Pesquisa, entrevistas e texto de Roberto Barros de Carvalho (Ciência Hoje/MG)

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Part of Entrevista Maurício Rocha e Silva

O farmacologista Maurício Oscar da Rocha e Silva viveu pouco mais de 73 anos. Mas quem por acaso rastrear sua agitada existência sem ater-se a datas terá a impressão de que ele viveu ao menos um século, tal o formidável elenco de atividades com as quais se envolveu. Seja no domínio da ciência e da política científica, seja no terreno da educação, das letras, da arte e da filosofia, em especial a filosofia da ciência. Foi, enfim, um humanista, desses que não mais se costuma ver nos dias de hoje. No campo da ciência, em que se destacou sobremaneira, rompeu limites e aproximou áreas aparentemente distanciadas, advogando em favor de um raciocínio interdisciplinar quando o conceito de interdisciplinaridade ainda não havia entrado em voga. Tinha personalidade forte, marcada por uma obsessão irrefreável de andar com as próprias pernas, e estava sempre à frente de seu tempo.

Nascido no Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão, a 19 de setembro de 1910, consolidou sua carreira em São Paulo, para onde se mudou em 1934, um ano depois de formar-se médico pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Era filho de um homem tão ou mais sistemático e impulsivo do que ele, o psiquiatra João Olavo da Rocha e Silva, e de Dona Alzira Couto da Rocha e Silva. Quinto filho de uma família de seis irmãos, levou quando garoto uma vida livre nas matas, criando galinhas e colhendo plantas silvestres. Durante os quatro anos que passou na Ilha do Governador, morando numa pequena praia em casa sem eletricidade nem água corrente, frequentou a escola primária em três lugares distintos. Naquela época, o acesso ao Rio, no continente, era feito exclusivamente por mar, em barcas que circulavam algumas vezes por dia.

A primeira forte influência intelectual que recebeu na vida terá certamente vindo do pai, um homem que tinha enorme gosto pelos livros e vivia cercado deles. Ao chegar em casa depois do trabalho, costumava, após rápido descanso, passar o resto do dia e parte da noite lendo e escrevendo ativamente. Deixou alguns manuscritos sobre temas médicos e outros sobre os mecanismos da evolução. "Sua biblioteca era o único lugar grandioso na casa", recordou-se Rocha e Silva certa vez numa breve memória que escreveu.

Aos dez anos, mudou-se para o Rio, trocando, como ele próprio disse, "o revigorante aroma do mar pelo forte cheiro do asfalto que se derretia nos dias mais quentes". Durante um ano frequentou a escola elementar nas imediações da casa da avó paterna, Dona Leopoldina, na Tijuca, onde viveu algum tempo. Aos 11 anos foi para o ginásio do governo federal, o famoso Colégio Pedro II, fundado pelo imperador, tendo sido aluno de alguns professores preeminentes. Na avaliação que fez deles mais tarde, disse que alguns não eram tão bons quanto se falava e outros já estavam visivelmente cansados. "Mas o nível de estudos, comparado com o de outras escolas recém-formadas no Rio", concluiu, "era o mais elevado".

O Colégio Pedro II e a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro

Seu primeiro professor de aritmética era um velho mestre de filosofia que dava aulas andando vagarosamente de um lado para o outro enquanto explicava a origem do sistema de numeração. Para a garotada que mal sabia multiplicar e dividir na base dez, compreender como se fazia o mesmo em outra base era um trabalho muito duro, admitia ele. Rocha e Silva tinha especial gosto pelas aulas de língua portuguesa, cujo professor explicava de modo vivo e atraente as transformações das palavras do latim para o latim vulgar e, finalmente, para as línguas românicas. De vez em quando, o professor ficava alguns dias sem ir ao Colégio, e corria o boato de que ele havia sido preso por suas ideias anarquistas. O Brasil vivia naquela época a tensão do Movimento Tenentista.

Rocha e Silva deixou registrada a boa impressão que lhe causaram seus professores de latim e alemão: o primeiro um ex-padre que havia escrito uma gramática latina, e o segundo "um humanista dotado de muito saber e erudição". Mas quem mais o impressionou foi seu professor de álgebra e geometria, um jovem dinâmico que, contrário à adoção de manuais, escrevia tudo no quadro-negro e, com exemplos claros, tornava a matéria extremamente prazerosa. Ele costumava terminar a aula contando um caso ou anedota com certo sabor de matemática e era hábil em escrever contos sobre califas e sábios árabes, assinando-os com o pseudônimo de Malba Tahan. "Pela primeira vez na vida tive que apresentar cadernos limpos, o que contribuiu bastante para pôr certa ordem em meu espírito, que, não fosse isso, estaria um caos", deixou anotado em suas memórias, que, curiosamente, não fazem referência ao ensino de ciências no colégio.

Em 1925, depois de concluir o terceiro ano, deixou o Pedro II e, por conta própria, começou a preparar-se para os exames necessários ao ingresso na universidade. Após dois anos de preparação intensiva, foi aprovado nos exames para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, no início de 1928, tendo sido o quarto colocado entre mais de 500 candidatos. Enquanto se preparava, dava aulas em um ginásio da cidade de Campanha (MG) e, pouco depois, em Lorena (SP). Nesta última ensinava história, química e física a alunos do nível mais adiantado do ginásio. Durante os exames para ingresso na Faculdade, alguns desses alunos ficaram surpresos ao encontrar o professor disputando uma vaga junto com eles.

A entrada na Faculdade de Medicina foi decepcionante para Rocha e Silva, que, já nessa época, apresentava nítida mentalidade de pesquisador. Em cada classe havia entre 300 e 400 alunos, e a maioria dos professores dedicava-lhes pouquíssimo tempo. Eram clínicos nomeados para ensinar ciência básica ou, como ele próprio disse, "criaturas fossilizadas muito além de sua idade produtiva". Para seu desgosto, a parte teórica de bioquímica foi-lhe ensinada por um ginecologista nomeado para o cargo por um político influente. A maioria jamais publicara sequer uma nota em periódicos internacionais da área, nem no então popular Comptes rendues de Ia Société de Biologie de Paris. Embora limitando suas atividades de ensino a poucas horas por semana, só Álvaro Ozório de Almeida, em fisiologia, e Lafayete Pereira, em física, dedicavam-se completamente a estudos científicos. Segundo ele, à exceção de Ozório de Almeida, ninguém, nem mesmo Pereira, poderia ser chamado de cientista na Faculdade de Medicina.

Naquela época, quem quisesse dedicar-se à ciência biológica tinha que fazer um longo percurso para chegar ao Instituto Oswaldo Cruz, nos subúrbios do Rio. A Faculdade era um lugar que apenas preparava profissionais no campo da medicina. O laboratório de Ozório de Almeida havia sido montado em sua própria residência, e o grupo de fisiologistas que se reunia em torno dele era restrito a alguns poucos assistentes voluntários. A possibilidade de se conseguir cargo remunerado era então praticamente nula. Rocha e Silva estava bastante influenciado pelo grupo de Ozório mas não pertencia ao seu círculo interno, razão pela qual não tinha decidido que ramo da ciência seguir.

Certa época pensou em tornar-se físico, o que o fez procurar a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, cujas condições de pesquisa ele descreveu sem meias palavras em entrevista concedida ao sociólogo Simon Schwartzman: "Freqüentei o laboratório de Dulcídio Pereira na Politécnica e percebi que não teria possibilidade de começar qualquer coisa em física, que não existia no Rio de Janeiro. A impressão que me deu esse laboratório foi horrível, pior ainda do que na Medicina, porque não se fazia absolutamente nada. Era um servente graduado que tomava conta daquela aparelhagem obsoleta. Havia um espectrômetro, até muito novo para a época, mas acho que só o professor Dulcídio podia botar a mão. O resto era aquela aparelhagem de ensino de física em ginásio. Era uma tapera. Na física teórica, não havia nada. Nessa época, havia um matemático famoso com quem eu gostava de conversar, o Amoroso Costa, um sujeito que realmente tinha uma visão progressista da matemática e da ciência. O resto, eram técnicos fantasiados de matemáticos".

Em outro momento de seu curso de medicina, resolveu tornar-se escritor. E levou tão a sério essa ideia que, ao final do curso, dividia seu tempo entre visitar enfermarias e ambulatórios e escrever novelas, peças teatrais e histórias curtas, tendo chegado a publicar o livro de contos Bonecos de porcellana. Vivia nessa época numa casa histórica no Largo do Boticário, em cujo sótão escreveu suas obras. "Mas, depois de ler Goethe, optei pela ciência experimental", costumava dizer, brincando.

Nessa mesma casa, recebia a visita de amigos para discutir questões de filosofia, ciência e literatura, entre eles o fisiologista Haity Moussatché, Raul de Mello Franco, seu colega na Faculdade de Medicina, e o imunologista Otto Bier, um dos maiores amigos que cultivou ao longo de sua vida. Mais tarde, já em São Paulo, faria também incursões pelo terreno das artes plásticas, tendo pintado mais de uma dezena de quadros, alguns dos quais decorava sua casa em Ribeirão Preto. Durante o curso de medicina, para prover seu sustento, dava aulas num ginásio particular, primeiro em Petrópolis e depois no Rio, no prestigiado Colégio Accioli, dirigido por seu antigo professor de latim no Colégio Pedro II.

O Instituto Biológico de São Paulo

Ao concluir o curso médico, decidiu mudar-se para São Paulo a convite de Otto Bier, que vinha fazendo brilhante carreira no Instituto Biológico, sob a direção de um cientista pelo qual Rocha e Silva passaria a nutrir enorme admiração: Henrique da Rocha Lima, que viera do grupo de Oswaldo Cruz e havia passado vinte anos no Instituto de Moléstias Tropicais, em Hamburgo, Alemanha. Rocha Lima, que durante a Primeira Guerra Mundial descobriu o agente etiológico do tifo exantemático, a Rickettsia prowasekii, havia reunido em torno de si, no Instituto Biológico, um grupo de jovens e notáveis cientistas, de que participavam, além de Bier, Paulo Galvão, José Reis, Dorival Cardoso, Nelson Planet, Adolpho Penha, Paulo Nóbrega e Mário Autuori, entre outros, e estava sempre aberto à sua expansão.

Embora fosse freqüentador assíduo do Biológico desde sua chegada a São Paulo — sobretudo durante as famosas reuniões das sextas-feiras, quando ali se debatiam temas científicos de relevância — Rocha e Silva, antes de ir para esse Instituto, foi assistente de química biológica do professor Quintino Mingoya na Faculdade de Farmácia e Odontologia da Universidade de São Paulo e assistente científico do professor André Dreyfus na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da mesma universidade. Só em 1937 ele ingressaria no Instituto Biológico.

Logo que se estabeleceu em São Paulo, começou a estudar com Otto Bier alguns aspectos de imunologia e reação inflamatória. Durante o tempo em que esteve com Dreyfus, que lhe deu ampla liberdade de trabalho, dedicou-se principalmente a temas como hemólise, permeabilidade capilar e ação fotodinâmica. Simultaneamente, mantinha-se em contato com a equipe do Biológico, do Instituto Butantã e com os professores Ernest Breslau e Felix Rawitscher, que começavam a desenvolver os departamentos de zoologia e botânica da recém-criada Universidade de São Paulo. A criação da USP pelo governador Armando Salles Oliveira - sobretudo a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras — dava início a uma nova era para o desenvolvimento da ciência no Brasil, introduzindo o espírito de pesquisa em todas as áreas do conhecimento.

Rocha e Silva deixou registrado seu descontentamento com os rumos que as coisas tomaram na universidade. Segundo ele, esperava-se que a Faculdade de Filosofia se tornasse o instituto básico da USP, de modo que os futuros cientistas vivificassem as antigas escolas profissionalizantes, como medicina, engenharia e direito. Mas não foi isso o que aconteceu: o objetivo principal da Faculdade acabou sendo a produção de professores para escolas secundárias e para os institutos científicos que necessitavam de docentes. "A Faculdade de Medicina e a Escola de Engenharia continuaram a ser os monólitos para o desenvolvimento de homens profissionais, mas as forças dominantes eram os antigos catedráticos; e a espécie de ciência que continuavam a fazer era a mais provincial possível, transmitida em ensaios publicados principalmente em periódicos brasileiros, em português", escreveu certa vez. Segundo relatavam irreverentemente algumas pessoas que não podiam transpor a barreira do nepotismo prevalecente em tais faculdades, "as cadeiras eram transferidas como legado de família, por sangue ou per vagina".

Corria o ano de 1937, ocasião em que os institutos progrediam firmemente. O Biológico e o Butantã, em São Paulo, e o Agronômico, em Campinas, eram os lugares onde a ciência se fazia em nível de excelência. Foi quando aceitou o convite para integrar o quadro de pesquisadores do Biológico, para realizar trabalho intensivo sobre ação fotodinâmica, histamina, inflamação e enzimas proteolíticas. Inicialmente trabalhou com a colaboração de Bier, Paulo Galvão e Quintino Mingoya, passando depois a estudar sozinho esses temas.

Apesar da magnitude de alguns trabalhos científicos que realizaria mais tarde, Rocha e Silva sempre teve certo orgulho de um de seus primeiros feitos de sucesso no Biológico: a comprovação de que a ingestão da planta tóxica Holocalyx glaziovii, conhecida popularmente como alecrim, era a causa de uma doença que atacava o gado bovino na região nordeste de São Paulo. Ao ingerir a planta, os animais apresentavam forte icterícia, fotofobia, edema e necrose da pele e morriam com o fígado endurecido, apresentando grande retenção do pigmento biliar. Para provar sua tese, Rocha e Silva mandou colher material numa fazenda, fez moer um quilo da planta num pouco d'água e deu-a a um bezerro para engolir. Em poucos minutos o animal estava morto. Assim, abordou um problema cuja busca de solução cabia àquele instituto, criado, a princípio, com o objetivo de desenvolver trabalhos científicos de natureza agrícola. Além desse trabalho eminentemente aplicado à defesa sanitária, estudou no Biológico a adaptação do método de purificação do soro anti-pneumocócico para produzir soro anticarbunculoso e reproduziu com a dicumarina a doença hemorrágica, que havia sido observada por outros autores em coelhos pela administração do trevo-doce (Melilotus alba) alterado por silagem imperfeita.

Estágios no exterior

Em 1939, Rocha e Silva candidatou-se a uma bolsa de estudos da Fundação Guggenheim, tendo, para tanto, planejado trabalhar na liberação de histamina, tema a que já vinha se dedicando por influência de Otto Bier, e nos efeitos da tripsina como possível fator na etiologia da pancreatite hemorrágica. Sua ideia era imitar alguns dos efeitos dos venenos ofídicos, conforme descrição feita por Feldberg e Kellaway, na Austrália. Como algumas das enzimas em venenos são fortemente proteolíticas (têm o poder de decompor proteínas), ele calculou que uma protease típica como a tripsina poderia também liberar substâncias ativas. Até aquele momento, ninguém havia estudado esse material do ponto de vista farmacológico, como lhe disse por carta o cientista Northrop, encorajando-o a prosseguir nessa direção. A proposta foi encaminhada à Fundação Guggenheim, que a acatou prontamente, tendo sido Rocha e Silva um dos quatro primeiros brasileiros a conseguir essa prestigiosa bolsa.

De 1940 a 1942, trabalhou nos Estados Unidos com Carl A. Dragstedt na Northwestern University, em Chicago, com Charles F. Code e E. Essex no Instituto de Medicina Experimental de Rochester, no Minnesota, e com Max Bergman no Instituto Rockefeller, em Nova York. Nesse último estágio sintetizou cinco compostos de histamina com aminoácidos e dedicou-se ao isolamento e às propriedades de enzimas proteolíticas. Em Chicago e Rochester procurou compreender a ação da histamina no aumento da permeabilidade vascular e sua liberação por ação de venenos no sangue de coelhos. Logo após seu retorno a São Paulo, seria nomeado chefe da Seção de Bioquímica e Farmacodinâmica do Instituto Biológico, cargo que ocupou até 1956. Com a monumental experiência acumulada nos Estados Unidos, sobretudo em química de proteínas, continuou a trabalhar com histamina, agora com o apoio da assistente Sylvia Andrade e de outros pesquisadores interessados principalmente em compreender o fenômeno dos choques alérgicos.

Em 1946 deixa novamente o Brasil, seguindo dessa vez para a Inglaterra com bolsa do Conselho Britânico. Na University College, em Londres, trabalhou com Claude Rimington em patologia química, no hospital, e depois com Heinz Schild, no Departamento de Farmacologia. Com Rimington conseguiu preparar a enzima fibrinolítica de plasma bovino e, durante seis meses, estudou liberação de histamina com Schild. A convivência em este último foi fundamental para a evolução da carreira científica de Rocha e Silva. Com Schild, percebeu a importância da aplicação da estatística em bioensaios, para resolver problemas insolúveis por meios puramente bioquímicos, e, por meio dele, teve acesso à renomada Escola de Dale de Farmacologia e Fisiologia, à qual pertenciam gigantes do porte de G.L. Brown, J.H. Gaddum, W. Feldberg, J.H. Burn e Edith Bülbring, entre outros. "A ideia de que o bioensaio é talvez o instrumento mais potente para resolver muitos problemas que não teriam uma abordagem química direta foi de grande utilidade no estudo de polipeptídeos ativos no sangue, como logo se nos apresentaria na descoberta da bradicinina", disse Rocha e Silva certa vez. As técnicas e o raciocínio que desenvolveu durante a convivência com Schild se tornaram o tema dominante de seu trabalho ao retornar ao Instituto Biológico em 1947, quando passou a contar com a colaboração de Wilson Teixeira Beraldo, à época também professor da Faculdade de Medicina da USP, e de Gastão Rosenfeld, que havia deixado o Instituto Butantã e trouxera consigo amostras do veneno de Bothrops jararaca.

Mas, antes de voltar ao Brasil, Rocha e Silva assistiu a uma série de conferências do prestigiado pesquisador W Feldberg na Universidade de Cambridge e participou de uma reunião da Royal Society, quando conheceu Henry Dale, o precursor dos estudos sobre histamina. Durante sua estada na Inglaterra conseguiu tempo para ir à América do Norte, sob os auspícios do então recém-criado Instituto Brasil-Canadá, quando trabalhou em Toronto no laboratório de Charles Best sobre choque peptônico e liberação de histamina. Ainda no Canadá entra em contato com o húngaro Hans Selye, considerado o pai da teoria do estresse, visitou a Universidade de Montreal, laboratórios em Halifax, no nordeste do país, e participou de um congresso de farmacologia em Sainte Adèle, no Québec. Em Nova Iorque participou de uma reunião da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAC), quando discutiu com vários pesquisadores a importância de se criar uma associação em defesa da ciência.

O talento de Rocha e Silva para imaginar problemas científicos e atacá-los no laboratório impressionou de tal modo o pesquisador Charles Best — descobridor da insulina em 1921, juntamente com Frederick Banting — que este o convidou para seu assistente na Universidade de Toronto. Embora lisonjeado com a proposta, Rocha e Silva respondeu-lhe que os brasileiros raramente emigravam. "Deixar o país para melhorar a situação financeira é de certo modo uma traição a nossos amigos e alunos", refletiria ele anos mais tarde.

A bordo do Javanese Prince, retorna ao Brasil em novembro de 1947 na companhia do farmacologista José Ribeiro do Valle, seu amigo e admirador. Ribeiro do Valle conta que a cabeça de Rocha e Silva fervilhava de planos e perspectivas, convencido de que algo mais deveria haver no contexto das ações da histamina. "Era o fog que se dissipava na antevisão da descoberta, e o nascimento da bradicinina não demoraria mais de um ano", relata Valle.

Rocha e Silva ainda estava na Inglaterra quando recebeu as primeiras notícias do ataque que o então governador de São Paulo Adhemar de Barros desfechava contra a universidade e os institutos de pesquisa paulistas. A direção do Butantã havia sido entregue a Eduardo Vaz, "um político inescrupuloso e mau cientista", segundo o próprio Rocha e Silva. Seus melhores pesquisadores foram demitidos ou tiveram que deixá-lo diante da nova filosofia que passou a reinar ali: ciência pura era coisa de desocupados, e o instituto deveria concentrar suas atividades na produção de soros e vacinas. Os salários dos cientistas foram congelados, assim como a gratificação paga pela dedicação em tempo integral. O Instituto Biológico pôde resistir, absorvendo alguns cientistas que deixaram o Butantã, graças ao prestígio político de seu diretor, Rocha Lima, genro do ex-governador Fernando Costa, e à sua reputação de cientista de expressão internacional.

A descoberta da bradicinina

As amostras de Bothrops jararaca levadas por Rosenfeld para o laboratório de Rocha e Silva no Instituto Biológico foram fundamentais para os trabalhos que pouco depois ali se desenvolveriam. Embora o veneno fosse um potente agente de coagulação sangüínea, foi possível fazê-lo provocar choque vascular em um cão completamente desfibrinado, cujo sangue foi testado em íleo de cobaia previamente tratado com atropina e anti-histamínicos para torná-lo insensível à ação do veneno. Mesmo assim o intestino respondia ao sangue, contraindo-se, uma prova de que esse fato não se devia nem à acetilcolina (que é bloqueada por atropina) nem à histamina. "Estávamos tão condicionados a pensar em histamina, que decidimos fazer uma perfusão de fígado de cão, usando sangue desfibrinado como veículo para o veneno", registrou Rocha e Silva em suas memórias. Para surpresa sua e de seus colaboradores, depois de injetar o veneno na cânula que levava o sangue ao fígado isolado, o teste dos perfusados de sangue no intestino da cobaia revelou grande atividade. O mais surpreendente era que a atividade desaparecia, após subsistir durante cerca de uma hora.

Em apenas poucos dias de trabalho percebeu-se que o fígado nada tinha a ver com a formação de tal material, bastando adicionar veneno diretamente à amostra de sangue desfibrinado para fazer a atividade desenvolver-se e desaparecer em seguida. Após uma semana de trabalhos intensivos, Rocha e Silva bateu o martelo: o princípio novo que observavam — batizado de bradicinina (de brady = lento e kinesia = movimento) — estava presente na globulina do plasma, podendo ser liberado por um agente como o veneno de B. Jararaca. Consultado por Rocha e Silva, o cientista José Reis, interessado em questões lingüísticas, aprovou o nome dado àquela substância de reação lenta que produzia contração, movimento. Observou-se pouco depois que ela podia também provocar a queda da pressão arterial. O material foi purificado, e a secagem do extrato permitiu a obtenção de um pó estável que podia ser estudado em detalhe. Pouco depois observou-se que, como o veneno, a tripsina também podia liberar bradicinina. Assinada por Maurício Rocha e Silva, Wilson T. Beraldo e Gastão Rosenfeld, a primeira comunicação sobre a descoberta da nova substância saiu em 1949 no número inaugural da revista Ciência e Cultura, da então recém-criada Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. No ano seguinte foi publicado um trabalho completo no American Journal of Physiology.

A aceitação da bradicinina

Justamente no Brasil, a pátria da bradicinina, como ficaria indiscutivelmente demonstrado mais tarde, houve muitos obstáculos à sua plena aceitação. Foi preciso mais de um ano de lutas para provar sua existência. Durante uma reunião da Sociedade de Biologia de São Paulo, a nova substância chegou a ser contestada pelo professor Jaime Pereira, catedrático de farmacologia da Faculdade de Medicina da USP. Ele afirmava categoricamente que a bradicinina era uma mistura de histamina com adenosina e publicou dois trabalhos negando sua existência.

A propósito dessa história, o professor Wilson Beraldo levantou a hipótese de que Pereira se recusava a admitir a bradicinina em função de interesses pessoais: com sua aposentadoria, queria garantir a vaga de catedrático de farmacologia na Faculdade de Medicina da USP para seu genro, Charles Eduard Corbett, que teria como concorrente ninguém menos que Rocha e Silva. Esse concurso, realizado em 1952, "tinha cartas marcadas", confirma a tese de Beraldo o fisiopatologista do Instituto do Coração (USP) Maurício Rocha e Silva, filho de Rocha e Silva. "Meu pai foi sabotado", conta ele, dizendo que na prova prática, em que deveria fazer uma demonstração sobre diuréticos, o cão que lhe foi dado para os experimentos era moribundo e se encontrava no mais profundo estado de desidratação.

Rocha Lima, que, juntamente com Otto Bier e outros cientistas de renome, consolou Rocha e Silva no triste episódio de sua reprovação no concurso, disse certa vez que ele próprio fazia questão de admitir cientistas e técnicos para trabalhar no Instituto Biológico "pela porta estreita do mérito e não pela porta larga do concurso". Em 1975, "por uma questão de honra, para cumprir um compromisso comigo mesmo", segundo suas próprias palavras, Rocha e Silva faria concurso para professor titular de farmacologia no Instituto de Ciências Biomédicas da USP, tendo sido aprovado com distinção. Mas nunca tomou posse.

Apresentada no Congresso Internacional de Fisiologia, em Copenhague, no Instituto Superior de Saúde, em Roma, no Instituto Pasteur, em Paris, no Instituto Nacional de Pesquisas, em Londres, e no Instituto de Farmacologia, em Madri, a bradicinina foi bem aceita no exterior no início dos anos 50. Mas não faltou quem afirmasse, sem provas cabais, que a nova substância havia sido descoberta em 1936 na Alemanha, cuja literatura científica registrava inúmeros fatores ainda mal identificados. Mas finalmente no simpósio sobre polipeptídeos ativos realizado em Londres, em 1959, o respeitado farmacologista J.H. Gaddum daria um depoimento que funcionou como uma pá de cal sobre qualquer vestígio de dúvida: "A bradicinina foi descrita por Rocha e Silva em 1948 e provou ser um potente estímulo à pesquisa. Quem ainda não havia sido atraído para esse ramo concentrou trabalhos nessa substância tendo em vista os resultados simples e bem definidos apresentados por seu descobridor. Ele prestou um grande serviço a todos nós ao chamar a atenção para esse grupo de substâncias".

Os estudos sobre a bradicinina avançaram no início dos anos 50 após o estágio que Rocha e Silva fez, em Estocolmo, no laboratório de Ulf von Euler - Nobel de fisiologia e medicina em 1970 — com a colaboração de Ulla Hamberg e de P. Pernow. Nos anos seguintes, os estudos da nova substância progrediriam em ritmo exponencial no laboratório de Rocha e Silva, no Instituto Biológico. O grupo, que já contava com Beraldo e Sylvia Andrade, amplia-se com a colaboração fundamental de Carlos

Ribeiro Diniz e Eline Prado, que, por meio de métodos cromatográficos, visando à purificação da bradicinina, conseguiram aumentar sua atividade em cerca de mil vezes. Com a utilização, por Sylvia Andrade, de uma resina de troca de íons, obteve-se, em 1955, um material bastante puro e ativo. Os resultados desses trabalhos seriam publicados no Biochemical Journal, em 1956.

Foi, portanto, no decorrer dos trabalhos sobre a histamina que Rocha e Silva chegaria à bradicinina. Mas, mesmo após essa descoberta, a histamina continua sendo objeto de sua atenção. "Esses dois agentes autofarmacológicos identificam os campos de maior destaque da produção de Rocha e Silva, e em ambos ele é autoridade mundial, tendo apresentado uma produtividade científica surpreendente", avalia a pesquisadora Alba Campos Lavras, do Instituto Butantã. Foram cerca de 300 trabalhos publicados em revistas científicas de padrão internacional na área biomédica nas prestigiadas Nature Science, além de livros e revisões sobre temas de farmacologia, sobressaindo-se Fundamentos de farmacologia e suas aplicações à terapêutica e o volume sobre histamina e anti-histamínicos que integra o grande Tratado de Farmacologia Experimental, de Heffter, publicado pela Springer Verlag em 1966.

A transferência para Ribeirão Preto

Em 1957, no auge de uma carreira científica de sucesso, Rocha e Silva aceita o convite de Zeferino Vaz para assumir, como professor catedrático, o Departamento de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP). Zeferino queria que a jovem Faculdade, fundada por ele em 1952 no oeste paulista, se tornasse um verdadeiro centro de investigação de farmacologia e considerava que Rocha e Silva era o homem certo para realizar essa tarefa. Sua decisão não poderia ter sido mais acertada. Ali chegando, Rocha e Silva expandiu o grupo para estudar cininas vasoativas — formado por Alexandre Pinto Corrado, Adolfo Max Rothschild, Sérgio Steiner Cardoso, Sérgio Henrique Ferreira, Abílio Antônio, João Garcia Leme, Frederico Guilherme Graeff e Antônio Carlos Martins de Camargo - e teve papel fundamental na criação dos programas de pós-graduação da Faculdade. Dezenas de teses foram ali defendidas e muitos trabalhos relevantes seriam publicados em periódicos internacionais de primeira linha. Sob a liderança do mestre, o grupo teve atuação destacada nos congressos internacionais de farmacologia de Estocolmo (1961), Praga (1963), São Paulo (1966), Basiléia (1969) e San Francisco (1972). Em várias ocasiões, as atividades do Departamento de Farmacologia estiveram ligadas à bioquímica, com os professores Carlos Diniz e Ivan Fiore de Carvalho, à fisiologia, com Ricardo Francisco Marseillan e Eduardo Moacyr Krieger, e a cadeiras clínicas, como, por exemplo, à de obstetrícia, conduzida por Alberto Raul Martinez.

Dos trabalhos do grupo de Rocha e Silva em Ribeirão Preto, destacam-se os do farmacologista Sérgio Henrique Ferreira, que descobriu que o veneno de B. jararaca continha, além da enzima que libertava a bradicinina, uma substância que potenciava sua ação, por isso chamado de BPF (Bradykinin Potenciating Factor). "Rocha e Silva era um experimentador nato e gostava de estimular seus colaboradores. Mas, por ser muito exigente, era um homem difícil: queria sempre que os trabalhos tivessem padrão internacional", conta Sérgio, lembrando-se dos tempos de convivência no laboratório. Fazendo uma analogia entre os métodos científicos adotados por Rocha e Silva e o velho brinquedo de pular varinha, ele costuma dizer que o mestre se comprazia em erguê-la no momento em que alguém ia saltá-la. "Era difícil trabalhar assim, mas sem dúvida era estimulante. Ninguém podia contentar-se com pouco, com um padrão medíocre", recorda-se.

Para Sérgio Ferreira, Rocha e Silva "é a pedra fundamental da ideia da autofarmacologia, não só no Brasil mas em nível internacional". Também chamadas de autacóides, as substâncias autofarmacológicas são liberadas no tecido e ali mesmo atuam, com um efeito direto, vasodilatador, broncoconstrictor, etc., diferentemente do modo de ação de hormônios e neurotransmissores. O estudo dessas substâncias cresceu enormemente nas últimas décadas, e o papel da bradicinina é hoje considerado inquestionável nos estudos sobre dor, sobretudo a dor crônica, que ocorre após os processos inflamatórios.

A criação da SBPC

O golpe do governador Adhemar de Barros contra a universidade e os institutos de pesquisa paulistas despertou a ira de Rocha e Silva. Convencido da importância de associações como a Royal Society e a AAAC, cujo poder de influência havia presenciado em Londres e Nova York, ele decide lutar pela criação de uma sociedade em defesa da ciência no Brasil. Com o apoio de José Reis e Paulo Sawaya — os chamados cavaleiros andantes — conseguiu motivar inúmeros cientistas brasileiros em torno da ideia de uma sociedade com esse perfil. Os primeiros encontros de articulação aconteceram no Instituto Biológico. Pouco depois, um grupo já bem maior reunir-se-ia formalmente no antigo prédio da Associação Paulista de Medicina, na avenida Brigadeiro Luiz Antônio, para a assinatura da ata de fundação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC. Corria o ano de 1948, época em que no laboratório do Biológico a bradicinina também estava nascendo. "Fiquei na fila de assinatura da ata atrás do Haity Moussatché, que usava um elegantíssimo terno branco", recorda-se Wilson Beraldo, o 29° a assinar a lista de 265 sócios fundadores. Em outubro de 1949 aconteceria em Campinas a primeira reunião anual da Sociedade, pouco depois do lançamento, em abril daquele ano, do primeiro número de Ciência e Cultura, a revista científica da SBPC, até hoje em circulação.

Daquele período em diante, com reuniões anuais que se sucederam em todas as regiões brasileiras quase sem interrupção, a Sociedade passaria a crescer não só em número de sócios mas também em prestígio no âmbito científico e político do país. O papel desempenhado pela SBPC na organização da comunidade científica brasileira foi aos poucos se tornando evidente. Rocha e Silva sustentava que o movimento iniciado na Sociedade levou à reformulação da universidade brasileira, permitindo o surgimento dos planos da Universidade de Brasília, iniciados no governo João Goulart e continuados após o golpe militar de 1964. Ele costumava lembrar também que foi a partir das reuniões da SBPC que nasceram inúmeras sociedades científicas especializadas no Brasil e inúmeras vocações para a pesquisa.

Por cinco vezes, Rocha e Silva elegeu-se vice-presidente da SBPC (1949-1959), foi seu conselheiro de 1959 a 1963 e seu presidente por três vezes, de 1963 a 1969, quando recebeu o título de presidente de honra da Sociedade. De 1962 a 1966 foi membro do Conselho Federal de Educação. Ex-vice-presidente da União Internacional de Farmacologia, recebeu o Prêmio Nacional de Ciência e Tecnologia do CNPq em 1982 e, em 1967, foi agraciado com o prêmio Moinho Santista de Ciências Biológicas, a mais alta condecoração conferida à um cientista no Brasil. Em 1981, recebeu o Prêmio de Ciências Bernardo Houssay, do Conselho Interamericano de Educação, Ciência e Cultura da Organização dos Estados Americanos, "por sua extraordinária contribuição científica". O comitê científico do Nobel ter-lhe-ia feito justiça se o houvesse condecorado com o seu prêmio de fisiologia e medicina pela descoberta da bradicinina. Afinal esse feito — com a posterior colaboração de Sérgio Henrique Ferreira — está na base do desenvolvimento, por laboratórios norte-americanos, dos medicamentos anti-hipertensivos, hoje essenciais à vida de milhares de pessoas em todo o mundo.

No campo da filosofia da ciência, em que publicou vários livros — Lógica da invenção, A evolução do pensamento científico, Ciência e humanismo Diálogo sobre a lógica do conhecimento, este em parceria com o educador Anísio Teixeira — costumava defender teses polêmicas, como a de que a criação intelectual é mais produto da intuição que dos princípios da lógica e da razão. Durante seu trabalho, defendia Rocha e Silva, o cientista jamais pode abrir mão da intuição, um fabuloso instrumento de progresso que é confirmado pela experimentação. Era um colecionador de máximas e de uma, cunhada pelo pensador inglês Bertrand Russel, gostava especialmente: "Não acredite numa coisa sem ter uma boa razão para fazê-lo". Em visita ao fisiologista Haity Moussatché, no Rio de Janeiro, pouco depois de descobrir a bradicinina, Rocha e Silva arriscou uma previsão, antevendo a importância que a descoberta teria na medicina: "Um dia, Haity, a bradicinina será vendida em ampolas". Ele tinha ótimas razões para intuir.

Título

Pesquisa, entrevistas e texto de Roberto Barros de Carvalho (Ciência Hoje/MG)