entusiástico coletor de plantas na Amazônia; a admissão de Hipólito Paulino, genial estudioso da interação miristicáceas (família da noz-moscada) — tucanos e a adoção de vários campos alternativos de estudo, como ecologia bioquímica, quimiossistemática (incluindo metodologia de busca racional de princípios ativos de plantas) e nomenclatura química.

Como é o sistema de nomenclatura orgânica elaborado pelo senhor, com a finalidade de ampliar o conhecimento da química?

Quem isola e descreve um grande número de substâncias naturais de estruturas habitualmente complexas vê-se às voltas com o verdadeiro bicho-de-sete-cabeças da química orgânica, a nomenclatura. As regras são tão variadas e complicadas que nem a consulta a um livro garante uma formulação correta. Mesmo assim, dar nome aos bois é indispensável. Sem nomear uma substância não se pode comunicar nada a ninguém. Com Maria Auxiliadora Kaplan, colaboradora de muitos anos, elaborei um novo sistema de nomenclatura em que uma estrutura tridimensional orgânica é figurada como uma forma geométrica composta de nodos (representando os átomos) e ligações. A natureza química e a posição relativa dos nodos são descritas por um sistema numérico. Não há necessidade de memorizar termos empíricos e basta conhecer rudimentos de química para poder aplicar o sistema mesmo à estrutura mais complexa imaginável.

Como se deu seu ingresso na Universidade de São Paulo e que linhas de pesquisa tem desenvolvido desde então?

Quando o Instituto de Química se instalou na Cidade Universitária, em 1967, os professores julgaram que as linhas de pesquisa deveriam ser enriquecidas com a química de produtos naturais. Fui convidado para uma palestra — "Os jacarandás: 400 anos de carpintaria, quatro anos de química" — e, em seguida, um almoço com os grandes professores, que (só depois entendi) me inquiriram sobre minhas concepções acadêmicas. Passei pelos dois testes, talvez os mais importantes de minha vida profissional, e Paschoal Senise me chamou para montar o laboratório. Com a reforma da USP, o laboratório foi incorporado e em 1976 fiz o concurso de professor titular.

O trabalho em São Paulo é diferente. Aqui tudo converge, inclusive administração, secretaria, funcionalismo, para ajudar o professor em suas tarefas, que integram ensino e pesquisa como parte orgânica de sua vida. Além disso, no Instituto de Química perdura a convicção de que é através do desenvolvimento científico básico próprio, mais do que através da adaptação de tecnologias alheias, que nascerá o Brasil futuro. Com Massayoshi Yoshida, que assumiu o lugar de chefe de laboratório depois de Raimundo Braz, e nossos pós-graduandos, desenvolvemos fitoquímica tradicional ainda referente a lauráceas e miristicáceas. Conseguimos ampliar os conhecimentos químicos a respeito de várias classes novas de substâncias por nós descobertas, principalmente as neolignanas, recentemente assinaladas como poderosos inibidores do mediador de doenças inflamatórias. Boris Vargaftig, do Instituto Pasteur de Paris, conseguiu confirmar o fato submetendo nossos produtos a testes específicos.

O senhor tem se dedicado, nos últimos anos, à campanha contra a devastação da floresta amazônica...

Essa história de extinção não é brincadeira. O número de espécies sob risco não é pequeno e a maior parte está na Amazônia. Se, como se diz, são conhecidas apenas 15% das espécies de animais, plantas e fungos, muitos, entre os 85% restantes, desaparecerão antes mesmo de serem catalogados. Para piorar a situação, somos um país carente de botânicos, ecólogos e micólogos (estudiosos dos fungos) capazes de executar a tarefa. Há uma incompreensão universal sobre a importância transcendental do biólogo. A finalidade do estudo dos organismos vivos não se limita à exploração da natureza. Acredito que no futuro o conhecimento maior sobre os produtos naturais permitirá enfrentar problemas básicos de sobrevivência como a pobreza, a densidade populacional e as doenças. Não estaríamos vivos sem os fármacos, cuja fabricação depende de produtos naturais, diretamente ou como modelos de derivados sintéticos. Onde buscar novas substâncias, ou, mais precisamente, novos modelos moleculares para a idealização e a obtenção de substâncias sintéticas? A resposta parece evidente: nas florestas das regiões neotropicais. No entanto, estamos destruindo esse reservatório sem ao menos estudá-lo adequadamente. Conhecemos espantosamente pouco sobre a composição química da Amazônia - bem menos de 1% das espécies descritas morfologicamente o foi quimicamente. Uma única espécie pode conter centenas ou talvez milhares de produtos naturais. Como o cientista não tem — ou tem pouca — influência na velocidade do desmatamento, cabe-lhe, pelo menos, apressar o trabalho de análise química das plantas das regiões ameaçadas. Esse, para mim, é o esforço social mais significativo dos químicos nesse fim de século. A pesquisa em adaptação de processos de síntese química a problemas industriais (a chamada química fina) também é tarefa atual, nobre. Mas a investigação básica em síntese orgânica, campo para o qual se passaram recentemente muitos dos nossos profissionais, é mero exercício didático. Será melhor realizada no século vindouro e pode esperar. A fitoquímica não pode.

Que consequências poderá ter o desmatamento sobre a fitoquímica da Amazônia?

O alto padrão de nossa sociedade tecnológica é baseado numa provisão crescente de substâncias químicas. Nesse sentido, a Amazônia é um fabuloso baú. Infelizmente, são magras as esperanças para a sua exploração mais profícua. A explosão demográfica e a pobreza progressiva da população, aliadas à necessidade de aplicações financeiras de companhias internacionais, estimulam a invasão maciça da "terra prometida". Projetos de ocupação racional são demagógicos. É impossível interferir racionalmente em sistemas ou fenômenos quaisquer sem o conhecimento de seus mecanismos de coerência.

As duas formas da assim chamada exploração racional praticadas hoje — o reflorestamento espontâneo de terras anteriormente utilizadas e a preservação de pequenas áreas em meio a vastos territórios ocupados por empreendimentos industriais — não dão conta de conservar os tesouros químicos da Amazônia. Na recolonização de uma área, as plantas encontrarão fatores ambientais diferentes com respeito à fertilidade, umidade e iluminação. Estamos estudando o efeito dessas variáveis e já sabemos que, sem dependência de sua posição filogenética, plantas em solo pobre são mais ricas em fenóis e plantas em ambientes úmidos mais ricas em substâncias fungitóxicas. A preservação da vegetação em reservas também não é garantia da constância química das plantas, pois as modificações operadas por vento e poeira nas margens artificialmente criadas se espalham gradativamente para o interior da floresta, mesmo sem nova intervenção humana. De modo que não é só a extinção de espécies, da qual tanto se fala, que constitui perigo. É preciso estudar também as consequências químicas de nossa política preservacionista.

senhor desenvolveu as bases de uma nova disciplina científica, a sistemática bioquímica. Como surgiu e que princípios a norteiam?

Tive uma aluna, Geres Gomes, muito talentosa, mas, pelo menos naquela fase de sua vida, com pouca paciência para o trabalho em laboratório. Desenvolvi para ela umas ideias teóricas sobre a química de produtos naturais. A vulcânica energia emprestada pela moça à execução dessas ideias permitiu prever a possibilidade da transformação da sistemática bioquímica, de uma arte que era, numa disciplina científica com princípios fundamentais e metodologia geral. Tradicionalmente, as plantas são classificadas de acordo com suas características morfológicas. Temos tentado correlacioná-las a características moleculares. Desde o início da botânica científica, procurou-se comparar morfologia e moléculas, mas frente à ausência de métodos para correlação quantitativa dessas características (ambas expressões do fenótipo), os resultados eram necessariamente descritivos. Recentemente, dados morfológicos começaram a ser quantificados em índices de avanço evolutivo, permitindo sua comparação com nossos índices de mesmo tipo baseados na estrutura dos produtos naturais. Assim, conseguimos mostrar, por exemplo, que coníferas (pinheiros) e plantas floríferas são desenvolvimentos paralelos, tendo sua origem, respectivamente, em samambaias primitivas e avançadas.

Qual a reação dos botânicos ante a introdução de dados químicos como critério para classificação?

Levei pela primeira vez o tópico a um congresso internacional (em Hamburgo) em 1976. A reação foi estimulante. O grande teórico Vernon Heywood, que acabara de lecionar sobre a pequena probabilidade da correlação biologia/química, proclamou nossos conceitos como o primeiro passo positivo em direção a esse desideratum taxonômico. Acredito que da integração entre dados químicos e morfológicos resultará um sistema com respostas para os enigmas ecológicos atuais. Minha convicção se baseia em nossas descobertas recentes acerca de gradientes químicos obtidos por meio da análise comparativa dos constituintes de alguns grupos angiospérmicos (plantas com flores). Já que as diversificações químicas conhecidas são graduais e, consequentemente, racionalizáveis, espera-se poder incluir na correlação outros grupos quimicamente desconhecidos. Assim surgiria pelo menos uma hipótese sobre os limites da variabilidade química desses grupos e uma sugestão sobre a ocorrência provável de substâncias desejadas.

Quanto aos botânicos, sua primeira reação revela medo. Se fosse apenas pela falta de base em química, tal obstáculo seria vencido com facilidade. O problema é mais sério. O biólogo é treinado na observação - quase sempre visual - de fenômenos naturais ao nível de organismo; o químico na experimentação, quase sempre por instrumento — ao nível molecular. Unir essas duas tendências num esforço interdisciplinar coordenado é difícil, mas é preciso que se tente.

Hoje, a questão básica já não é mais se podemos produzir alimentos, fármacos, energia, produtos em quantidade suficiente, mas quais as consequências ambientais disso. Na velocidade vertiginosa da destruição da biosfera, da atmosfera e até da estratosfera, cujas composições químicas afetam os organismos em geral e a humanidade em particular, dentro de algumas dezenas de anos custará uma inconcebível fortuna à pesquisa básica visando a uma extensão do período remanescente do homem no planeta. O drama não consiste tanto na capacidade do homem de alterar o ambiente, mas no desejo de alterá-lo antes de entender com precisão os fatores que governam a estrutura e o funcionamento desse meio. Por isso assistimos hoje à criação de grupos de estudos ecológicos, formados no Brasil principalmente por botânicos e zoólogos preocupados com a observação da interação de organismos em seus ambientes naturais. Tal observação só leva à compreensão do fenômeno se sua causa é baseada em comportamento ou forma. Mas a causa é mais freqüentemente baseada em química, e o biólogo que carece de conhecimento nessa área não irá longe em ecologia. Portanto, engrenar biologia e química é uma medida de defesa das gerações futuras.

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Entrevista concedida a Vera Rita da Costa (Ciência Hoje).