Entrevistas e texto de Maria Ignez Duque Estrada (Ciência Hoje)
Midia
Part of Entrevista Nise da Silveira
Publicado em agosto de 1987.
O que dizer de Dra. Nise? Penso de imediato num sentimento do mundo feito de espanto e paixão. Se não, como entender sua atitude face à loucura? Só a paixão pode ver na loucura o sublime, só o espanto pode nos mostrar incansavelmente aquilo que tão facilmente esquecemos: o louco é um homem, logo imprevisível e criador.
Por que, então, reter deste imenso entusiasmo pela verdade apenas as consequências artísticas ou estéticas? Vamos aos fatos. Muito já se falou de Dra. Nise; dos artistas que ela revelou; do seu parentesco teórico com Jung e de seu notável Museu de Imagens do Inconsciente. Sem dúvida, as belas obras e a alta cultura encantam, fascinam. Mas Dra. Nise cabe inteira numa teoria ou num hipnótico amor pelas artes plásticas? Duvidamos. Dra. Nise ama o belo, isto é inequívoco. Porém no coração da loucura ela buscou algo além da beleza. A beleza foi um meio eloquente de dizer: Vejam o que a psiquiatria asilar pode fazer com quem faz aquilo que tantos admiramos. A beleza nas imagens do inconsciente é denúncia. Denúncia do asilo, do exercício burocrático das profissões psiquiátricas e da sociedade, que cultua tais deformidades.
É a isto que pretendemos fazer coro. Não custa lembrar, Dra. Nise precedeu em muitos aspectos a antipsiquiatria, a psiquiatria democrática e mesmo as comunidades terapêuticas, no que este movimento teve de melhor, de menos ingênuo. Antes de Laing e Basaglia, ela dissera alto e bom som: o louco deu férias à razão mas não à sua humanidade. Pouca gente escutou. Foi preciso que 68 passasse e que os anos negros viessem para que os ouvidos surdos pudessem ouvir a nova música.
Não sem motivo. Ouvir este apelo significa, antes como agora, enfrentar o asilo e exigir do terapeuta uma outra postura. Do terapeuta se quer mais que as estereotipias nosográficas, as contenções físicas, os quilos de psicofármacos ou as teorias requentadas. Medicar, escutar ou responder a alguém que sofre é diferente de uniformizar desejos e mutilar consciências. A função do hospital é criar atmosferas de convívio onde possam emergir o imprevisível, a diferença, a criatividade e a história de cada um. Só assim, conflitos petrificados em delírios, autismo ou agitações podem ser transformados. Não há muito o que discutir: é isto ou a barbárie.
E Dra. Nise não parou aí. A psiquiatria asilar não cai do céu. Ela nasce e vegeta à sombra de uma sociedade alienada e alienante. Todas as cores da opressão, da discriminação, do preconceito e da super-exploração política, social ou econômica aparecem no asilo de modo frio, sem perdão. O hospício é o reino dos homens tristes. Nele, loucos e terapeutas partilham um destino semelhante. Isolados do trabalho, da invenção, dos feitos e ações criadoras, erram como robôs tontos. Quem conhece, sabe o gosto. Ali tudo fede a violência, promiscuidade, sordidez e agonia. Dra. Nise com suas imagens e seu trabalho desafiou esta triste psiquiatria. Mostrou que a arrogância de saberes fúteis é um esquife de luxo onde muitos enterram as vidas ou as esperanças. O asilo é uma usina, como aquelas de João Cabral: engole gente e cospe bagaço.
O que dizer de Dra. Nise? Ouçam duas vezes o que ela disse: prestem bem atenção àquilo que ela quis mostrar. E se depois disso insistirem em fazer de Dra. Nise uma caçadora de talentos plásticos escondidos, façam-no por sua própria conta e risco. Mas sem esquecer: beleza para ela nunca foi droga contra fome e sede de justiça.
Aos 82 anos, completados em 15 de fevereiro, Nise da Silveira é uma pessoa desconcertante. Frágil na cadeira de rodas a que está presa desde novembro, quando sofreu uma queda, manifesta uma firmeza que torna capaz de dirigir a organização de uma exposição itinerante de pintores esquizofrênicos; operada quatro vezes de glaucoma, seu olhar vai ao fundo do interlocutor, sem complacência, atravessando as grossas lentes. Seu trabalho pioneiro de pesquisa tratamento da doença mental através do que costuma ser designado por terapêutica ocupacional ou arteterapia - termos aos quais ela prefere emoção de lidar, definição cunhada por um antigo frequentador do ateliê de artes aplicadas — é conhecido no mundo inteiro e recebeu elogios de Carl Gustav Jung (1875-1961) há 30 anos. Cada vez mais pessoas vão ver os quadros pintados no complexo psiquiátrico do Engenho de Dentro, e o público faz fila para o filme Imagens do inconsciente, do cineasta Leon Hirszman, com roteiro de Nise. No entanto, a psiquiatria continua nas garras das multinacionais farmacêuticas e nos hospitais os internos são mantidos em camisa-de-força química, como ela assinala, indignada.
No apartamento em que mora há mais de 20 anos, no bairro carioca do Flamengo, um quadro de Di Cavalcanti (Meu único tesouro) retrata uma mulher e um gato. Outros gatos dormem sobre os móveis ou passeiam pela casa. Os livros cobrem as paredes e Dra. Nise continua trabalhando. Prepara agora com seu assistente, Luiz Carlos Mello, novos audiovisuais sobre os casos estudados no Museu do Inconsciente, instituição que fundou no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, em 1952. Ali passou a ser reunida e pesquisada a produção da seção terapêutica ocupacional, sob sua direção de 1946 a 1974, e que já então se tornara volumosa. Hoje o Museu possui um acervo de 250 mil obras, desde as garatujas do interno mais anônimo até as telas e desenhos de Emygdio de Barros, Raphael Domingues e Fernando Diniz, conhecidos pela qualidade de suas obras.
Quando, aos 16 anos, e da Silveira foi admitida na Faculdade de Medicina da Bahia como a única mulher da turma, seu pai, professor de matemática, deu-lhe alguns conselhos "Quem se mete a lobo, que lhe vista a pele", disse. E também: "Sempre se solidarize com os mais fracos e nunca aceite privilégio por ser mulher". Data daí, talvez, sua opção pelos marginais: o trabalho que apresentou ao concluir o curso, aos 21 anos, foi sobre a criminalidade entre as mulheres baianas. Ela estudou casos de assassinas, ladras e prostitutas no presídio de Salvador. Logo começou trabalhar em psiquiatria, mais interessada na pesquisa de outras formas de tratamento do que na terapia pelos métodos da época, ancorados no choque de insulina, no eletrochoque e na lobotomia. Já pressentia, então, que a esquizofrenia transbordava do modelo médico:
— Eu queria saber o que vai por dentro do indivíduo, queria entrar na cuca do doente tanto quanto pudesse, conhecer a psique, este pedaço da natureza que se chama psique. Fazer uma exploração, como quem faz uma exploração da floresta amazônica. Para mim o inconsciente é isso, uma floresta amazônica. Para os lacanianos, é uma pocinha d'água. Nise não gosta de falar de si nem de sua vida. "O que tinha a dizer está nos meus livros e na produção dos internos", afirma. Não parece ser, porém, a pessoinha tímida que Graciliano Ramos descreveu, após encontrá-la pela primeira vez, na prisão, em 1936. Várias vezes Graciliano fala de Nise, alagoana como ele, em Memórias do cárcere. À primeira impressão sucedeu o espanto, ao descobrir outros aspectos de sua personalidade quando a teve como companheira de cela: Nise falava como se nos conhecêssemos de velha data; nenhum sinal do acanhamento que nos tolhera à minha entrada no Pavilhão. Tinham-me dito dela, anos atrás: mulher de grande inteligência e grande caráter. "Renovei a frase, mencionando o autor".
— Lamento isso, murmurou Nise com ar arrepiado.
— Por quê?
— Porque tenho dessa criatura uma opinião muito diferente. Não acho nenhum caráter nela.
A doença e a modéstia esgarçaram-se, num instante a severa disposição alterou a fisionomia suave.
— Puxa! Não a imaginava capaz de tanta aspereza.
— Que hei de fazer? Era preferível eu desconhecer o elogio. Enfim, esses juízos fáceis não podem transformar-me.
Examinei a figurinha combalida, magra; o desejo de afastar o louvor inoportuno sufocava-a; os dedos finos tremiam.
A prisão no Estado Novo interrompeu por 16 meses o processo de aprendizado, mas ao mesmo tempo dotou-a de novos instrumentos para avaliar a loucura e a normalidade. Conta-se que ela foi denunciada como comunista por uma enfermeira do Hospital Pinei, onde trabalhou seis anos como médica residente. E que a enfermeira, por causa disso, foi surrada por uma doente. Na verdade, nunca foi uma militante ativa: tinha apenas contatos com membros do Partido Comunista Brasileiro (então Partido Comunista do Brasil, na ilegalidade).
Na prisão, a presença da psiquiatra é descrita, ainda por Graciliano Ramos, como benfazeja: "As conversas boas de Nise afugentavam a lembrança ruim. A pobre moça esquecia os próprios males e ocupava-se dos meus". Foi ela quem o ensinou a jogar crapaud para distrair-se do cotidiano terrível, e quem o introduziu ao "mundo do Caralâmpio", o reino da imaginação, refúgio para a falta total de privacidade. Essa história, em que Graciliano mais tarde se inspirou para escrever o livro infantil A terra dos meninos pelados, vem da infância de Nise. Caralâmpio era o sobrenome de um aluno de seu pai, por quem ela uma vez pediu: "Pai, não o reprove, gosto do nome". O pedido não pôde ser atendido: o menino estava totalmente por fora da matemática. Mas desde então seu nome ficou na família como sinônimo de indivíduo alheio a realidade, o tipo que vive nas nuvens.
O livro conta a história de um menino com um olho preto e outro azul que é submetido a picadas terríveis no couro cabeludo que deixam seu crânio liso (metáfora para as humilhações sofridas na prisão). Passa então a olhar o mundo de forma diferente e empreende uma fantástica viagem a lugares oníricos, acompanhado de seres inocentes, inofensivos. A principal personagem feminina é a princesa Caralâmpia, que se enfeita com colares de bichinhos vivos, um broche de vaga-lume e pulseira de cobra coral. Uma personagem intimamente ligada a Nise da Silveira.
Em liberdade, Nise consegue, após oito anos desempregada, a reintegração ao serviço público, mas põe em dúvida os métodos violentos de tratamento aplicados ao doente mental. Não se adapta ao trabalho na enfermaria. Então, em 1946, atendendo à sua sugestão, o diretor do centro psiquiátrico do Engenho de Dentro incumbe-a de fundar ali a Seção de Terapêutica Ocupacional. No início o ateliê de pintura foi apenas um dos setores de atividade. A terapêutica ocupacional era encarada pela psiquiatria como uma forma de manter os doentes ocupados ou fazê-los trabalhar para a economia hospitalar. Logo, porém, Nise se surpreendeu ao observar que os frequentadores do ateliê, todos esquizofrênicos, manifestavam intensa exaltação criadora, que resultava na produção de pinturas em número incrivelmente abundante, em contraste com a atividade reduzida de seu dia-a-dia, e cada um deles uma unidade temática muito pessoal.
Na primeira exposição, em 1947, no Ministério da Educação, a alta qualidade de alguns trabalhos chamou a atenção de críticos de arte, como Mário Pedrosa, que escreveu no Correio da Manhã: "Uma das funções mais poderosas da arte - descoberta da psicologia moderna - é a revelação do inconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado anormal. As imagens do inconsciente são apenas uma linguagem simbólica que o psiquiatra tem por dever decifrar. Mas ninguém impede que essas imagens e sinais sejam, além do mais, harmoniosas, sedutoras, dramáticas, vivas ou belas, enfim constituindo em si obras de arte".
Esse reconhecimento valeu para Dra. Nise como um atestado da capacidade criadora de doentes tidos como crônicos, um desmentido à opinião da psiquiatria tradicional, segundo a qual a esquizofrenia é um processo que acarreta a ruína da inteligência e o embotamento da afetividade. Serviu também como estímulo à sua busca, como autodidata, de embasamento teórico para fazer reconhecer a terapêutica ocupacional por si só, quando bem conduzida, como um método de tratamento legítimo, e não apenas uma prática auxiliar subalterna. Ainda hoje Nise se irrita ao lembrar que diziam que ela pretendia revelar artistas:
— Se catarem com uma lente a expressão arteterapia no meu trabalho, não vão encontrar. Sempre me insurgi contra ela. Por meio da pintura quis tornar, no processo psicótico, o invisível visível. O que me cabia era estudar os problemas científicos levantados por essas criações.
Ela observa que os críticos de arte foram mais atentos ao fenômeno da produção plástica dos esquizofrênicos do que os psiquiatras brasileiros:
— No mundo inteiro, até hoje a maioria deles se mantém irredutível, repetindo os velhos chavões arte psicótica, arte psicopatológica, insistindo em procurar nessas pinturas somente reflexos de sintomas de ruína psíquica.
E acrescenta:
— Aliás, é preciso desfazer essa separação entre ciência e arte. Afinal o que há de mais artístico do que a física atômica? E um dos maiores cientistas que a humanidade conheceu foi Leonardo da Vinci, um artista.
Dra. Nise encontrou o embasamento teórico que procurava em Jung, quem primeiro afirmara, em 1907, que a esquizofrenia (ou demência precoce, como era chamada) não era explicada pela medicina organicista e que seus sintomas podiam ser compreendidos psicologicamente. Pesquisando os mecanismos de associação de ideias em vários tipos de esquizofrenia, Bleuler, tendo Jung como assistente, verificou que todos os indivíduos apresentavam um mesmo distúrbio em comum, ao qual ele denominou dissociação psíquica. Mas, durante a aplicação dos testes, Jung observou as reações dos doentes, que haviam sido desprezadas pelos psicólogos anteriores. E aplicou as ideias de Freud sobre interpretação dos sonhos, atos falhos e sintomas neuróticos à decifração dos delírios aparentemente desconexos dos esquizofrênicos. Levantou então a hipótese de que, apesar de incongruentes, gestos e delírios não eram vazios de sentido.
— Shakespeare já sabia que os delírios têm sentido. Polonius, referindo-se aos desvairados discursos de Hamlet, diz: Desvario sim, mas tem seu método. Mas, naturalmente, os homens de ciência nunca escutam os poetas - observa Nise.
Outra chave para o mundo fragmentado do esquizofrênico Nise da Silveira encontrou em Artaud, poeta francês que esteve internado durante nove anos, rotulado como esquizofrênico e submetido aos tratamentos tradicionais. Ele escrevera:
"O eletrochoque me desespera. Apaga minha memória, entorpece meu pensamento e meu coração, faz de mim um ausente que se sabe e se vê durante semanas na busca do seu ser, como um morto que caminha ao lado de um vivo que não é mais ele, que exige a sua volta e no qual ele não pode mais entrar. Na última série eu fiquei durante os meses de agosto e setembro na impossibilidade absoluta de trabalhar, de pensar e de me sentir ser".
Sobretudo uma frase de Artaud, escrita a propósito de um pintor surrealista, impressionou-a vivamente: "O ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos". Ela diz que pensou: "É isso!", sentindo que o poeta se referia aos acontecimentos terríveis que se passam na profundeza da psique, sensações de desmembramento do corpo, de caos, de distorção do espaço, de metamorfoses.
Para Nise, a esquizofrenia não é propriamente uma doença: é antes a manifestação destes "estados do ser" desencadeados por situações extremas, que desagregam o ego. Na verdade, dever-se-ia dizer que uma pessoa "está esquizofrênica", e não que "é esquizofrênica". A volta à realidade é difícil, porque o indivíduo logo é submetido a choques elétricos, dopado, trancafiado num lugar inadequado, além de marginalizado por uma sociedade que é ao mesmo tempo co-causadora do processo de alienação.
No esquizofrênico a sociedade vê sua sombra no espelho, e por temer essa sombra é que quer isolá-lo. Nem sempre foi assim: na Alemanha do século XVI, Jacob Boehme, um sapateiro, teve um êxtase místico ao ver o sol refletido num prato de estanho polido. Depois dessa e de outras experiências semelhantes, passou a escrever suas visões, mas não deixou de remendar sapatos. Era considerado por todos como um homem sábio e religioso. Diferente foi a sorte de Carlos Pertuis, outro sapateiro, que viveu muito mais próximo de nós. Em 1939, aos 29 anos de idade, Carlos foi ofuscado por uma visão cósmica quando um raio de sol cintilou no pequeno espelho de seu quarto. Deslumbrado, chamou a família para ver o planetário de Deus. Foi internado imediatamente. Logo que teve oportunidade para pintar, em 1947, reproduziu como podia a visão fatídica.
Esta e outras vivências estão representadas nas telas do ateliê do Engenho de Dentro. Mas, de modo geral, os psiquiatras usam os óculos do patológico e veem apenas como doença a experiência que desintegrou o ego de Carlos: "é a burrice exemplar da psiquiatria", nas palavras de Nise.
Otávio, outro "crônico" do Engenho de Dentro, disse uma vez: "A esquizofrenia consiste numa doença em que o coração fica sofrendo mais do que os outros órgãos. Então ele fica maior e estoura". Para Jung, a gênese psicológica da esquizofrenia se encontra em avassaladoras cargas afetivas desencadeadas por situações extremas -tensão, ansiedade, humilhação, relações interpessoais destituídas de amor, frustrantes ou opressivas — que perturbam as funções do ego e desmontam a hierarquia psíquica. A unidade do ego, que nas neuroses mantém-se pelo menos parcialmente, se estilhaça. O ego em pedaços não consegue fazer face a realidade externa, e a personalidade consciente, centrada no ego, sucumbe ao assalto das forças do inconsciente.
— Jung já dizia que nós vivemos entre dois mundos: o mundo externo, percebido pelos sentidos, e o mundo interno, inconsciente, reino de imagens nem sempre verbalizáveis. Acossado no mundo externo, o indivíduo encontra como saída a porta da loucura, que se abre para o mundo intrapsíquico. A volta é difícil porque seu mundo interno não é aceito pela sociedade, aí incluindo a psiquiatria. Então, a tarefa de terapêutica ocupacional é oferecer atividades que permitam a expressão do não verbalizável, é desenvolver as sementes criativas que se mantêm em todo o indivíduo, porque o impulso a renascer é espantosamente resistente no ser humano.
Para isso, a terapêutica ocupacional deve colocar ao alcance do indivíduo as manifestações que através de milênios a humanidade usou para exprimir-se: dança, representações mímicas, pintura, modelagem, música. Quando há alto grau de crispação do consciente, só as mãos são capazes de fantasia. O barro, as cores, as tintas transmitem a emoção de lidar, de que falou o antigo paciente. Neste caminho, Dra. Nise encontrou o pensamento do filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962), ainda hoje uma de suas leituras prediletas.
Uma das primeiras peculiaridades observadas por Nise ao começar seu trabalho foi que os internos pintavam com freqüência, sobretudo nos períodos regressivos, formas circulares semelhantes a mandalas, imagens usadas nas religiões orientais como instrumentos para a concentração. Desde a pré-história o círculo é um símbolo carregado de sentido para o ser humano, um símbolo mágico. Assim foi visto entre os egípcios, gregos, celtas e outros povos:
— Dois mil anos de cristianismo representam apenas a superfície. Nos profundos labirintos da psique vivem ainda os deuses pagãos.
Depois de reunir centenas desses desenhos, ela enviou, em 1954, algumas fotografias a Jung, buscando uma interpretação. A resposta não demorou: os desenhos indicavam uma tendência do inconsciente a compensar o caos interior procurando o ponto central (o self), numa tentativa de reconstrução da personalidade cindida. Na psicologia junguiana, o self, simbolizado pela mandala, "é o princípio e arquétipo da orientação e do sentido, e nisso consiste a sua função curativa".
Dra. Nise conta que se viu diante de uma abertura nova para a compreensão dos conteúdos do inconsciente, manifestados através das pinturas. Em 1957 ela estava na Suíça e teve uma entrevista inesquecível com Jung. Era um homem impressionante: "olhos atentos, poucas palavras". O psiquiatra suíço aconselhou-a a estudar mitologia para compreender melhor os delírios dos doentes e as suas pinturas, que teve oportunidade de ver expostos em Zurique, durante um congresso de psiquiatria, na mesma ocasião. Ele lhe disse também: "Sua exposição me intrigou muito". Dra. Nise conta que ficou de orelha em pé, esperando o que vinha em seguida. E Jung comentou: "Seu serviço deve ser um lugar onde as pessoas não têm medo do inconsciente".
— Considerei isso um galanteio de Jung - diz Nise.
Ela insiste, porém, em afirmar que não teve formação junguiana e que para ela Jung foi um instrumento de trabalho. E reclama:
— As pessoas pensam que vão encontrar Jung no meu colo, que sou a mãe de Jung! O que fiz foi empreender a busca do que se passa na cuca do esquizofrênico. Através das pinturas procurei abrir brechas, fixar fragmentos desse enigmático mundo interno, obter um autorretrato.
— De fato o clima que reinava no ateliê era de total liberdade, um contato de igual para igual, sem distinção, entre médicos, doentes e monitores. Era um lugar amplo, agradável, com janelas sempre abertas para as árvores. Muitas vezes os internos o escolheram espontaneamente como motivo para as pinturas, o que mostra como tinha significação para eles.
Além do ambiente acolhedor que Jung intuíra a partir dos trabalhos que viu, Dra. Nise ressalta a importância de um fato catalisador, que seja para o doente um ponto de referência na realidade. Os monitores, escolhidos a dedo por Nise por sua paciência e calor humano, desempenhavam muitas vezes este papel. Mas como na esquizofrenia a comunicação verbal é freqüentemente difícil, outro tipo de auxiliar foi introduzido no Engenho de Dentro: o co-terapeuta não humano. Ela explica:
— O cão é um animal ideal para esse papel. Dá afeto incondicional sem pedir nada em troca, não provoca frustrações, traz alegria ao ambiente do hospital.
— Um dia, apareceu por lá uma cachorra que os funcionários estavam sempre enxotando. Então eu botei nela o nome de Nise e disse para eles: agora, vocês vão ter que enxotar a chefe do serviço: "Passa fora, Nise..."
— Já os gatos são esquivos, têm uma maneira de querer bem talvez mais semelhante à dos esquizofrênicos. São os meus mestres e grandes companheiros.
Os gatos são os animais preferidos de Dra. Nise. A longa permanência na cadeira de rodas acarreta-lhe dificuldades respiratórias, que trata com ioga e imitando a respiração dos seus felinos.
A despersonalização infligida ao interno no hospital psiquiátrico é outra mazela que Dra. Nise denuncia com ênfase. "Os prontuários - diz - são de uma pobreza total". Exemplos: Adelina foi internada após uma crise em que estrangulou a gata da casa; Carlos, em seguida à experiência mística em que viu o "planetário de Deus"; Fernando Diniz, apaixonado pela filha de uma freguesa da mãe, modesta costureira, enlouqueceu quando soube que a moça se casara. Nenhum desses dados constava dos seus prontuários, ninguém se preocupara em obter informações além das estritamente burocráticas.
Para vencer este isolamento, a Seção de Terapêutica Ocupacional passou a promover bailes para os internos. As críticas não tardaram a ser ouvidas: era a "gafieira da Nise", diziam. Tratava-se de criar um clima mais humano, de convívio, "de enturmamento", como dizia Fernando. Práticas esportivas eram também estimuladas, como jogos de vôlei no terreno que hoje serve de estacionamento para o hospital:
- Olho muito os olhos e as mãos do doente. Nunca vi mãos tão maravilhosas como as de Rafael. Ele fazia bico de pena e tinha gestos rebuscados. Ficava às vezes parado, com a pena no ar. A gente chegava perto e ele dava pequenos traços delicados em nossa roupa. Eu tomava cuidado, mas não reclamava.
Apoiando-se no estudo da mitologia e da psicologia junguiana, Dra. Nise compreendeu as pinturas como expressão de respostas arcaicas, que habitam o íntimo de todos os seres humanos em todas as épocas e que afloram diante de situações extremas. Era preciso, então, encontrar um fio para decifrá-las, acompanhando as sequências dos trabalhos de cada autor com paciência, fazendo "paralelos mitológicos". E assim viu ressurgirem no Engenho de Dentro representações do mito da união dos opostos, do Sol, de Dafne, de Dionísio...
— Não se trata de um passe de mágica: a tarefa do psiquiatra é estabelecer conexões entre as imagens que emergem do inconsciente e a situação emocional que o indivíduo vive. É uma metodologia praticada de cócoras: horas e horas examinando séries de desenhos espalhados pelo chão. Quanto ao próprio indivíduo, à medida que puser para fora esse material arcaico, porém sadio, ele despotencializa as figuras ameaçadoras do seu inconsciente.
As narrativas míticas falam de heróis que superam perigos e encontraram renovação. Herói, diz Jung, é o que conquista o dragão, não o que é vencido. Mas ambos defrontaram com o mesmo dragão.
— Constância, paciência e um ambiente livre de qualquer coação são essenciais. No tratamento, o mais importante é um real interesse em penetrar no mundo hermético do esquizofrênico, tentar entender o que o levou ao naufrágio. Ele é sensível a isso. Observar conversas, falar pouco, concordar com tudo, recolher qualquer garatuja. O essencial é o afeto incondicional, porque é o que ele quer, porque ele se sente sempre pouco amado. No fundo, a gente está tratando de nós mesmos para talvez, a partir daí, tentar curar o doente.
Nise diz ter adotado "a regra de ouro de Darwin", que tomava nota cuidadosamente das opiniões contrárias para não esquecer as contradições de suas teorias e explorá-las. Ela verificou que os acontecimentos intrapsíquicos não progridem de forma linear, estão sujeitos a numerosas regressões, que é muito lento o processo de retorno à realidade:
— Mas é preciso não esquecer que um percurso de ida e volta a esferas subterrâneas muito profundas foi palmilhado. E em condições muito desfavoráveis, pois o hospital não favorece essa viagem. Pelo contrário, favorece as regressões.
E faz sua mais violenta crítica à instituição psiquiátrica:
— O que oferece em troca a psiquiatria tradicional? Doses brutais de psicotrópicos que sufocam as forças defensivas do inconsciente e que, elas sim, causam graves efeitos ao organismo. Estão aí as reinternações a comprovar isso. A situação de 1986 é a mesma de muitos anos atrás: para 28 internações, 16 são reinternações.
Nise cita a Carta aos médicos chefes dos asilos de loucos, de Artaud: "Para quantos dentre vós o sonho do esquizofrênico, as imagens das quais ele é presa são algo diferente de uma salada de palavras? Possais lembrar-vos amanhã, na hora da visita, quando tentardes, sem vocabulário adequado, conversar com estes homens, que não tendes outra vantagem a não ser a da força".
— Esta carta é como um chicote na face dos psiquiatras. Nenhum escapa, por ação ou omissão. Eu também não escapo: não protestei suficientemente.
- A comunidade médica é corresponsável por esse estado de coisas. As pessoas têm tendência a atribuir a culpa ao Estado. Mas o Estado não está convivendo diariamente com essas pessoas sensibilíssimas. O problema é que os médicos acham que sabem tudo. Perderam a capacidade de se espantar, de buscar o desconhecido, não ficam mais embatucados. A universidade emburrece (...) A psiquiatria já foi melhor do que é hoje. Quando José Clemente Pereira, ministro do Império, criou o antigo hospital da Praia Vermelha, em meados do século passado, mandou instrumentos de música para os internos, dizendo: "para que eles se distraiam e, talvez, se curem". O diretor do hospital foi mandado estagiar em Paris com Pinel e trouxe enfermeiras para trabalhar.
Mesmo assim, a cura da esquizofrenia é uma questão ambígua. Muitos já acusaram Dra. Nise de não se preocupar com isso. Ela responde que acredita sim, mas dentro de certos limites:
- Quem passou por experiências radicais, como a loucura, a prisão, a tortura, nunca volta mais o mesmo. Os valores se modificam. Um interno me perguntou: "Doutora, a senhora acha que me curo"? Eu respondi: "Acho sim, mas nunca voltará a ser um burocrata". Outro, um operário de construção que recebera alta, começou a aparecer de novo no ateliê. Perguntei: "O que você está fazendo aqui?" Disse que tinha começado a sentir umas coisas esquisitas e resolvera aproveitar as horas de folga para pintar. Compreendi que não tinha aguentado as tarefas monótonas, repetitivas. Uma pessoa muito curada é uma pessoa chata.