Entrevista concedida a Nilcéa Freire (Departamento de Parasitologia, UERJ) e Sheila Kaplan (Ciência Hoje}.

Midia

Part of Entrevista Leônidas e Maria Deane

Publicada em junho de 1987.

Impossível pensar sobre saúde pública no Brasil, nos últimos 50 anos, sem lembrar imediatamente de Leônidas de Mello Deane e Maria José von Paumgartten Deane - o casal Deane. Desde que se formaram pela Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará (ele em 1935, ela em 1937), os dois parasitologistas percorreram o país de ponta a ponta, dedicando-se tanto às pesquisas de campo quanto às de laboratório. Foram muitas aventuras. A pé, a cavalo, em canoa, jipe ou avião, atravessaram o país numa época em que não havia estradas e nem se podia sonhar, por exemplo, com as geladeiras portáteis. Dessas viagens, eles reuniram muitas histórias. Como diz Maria, "coisas de rir e coisas de fazer chorar, chorar de raiva, impotente diante dos problemas da gente pobre deste rico país ". Mas a aventura não estava apenas em conhecer o país. Estava, principalmente, em tentar conhecer mais e mais a respeito das doenças endêmicas de origem parasitária - seus agentes e transmissores, os hábitos destes, onde se criavam, onde se escondiam, como  infectavam  as pessoas e como ocorria a  transmissão da doença.

A preocupação com a saúde pública apareceu no princípio da carreira, quando Evandro Chagas chegou ao Pará e motivou aqueles jovens a partilharem do projeto: estudar o calazar. Foi criado, então, o Instituto de Patologia Experimental do Norte, o qual passou a se chamar em 1940, Instituto Evandro Chagas,em homenagem ao seu cridor, falecido aos 35 anos em um desastre de avião.  

De 1936 a 1939, Leônidas e Maria viajaram pelo interior do Pará, estudando o calazar. De 1939 a 1942, participaram do Serviço de Malária do Nordeste. Entre 1944/45, fizeram cursos nas universidades de Johns Hopkins e de Michigan, nos Estados Unidos. Já com o título de mestres em saúde pública, voltaram para a Amazônia, onde trabalharam até 1949, junto ao Serviço Especial da Saúde Pública. Em 1953, transferiram-se para a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde encontraram o mestre Samuel Pessoa.

Os Deane nunca se interessaram em sair por longo tempo do país. Em 1973, porém, forçados pelas mesmas circunstâncias que levaram muitos ao exílio, migraram para Portugal, onde ficaram até 1975. Em 1976, aceitaram o convite da Universidade de Carabobo, na Venezuela, para reestruturarem o Departamento de Parasitologia da Faculdade de Ciências da Saúde. Desde 1980, os dois estão no Instituto Oswaldo Cruz. Maria, 70 anos, é chefe do Departamento de Protozoologia e vice-diretora do Instituto. Leônidas, 73 anos, é chefe do Departamento de Entomologia. Maria conta, até hoje, 110 publicações; Leõnidas, 170. Muitos destes trabalhos, é claro, foram escritos em parceria. Ao longo da carreira, foram muitos os cargos ocupados. Leônidas destaca, entre eles, os de perito em doenças parasitárias da Organização Mundial de Saúde (de 1964 a 1980) e de membro do Comitê de Conselheiros em Pesquisa Médica da Organização Mundial de Saúde (de 1974 a 1977). Maria é consultora da Fapesp, do CNPq e da Finep. Os prêmios também foram vários. As homenagens que mais prezam, no entanto, são as que receberam de estudantes e companheiros de trabalho, gravadas em placas, ou presas nas portas de laboratórios de pesquisa.

início da carreira de vocês coincidiu com a criação do Instituto Evandro Chagas. Podem contar um pouco sobre essa época?

Leônidas: Nós dois somos nascidos e criados em Belém. Fizemos todo o curso secundário e superior lá. Comecei a namorar a Maria quando eu estava no terceiro ano da Faculdade de Medicina, ela ainda era estudante de medicina, estava no primeiro ano.  Eu acabara de me formar, quando começamos a trabalhar no recém-fundado Instituto Evandro Chagas, que não levava ainda este nome. Nós éramos bem jovens. Evandro Chagas era o diretor, tinha então 32 anos. Os outros membros da equipe eram mais novos: Felipe Nery Guimarães, que depois foi diretor de Manguinhos, tinha 20; Otávio Mangabeira, 23; Benedito Sá e eu, 22; Gladstone, meu irmão, 21; Maria, 20. Começamos muito cedo mesmo.

O Instituto foi acidentalmente localizado em Belém. Henrique Penna tinha acabado de publicar um trabalho demonstrando que uma doença chamada calazar, leishmaniose visceral, era bastante frequente no Brasil. Um fato inteiramente novo. Não se tinha ideia, então, da existência dessa doença como epidemia aqui. Ele revelou de uma vez só 41 casos, que iam desde o Pará até a Bahia. Examinando 47 mil fragmentos de fígado, colhidos por viscerotomia no interior do país, encontrou 41 com leishmânias - um índice altíssimo para uma doença desconhecida.

O Evandro, homem extremamente inteligente, era filho e assistente do Carlos Chagas, diretor do Instituto Oswaldo Cruz e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Foi incumbido pelo pai de estudar essa nova doença. Evandro aproveitou as fichas do Henrique Penna - cada caso vinha com indicação de endereço - e foi procurar as casas assinaladas. Partiu para o Nordeste, que era área de concentração. Chegando em Sergipe, achou dois casos ainda não notificados: a mãe de um paciente que tinha tido a doença e um doente vivo, o primeiro doente vivo estudado no continente. O pai não queria deixar o menino ser transportado para o Rio, para tratamento, mas era muito pobre e, em troca de 50 mil réis, acabou consentindo. O Evandro trouxe o garoto para este Instituto (Manguinhos), tratou muito bem e fez seus primeiros estudos a respeito da sintomatologia, patologia, diagnóstico e tratamento do calazar brasileiro.

Entusiasmado por ter encontrado um caso vivo - e já prevendo que ia encontrar outros - ele imaginou que o Instituto podia ter filiais em outros estados. Sabia que o Brasil não era um país só, eram vários países bem diferentes, e portanto com doenças que podiam ser diferentes também. Achou que seria interessante fazer institutos regionais, Manguinhos no Rio, outro no Nordeste e um talvez na Amazônia. Viajou com esse propósito, tentando conseguir dos governos dos estados - Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Ceará e Piauí - ajuda para fazer um instituto. Mas foi sempre recebendo negativas porque os estados eram pobres, não podiam sustentar um instituto de pesquisa. Até que chegou em Belém. Lá, visitou o laboratório onde trabalhávamos na Faculdade de Medicina e nos entusiasmou muito pelo tipo de serviço. A nossa aspiração era ter laboratório clínico, mas quando ele contou que ia para o interior procurando os casos, que sua intenção era verificar como essa doença era transmitida e depois como se podia fazer o controle, achamos interessante e nos aproximamos bastante dele.

No terraço do hotel em que estava hospedado, onde costumava ir depois do jantar, o Evandro conheceu o filho de um desembargador muito conceituado, que era amicíssimo do governador do Pará. Contou a sua história e o rapaz achou que seu pai talvez conseguisse alguma coisa. Conseguiu: em 1936, foi criado o Instituto de Patologia Experimental do Norte (Ipen), para pesquisa de doenças tropicais.

O governo do Pará contratou, para esse instituto, vários brotinhos recentemente formados,gente que tinha saído da faculdade, mas que tinha propensão para esse tipo de serviço, que trabalhava em laboratório. O próprio Evandro tinha conversado com alguns e mais ou menos selecionado aqueles com os quais  pensava  em trabalhar. Ao mesmo tempo, ele montou uma equipe aqui no Sul com pessoas que haviam acabado de fazer o curso de Manguinhos. inclusive   a Maria, que fez um treinamento na unidade do instituo no Rio de janeiro. Apesar de ainda não ser formada, o Evandro percebeu nela motivação suficiente para seguir adiante neste projeto. As duas equipes formaram um grupo só, para trabalhar com o calazar e depois com outras doenças importantes da região.

Vocês fizeram parte de uma escola de cientistas que desbravou o país percorrendo todo o interior, em contato com a gente pobre do Brasil e a realidade mais precária. Como eram as condições de trabalho na época em que iniciaram a carreira?

Leônidas: No princípio da nossa carreira, no Pará, durante mais ou menos dois anos, passamos a metade do tempo no meio da mata. Dormíamos em cabana de caboclo, tínhamos o refeitório e o laboratório em barracas de lona, na floresta. Para chegar lá, viajávamos geralmente nos pequenos aviões do Correio Aéreo Nacional. Eram aviões monomotores, com lugar só para piloto e um passageiro. Como éramos quatro ou cinco, o piloto tinha que fazer várias viagens durante o dia. Esses aviões não tinham cobertura. Do peito para cima a gente fica exposto ao vento, então tínhamos que usar capacete, óculos e tudo. As asas eram de lona, às vezes remendadas com esparadrapo. Fazíamos essa viagem uma vez por mês e passávamos cerca de 15 dias no mato. O avião nos largava numa cidade chamada Abaetetuba, no Pará, e tínhamos que andar 18 quilômetros pela mata para poder chegar à região do calazar. Nós levávamos toda a bagagem - redes, mosquiteiro, microscópio, equipamentos de trabalho - como se fôssemos soldados em tempo de guerra. A população nativa, muito pobre, nunca tinha visto automóvel ou caminhão. Conheciam somente avião, porque passava por cima, o resto não conheciam. Era um pessoal muito primitivo: banho era em igarapé, sanitário era a floresta mesmo, e muito pouca comida, não era de caça. Nós também nos alimentávamos de caça, até o cozinheiro caçava. Certa vez, a fome nos levou a sacrificar as cobaias que trouxéramos para inocular. Foram anos bastante duros, mas foi também um ótimo exercício, uma prática muito boa de trabalho em situações difíceis. Nós tínhamos medo quando estávamos voando, enquanto os pilotos que nos traziam ficavam apavorados com as doenças que viam embaixo - crianças deformadas pelo bouba ou os paludosos tremendo com seus calafrios nas redes.

Quais foram os resultados dos primeiros estudos sobre calazar, com Evandro Chagas?

Leônidas: As descobertas mais importantes sobre o calazar só aconteceram depois, quando já estávamos na Faculdade de Medicina de São Paulo. Naquele tempo, apesar da inexperiência natural, nossa equipe chegou de qualquer forma a informações interessantes. Descobrimos os primeiros cães com leishmânias e vimos que o cão era importante na disseminação da doença na região. Verificamos também que o transmissor era uma espécie de inseto chamada Lutzomyia longipalpis, a única achada nas casas, alimentando-se de pessoas e cães. E estabelecemos uma relação entre paisagem e calazar. Notamos que era uma doença de terra firme e não das zonas de várzea, que ocupam grande parte da Amazônia. Como o Evandro achava que o calazar teria um reservatório silvestre, tínhamos uma tabela de preços para cada espécie de animal caçado. Examinamos centenas de animais silvestres e descobrimos vários parasitas novos, mas não encontramos nesses animais os hospedeiros do calazar. Depois, em 1953, quando já na Universidade de São Paulo, fomos mandados pelo Samuel Pessoa para estudar o calazar no Nordeste, aí sim encontramos coisas mais interessantes. Principalmente, descobrimos um animal silvestre como fonte de infecção: a raposa.

Ipen começou estudando o calazar. Quando suas atividades se estenderam para outras doenças?

Leônidas: Nós começamos a trabalhar em 1936 e ficamos lá, no Pará, até 1939. Depois, de 39 a 42, aconteceu o seguinte: um mosquito africano, chamado Anopheles gambiae, invadiu o Nordeste do Brasil e causou a maior epidemia de malária que já houve no continente americano. Em oito meses,a doença matou 14 mil pessoas, no Ceará e Rio Grande do Norte. Uma epidemia muito séria. O governo brasileiro se alarmou e o  governo americano mais ainda, porque estava no princípio da guerra - 1939 - e houve o temor de que esse mosquito pudesse chegar até o canal do Panamá. Se tinha atravessado o Atlântico até aqui, ele podia chegar ao canal, passo a passo, do Nordeste até a Amazônia, da Amazônia ao Panamá. Então, os norte-americanos firmaram um convênio com o governo brasileiro para fazer um serviço conjunto, chamado Serviço de Malária do Nordeste. Este Serviço começou a contratar brasileiros - havia  poucos americanos - e chegou a ter 4.000 funcionários. Era muito bem organizado, com uma disciplina, pode-se dizer, quase militar.

O temor de que o mosquito chegasse até o canal do Panamá mostrou-se injustificado. Sua larva só se desenvolvia em porções de água limpa e exposta ao sol. Não haveria jeito, portanto, de atravessar florestas e áreas sombreadas.

Quem nos indicou foi o Evandro Chagas. Do Pará fomos para o Nordeste, onde ficamos até 1942, na campanha de erradicação desse mosquito no Brasil. Era uma campanha muito rigorosa. O revezamento dos médicos e dos guardas era enorme; entrava um, passava 15 dias ou um mês, já era posto para fora, porque não satisfazia. Se, no laboratório, uma pessoa errasse o diagnóstico de uma lâmina ou a classificação de um mosquito, perdia a remuneração do dia. Podia ter examinado milhares de mosquitos, se errasse um, perdia o dia. Todos trabalhavam sob uma tensão muito grande, com uma bruta vontade de não errar. Foi essa a razão da eficiência do serviço. Era um serviço desumano, nesse particular, mas sem o que eu acho que não se teria eliminado esse mosquito do Brasil.

Todas as casas da região, uma por uma, foram numeradas. Todas as poças de água, rios, regatos, lagoas, lagos, todos numerados, mapeados. A área conhecida da distribuição do mosquito foi cercada com postos de pulverização de trens, automóveis, caminhões, para evitar que o bicho fosse se expandindo. O cerco foi sendo fechado cada vez mais, até se eliminar completamente o mosquito.

Durante esse tempo todo, aqueles guardas ganhavam salário muito bom. Basta dizer que um guarda-chefe ganhava mais que o prefeito de Aracati (Ceará). Todo mundo queria ser guarda do Serviço de Malária do Nordeste. Com isso, formou-se um bom número de excelentes auxiliares de saúde pública. Pelo sucesso da campanha, o governo ganhou um prêmio de saúde pública de uma sociedade americana de doenças tropicais. Foi a primeira vez que um transmissor estrangeiro pode ser expulso do país. Nós dois tivemos a grande sorte de trabalhar durante toda a campanha. Ganhamos uma experiência muito grande sob vários aspectos, especialmente quanto à disciplina. Nos cadernos de anotação de experiências, por exemplo, tínhamos que ter todas as páginas numeradas. Não se podia arrancar nenhuma página, não se podia apagar ou riscar completamente nenhuma experiência. Só era permitido fazer um traço sobre o que estivesse errado, para que os chefes pudessem ver o que a gente tinha feito antes e tinha considerado errado.

Vocês trabalhavam juntos?

Leônidas: Ficamos um pouco separados. Uma de minhas funções era ajudar a delimitar a área de expansão do gambiae, que era um trabalho de campo, principalmente. Maria ficou mais na parte de laboratório.

Maria: Nessa época, eu fiz, meio secretamente, meu primeiro experimento. Eu queria fazer uma experiência sozinha, mas ficava sempre achando que ia fazer bobagem. Daí ter feito meio escondido. Eu tinha sido incumbida de criar o gambiae em laboratório. Foi quando li um artigo sobre um outro anofelino, o Anopheles walkeri, que produzia uns ovos diferentes quando chegava o inverno (os winter eggs). Esses ovos tinham uma resistência muito maior do que os normais. Eram claramente ovos de hibernação. Resolvi fazer uma experiência com o gambiae para ver se acontecia alguma coisa semelhante. Coloquei em geladeira, por vários dias, exemplares de gambiae recém-engurgitados e, examinando depois os ovos obtidos desses exemplares, vi que a morfologia de alguns trazia alterações semelhantes à dos ovos de inverno do walkeri, embora o gambiae apresentasse uma distribuição exclusivamente tropical. Fiquei muito contente com meus resultados, saí dando pulos.

Eu pensava em prosseguir no assunto, mas não foi possível. Um dia, o dr. Fred Soper, que era o Diretor americano do Serviço, apareceu lá no laboratório, em Aracati, e disse que íamos ter que matar toda a minha colônia de gambiae porque era o único lugar onde ainda havia mosquitos desta espécie vivos no Brasil. Então, foram mortos os meus bichinhos.

Leônidas: No trabalho de campo, saíamos às seis horas da manhã, seguindo os leitos semi-secos daqueles rios, procurando as larvas do mosquito, para ver até onde essas larvas chegavam. Depois, tínhamos que tomar a direção de um trecho que ficasse três quilômetros acima do último ponto onde alguma larva do bicho havia sido encontrada. Dormíamos onde o crepúsculo nos pegava. Numa das viagens, durante um mês, dormi todas as noites em lugares diferentes, às vezes em silos, em cima daqueles cereais. Outras vezes, o mais freqüente, em redes, e não era raro acordar infestado de percevejos. Andava-se a pé, de caminhonete, automóvel ou jegue. Montei até em boi, uma experiência bem desagradável.

Naquele tempo, não havia rádio de pilha, não havia estradas. As comunicações eram difíceis, a população vivia completamente isolada. A gente chegava as casas para examinar os pacientes, tirar o sangue para a malária, e as pessoas ficavam com medo. Uma vez, num povoado, encontramos uma casa vazia. Não entendemos, mas aconteceu de alguém tossir. Olhamos para cima e vimos que a família toda estava trepada numa árvore, com medo da gente.

No sul do Ceará, naquele época, o padre Cícero tinha feito uma profecia segundo a qual o demônio viria três vezes para aquela terra. A primeira, vinha sangrando, a segunda furando os olhos, a terceira vez matando as pessoas. Nós fomos nessa zona, no interior de Iguatu, onde encontramos várias senhoras, velhas e novas, tremendo de medo. Expliquei que queríamos tirar o sangue para examinar. Elas conversaram com o guarda, que me acompanhava, e disseram que aquilo era a primeira fase da profecia de padre Cícero; nós vínhamos sangrá-las, por isso estavam com tanto medo. Quando o guarda explicou que eu era do Serviço, elas ficaram achando que talvez fosse verdade, mas tinha que provar. Para mostrar que não era o diabo, tive que tirar a botas. Elas queriam ter certeza de que eu não tinha pé de cabra. Só então me deixaram tirar o sangue. Numa outra casa, em Icó, pelo mesmo motivo, por causa da "besta fera", como eles chamavam, tive que fazer o sinal da cruz diante de um crucifixo. Quando acabei, ficaram todos aliviados porque eu não tinha explodido com cheiro de enxofre.

E o que ocorreu quando o gambiae foi erradicado do Brasil?

Maria: Nós começamos a estudar outros transmissores de malária. Leônidas, eu e um americano, Otis Causey, fizemos um estudo muito detalhado no Nordeste, na Amazônia e em outras regiões do Brasil, como Espírito Santo e Minas. Esses estudos, inclusive, produziram uma monografia, que foi publicada nos Estados Unidos, na série monográfica do American Journal of Hygiene.

Durante esse período, descrevemos várias espécies novas e estudamos todo o ciclo evolutivo desses anofelinos. Estudamos também a biologia, para saber que espécies eram importantes do ponto de vista da malária. A preocupação estava sempre voltada para os aspectos de saúde pública e transmissão de doenças. Uma ocasião, passamos uns seis meses subindo o rio Amazonas e vários afluentes, pesquisando a biologia desses bichos e sua capacidade de transmitir malária. Deste estudo, veio a ideia de que, exceto no litoral, havia somente uma espécie de anofelino importante como vetor de malária em toda a Amazônia: o Anopheles darlingi. Não é o único, mas é realmente o mais importante. A parte seca do Nordeste sempre foi praticamente livre de malária, tirando o período em que lá se instalou o A gambiae.

Examinamos em grande detalhe a biologia do darlingi, as horas em que entrava nas casas para sugar sangue, dissecando milhares de estômagos e glândulas salivares, para ver a proporção deles que tinha infecção por plasmódio, agente da malária. Observamos que, nas casas, o darlingi repousava apenas nas partes mais baixas das paredes e, com isso, foi possível uma economia no controle da malária pela aspersão de inseticida nas moradias. Foi um trabalho de alguns anos, de muito detalhe e muito gostoso.

Os estudos que fizemos e mais os do grupo que trabalhou no Paraná e em Santa Catarina, onde há outros vetores de malária, trouxeram dados muito úteis para as campanhas de controle da doença. Estudos atuais sobre a malária na Amazônia mostram que o darlingi continua a ser a espécie de anofelino mais importante na transmissão, muito embora haja outras espécies, hoje, por causa das transformações tremendas ocorridas na área, com o desmatamento e a invasão de migrante.

Depois do Serviço de Malária do Nordeste, vocês voltaram à Amazônia para trabalhar no Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp). Por que foi criado este órgão?

Leônidas: No início da Segunda Guerra Mundial, previa-se uma escassez de borracha para os aliados. Os japoneses tinham invadido as plantações de borracha do Oriente e ninguém sabia bem como ia evoluir a guerra. Então, os americanos incentivaram a plantação na Amazônia. O Sesp foi criado para dar assistência aos trabalhadores da borracha na região amazônica. Botaram 50 mil nordestinos para trabalhar nos seringais e criaram este Serviço. Naquele tempo, 90% da verba vinham dos Estados Unidos e 10% do Brasil; depois, os americanos foram diminuindo 10% a cada ano, até que ficou só o Brasil.

O que nós fazíamos era ver onde é que havia malária, quais eram os mosquitos que estavam transmitindo a doença e como é que eles viviam - os hábitos do transmissor. Nós tínhamos que chegar na área dos seringueiros, passar algumas noites em suas casas e acompanhá-los de madrugada, quando iam para o campo. Às três horas da manhã, o seringueiro ia para o mato e a gente ia junto, pegar mosquito enquanto ele trabalhava. Quando ele voltava, às dez da manhã, para fazer as bolas de borracha, nós começávamos as capturas, às vezes durante 24 horas seguidas, dentro da casa. Um trabalhava duas horas, descansava duas horas; outro trabalhava duas horas, descansava mais duas horas; durante 24 horas, para ver a hora em que o mosquito entrava nas casas para sugar as pessoas. A gente procurava larvas de mosquito nos arredores das cidades, freqüentemente com um sujeito armado de fuzil atrás.

Este país mudou muito. Hoje, a gente vai a Rondônia e o perigo, agora, é a malária. Mas há 40 anos, quando trabalhamos lá, os índios eram um perigo. Os índios Pacaas-Novas. Eles assaltavam a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. A gente foi estudar a malária ao longo da estrada - isso foi em 1943 - e íamos sempre com um policial, armado de espingarda por causa dos índios. Como tínhamos que fazer percursos longos, viajávamos nos trens de carga, com as redes armadas - e a polícia com fuzil, ali, para nos defender dos índios. Havia um mapa, na sede do Serviço Especial de Saúde Pública, em que alfinetes de cores diferentes assinalavam, conforme o ano, os lugares onde os índios tinham matado pessoas do Serviço a flechadas.

Maria: As mulheres iam lavar roupas nos igarapés, com a trouxa de roupa na cabeça e o fuzil na mão. Havia duas forquilhas, assim, aqui e ali, onde elas apoiavam as espingardas.

Toda a formação de vocês foi sempre muito voltada para a pesquisa relacionada com a solução dos problemas...

Leônidas: O Evandro Chagas nos colocou nesse espírito. No início de nossa vida profissional, nosso trabalho era voltado aos programas de saúde pública. com ênfase  no controle de endemias, como: a malária, as leishmanioses, a filariose, a bouba.

O pessoal dos serviços de saúde pública sempre nos ajudou muito. Até hoje a Sucam (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública), por exemplo, ainda ajuda. Muita gente critica a Sucam, mas não existe no Brasil nenhuma organização que possa dar uma informação a respeito da população brasileira como a Sucam. Se os censos fossem entregues à Sucam, ela os resolveria de maneira muito mais rápida, porque tem o cadastro de quase todas as casas, numeradas em toda parte.

Maria: A gente não gosta de dizer "naquele tempo era assim", como se fosse tudo melhor. Algumas coisas mudaram. Algumas para melhor, outras para pior. Mas tenho a impressão de que houve uma dissociação muito grande entre pesquisa e saúde pública. Não sei se estou correta. Samuel Pessoa revolucionou a pesquisa no Brasil nesse sentido. Houve um tempo em que a pesquisa não era ligada a problemas de saúde. O Samuel, na Universidade de São Paulo, estimulava seus assistentes a estudarem doenças importantes. Existia muita malária, muita leishmaniose, muita doença de chagas? Então ele orientava todo o pessoal para trabalhar nessas áreas. Criou-se um espírito novo de pesquisa e ensino. Concentrava-se tudo na solução dos problemas de saúde. Por isso, a escola dele foi muito produtiva em relação ao controle de doenças parasitárias. Trabalhamos na Universidade de São Paulo até 1970, por quase 19 anos.

É preciso dizer que nós não somos contra a pesquisa básica de maneira nenhuma. Não fazemos separação. Toda pesquisa é útil e pode ter uma aplicação prática.

Obviamente, a pesquisa chamada "básica" é importante. Por exemplo, em relação à malária - vários métodos de controle não são mais eficientes hoje, porque os transmissores adquiriram resistência aos inseticidas e os plasmódios estão adquirindo resistência a várias drogas. Então,há que se pensar em vacinação contra a malária. Vocês sabem que são principalmente três brasileiros - o casal Nussenzweig, nos Estados Unidos, e Luiz Hildebrando Pereira da Silva, na França - que estão dedicados a isso. Mas a vacina depende de várias técnicas de biologia molecular para o isolamento de determinados antígenos. Para vacinar contra malária, você teria que ter o parasita, mas ele não pode ser injetado. Seria preciso torná-lo capaz de vacinar mas incapaz de causar a doença. Há várias maneiras de fazer isso.

Outro aspecto é que, em laboratório, você não consegue produzir quantidade suficiente de parasitas para vacinar uma população. O que eles estão fazendo, então, é procurar nesses parasitas determinadas moléculas, determinados antígenos, que levem à imunização e possam ser obtidos, inclusive sinteticamente, em laboratório e em quantidade suficiente. Aí entra toda essa tecnologia de biologia molecular: identificar os antígenos, separá-los, ver como o parasita os produz, tentar produzir estes antígenos sinteticamente. Estou só indicando como a pesquisa "básica" pode servir para resolver problemas de saúde.

Os fenômenos biológicos estão aí. Os parasitas são feitos de células, de organelas, de moléculas. Por definição, o parasita vive parasitando um hospedeiro. Então, a relação parasita-hospedeiro é uma parte importante. Aí aparecem os fenômenos de defesa do organismo e de defesa do parasita contra as defesas do hospedeiro. E também as maneiras como o parasita prejudica o hospedeiro (não é interesse dele, mas ele pode complicar o hospedeiro), a parte de patologia.  Tem-se, naturalmente, todas essas disciplinas, entretanto  não se pode ser tudo. A nossa inteligência é limitada e, por  isso, torna-se limitante também. Somos obrigados a compartimentar as coisas e aí temos a disciplina tal, tal e tal. Mas acho que os parasitas, se pudessem, achariam graça disso. A maneira como eles funcionam, a maneira como eles são - é tudo uma coisa só. Nós, para entendermos  as coisas, precisamos dividir. Não devemos nunca esquecer que somos nós que fazemos essa divisão de forma artificial. 

Em 1953, vocês descobriram o primeiro reservatório silvestre do calazar no continente. Como se deu essa descoberta?

Leônidas: Estávamos trabalhando na Universidade de São Paulo quando um clínico de Sobral, no Ceará, constatou 46 casos de calazar nos arredores. Foi uma surpresa. Até aquele momento, conheciam-se apenas 30 casos em todo continente, da Argentina até a América Central. O Samuel Pessoa foi até Sobral, confirmou o fato e voltou entusiasmadíssimo para São Paulo. "Isso é um caso para vocês", disse. Conseguiu verba e nos mandou para Sobral, onde passamos um ano. Levamos nossa filha, que tinha cinco anos na época, e fomos morar no meio do foco de calazar. Como a doença é transmitida por um flebótomo muito menor do que o mosquito, tivemos que usar mosquiteiro de pano, e não de filó, para não deixar passar os bichinhos. A temperatura lá é muito alta e de manhã havia uma poça debaixo da rede da menina, de suor.

No dia 23 de dezembro, nos preparávamos para passar o Natal com nossa filha, que, nesta ocasião, estava em Fortaleza com a irmã da Maria, quando necropsiamos uma raposa. Era o primeiro animal que iríamos examinar. Geralmente se examinam centenas de animais para encontrar o reservatório. Como a raposa estava com um aspecto muito feio, resolvemos fazer a autópsia antes da viagem. O animal estava abarrotado de leishmânias, na pele, no baço. Passamos um telegrama para o Pessoa no mesmo dia e acabamos chegando em Fortaleza quase no meio da noite de Natal. Estávamos em Sobral havia menos de um mês e tínhamos descoberto uma novidade importante. Foi um grande dia para nós, uma sensação colossal. Ficamos torcendo para voltar logo a Sobral e pegar mais raposas. E, de fato, continuamos procurando e verificamos que 10% delas tinham essa infecção. A raposa era, portanto, uma fonte importante.

Maria: O calazar é uma doença que existe em várias partes do mundo. Na Índia, numa região da África, no sul da Europa. Na Índia, causava um milhão de mortos até que um brasileiro, o Gaspar Vianna, aqui do Instituto Oswaldo Cruz, descobriu um tratamento. A doença continuou a ser prevalente na Índia, mas passou a matar menos de 5% dos doentes. Acontece que naquela região do Oriente a doença só foi encontrada no homem, não se achou reservatório nos animais. Então, era muito interessante descobrir que havia outros animais infectados, fora o cachorro. Nós pensamos que tínhamos descoberto o primeiro reservatório silvestre, mas pouco depois ficamos sabendo que outro já havia sido achado em 1951, na Ásia Soviética - o chacal.

Para você fazer o controle de uma doença, é preciso saber onde estão as fontes de infecção. Hoje, continua havendo calazar em várias regiões importantes do Brasil. Não se consegue acabar de uma vez, sempre fica um resíduo.

E quanto à malária, como está o controle no Brasil?

Leônidas: O Brasil, em matéria de malária, tem uma tradição muito boa. Há quem se espante com a situação trágica da malária atualmente, mas a gente se esquece que isso é um fato transitório e eu penso que alterável. Desde o princípio do século - em 1898 se descobriu que era um mosquito que transmitia a doença - o Brasil faz controle de malária.

O primeiro trabalho importante de Carlos Chagas, aqui, no Instituto Oswaldo Cruz, foi ter-se desincumbido, com sucesso, do controle de malária em Santos (São Paulo). Ele verificou que, ali, os mosquitos da malária davam dentro de casa e resolveu fazer o controle com defumação nas casas. Até então ninguém no mundo controlava a malária matando os mosquitos dentro de casa. Matava-se a larva nos criadores aquáticos. Carlos Chagas, com 25 anos na ocasião, foi pioneiro neste trabalho, que, do ponto de vista internacional, é mais importante que a descoberta da doença de Chagas. É o método que se usa até hoje.

Sempre se fez algum controle de malária no Brasil. Na década de 40, havia, anualmente, de quatro a cinco milhões de casos de malária, quando a população era de 50 milhões - 10% da população tinha malária. Agora, a gente acha que é muita malária quando existem 500 mil casos, mas estamos lidando com 130 milhões de habitantes. Exceto na região amazônica, o controle foi muito eficiente no Brasil.

Antigamente, mais de 50% da malária, no Brasil, era de fora da Amazônia. Hoje, menos de 1% da malária é de fora da Amazônia. A questão está relacionada à distribuição de população vinda de zonas sem malária para a região amazônica, sem nenhum controle prévio. Era de se esperar enorme aumento da malária na região amazônica, uma vez que as estradas e os projetos de interiorização foram feitos sem se pensar em como proteger as pessoas de doenças transmissíveis.

Estão desmatiando intensamente a Amazônia, mais de 10% da mata já foi derrubada. Com isso, também, os mosquitos que tinham por hábito alimentar-se nos animais da mata, por falta de fontes de alimento, começaram a alimentar-se no homem. Então, várias espécies de mosquitos, que não encontramos na época em que identificamos o Anopheles darlingi como principal vetor na região, passaram a ser transmissoras de malária, embora muito menos importantes.

Daria para vocês traçarem um quadro da saúde pública no Brasil?

Leônidas: É difícil. Durante grande parte da nossa vida, quando viajávamos pelo país, estivemos bem ligados à saúde pública. Mas agora estamos já há oito anos aqui, no Instituto Oswaldo Cruz, sem contar o tempo que passamos em Portugal (1973 a 1975) e na Venezuela (1976 a 1979). Há quase 15 anos, portanto, andamos meio afastados desse problema. Então, não estamos bem em dia com isso. Eu não teria coragem de fazer um juízo a esse respeito.

Maria: No tempo das campanhas de erradicação, das campanhas de controle, nós trabalhamos muito e fomos testemunhas de que algumas delas realmente funcionaram. Acabaram com o Aedes aegypti no Brasil. Isso foi uma coisa fabulosa: acabou a febre amarela urbana no Brasil. Agora nós estamos ameaçados de novo. As campanhas no país foram muito eficientes, contra a malária, a febre amarela, a peste, a bouba. A bouba era uma doença terrível, que deformava e inutilizava as pessoas. Houve uma campanha muito eficiente contra o tracoma no Nordeste. Em 1964, a situação se modificou inteiramente e agora já não posso avaliar.

Leônidas: No tempo das campanhas havia uma mística. A mística da campanha da malária. A mística de todo mundo que trabalhava, desde o diretor até o servente. Todos tinham um certo orgulho de estar trabalhando para acabar com a malária. O camarada no Acre sabia que estava fazendo um serviço importante. Mas ele era subordinado à direção central e tinha fiscalização permanente. Cada serviço destes tinha uma parte de pesquisa e o treinamento do pessoal era permanente. Nós demos muitos cursos para guardas sanitários, para enfermeiros, para médicos, cursos organizados pelo Ministério. Mesmo nas universidades, ninguém sabia mais sobre a doença em questão do que os especialistas dos serviços.

No caso do calazar, as descobertas mais importantes aconteceram quando vocês retomaram o assunto, quinze anos mais tarde. Vocês podem citar outros exemplos de problemas que apresentaram respostas muito tempo depois do começo de seu estudo?

Leônidas: Os exemplos são vários. Um deles foi o estudo da malária simiana no Brasil. A malária é uma doença quase só do homem, mas se descobriu que algumas espécies de macacos podem contraí-la. A Organização Mundial de Saúde queria estudar o assunto. Eu estava num congresso em Londres e me perguntaram se aceitava a incumbência. Eu não sabia se existia bastante malária de macaco no Brasil - só havia aparecido até então dois casos na América do Sul - e respondi que não poderia assumir o compromisso.

Mas, pouco tempo depois, apareceu na faculdade um caminhão do Horto Florestal da Cantareira (São Paulo) com um macaco. Perguntaram se estávamos interessados no bicho e aceitamos a doação. Fomos examinar o macaco. Tirei o sangue, fiz a lâmina, quando focalizei o primeiro campo microscópico, aconteceu uma coisa espetacular: encontrei um plasmódio! Fiz mais seis ou sete lâminas, só encontrei aquele. Mas já pude dar uma resposta: "agora eu aceito". Passei nove anos (de 1964 a 1973) trabalhando nisso, com uma equipe. Fora a zona seca do Nordeste, encontramos malária de macaco em todo o resto do Brasil. Examinando primatas de florestas espalhadas por todo o território do país, constatamos que 20% deles tinham plasmódios.

Descobrimos o primeiro caso de infecção natural humana por plasmódio simiano nas Américas e o segundo caso no mundo. Eu ia todas as semanas até o Horto Florestal da Cantareira, uma reserva que tem milhares e milhares de macacos, além de muitos outros animais, a 25 quilômetros da Universidade de São Paulo. A direção do Horto nos ofereceu um guarda para ajudar no serviço. Era um homem semi-analfabeto, filho de guarda florestal, nascido e criado no Horto, nunca tinha saído de lá. Propus a ele que tomasse preventivo de malária. Ele me perguntou: O senhor vai tomar? Eu disse que não. Então não tomo também, assim, se um de nós pegar malária, já ficamos sabendo que pega em homem. E ele contraiu malária de macaco. Eu o levei para o hospital, mas ele me disse: o senhor não me trata agora não, eu estou bem, e se o senhor me tratar agora, vai ficar sem saber como é essa malária de macaco no homem. O senhor põe alguém me acompanhando, se eu piorar, se eu estiver em perigo de vida, então o senhor me trata. Pois bem. Ele teve três acessos e se curou. Por causa desse homem, fiquei sabendo, primeiro, que malária de macaco pegava em gente e, depois, que curava espontaneamente. Este trabalho foi publicado numa revista em inglês. Quando ele soube disso, pediu ao professor de inglês da filha para traduzir e andava com o recorte na carteira.

Mas o que eu ia contar é que, desde os primeiros meses de pesquisa sobre malária de macacos, vimos que um determinado mosquito, o Anopheles cruzi, devia ser o transmissor. Foi preciso, porém, uma paciência danada para chegarmos à prova de que era esse mosquito. Pegávamos os mosquitos da copa da árvore (para infectar o macaco tinha que ser um mosquito que pica lá em cima) e os trazíamos para baixo, mas nunca conseguíamos que eles se alimentassem em macacos ao nível do solo. Até que pegamos uma armadilha para mosquito e botamos o macaco ali, noites seguidas, na copa da floresta. Algumas semanas depois, o macaco, que era limpo, teve a malária. Como os mosquitos que tinham picado o macaco eram todos de uma determinada espécie, confirmamos que ela era a transmissora. Levamos três anos para chegar a esse resultado.

Maria: Outro exemplo é essa história de sexo dos tripanosomatídeos. O consenso era de que esses grupos de micróbios só se reproduziam de uma maneira simples, divisão assexuada. Mas nós começamos a encontrar em culturas de um desses parasitas, o T. conorhini, aquilo que depois viemos a chamar CLBs (Cyst-like-bodies) e que interpretamos como derivados, possivelmente, de um tipo de reprodução que envolvia fusão, isto é, poderia permitir recombinação genética. Ficamos um tempão estudando aqueles CLBs, a fresco e corados por várias técnicas, sempre duvidando de nossa própria interpretação. Depois de muito pensar - é sempre um espanto o que vai contra o que está na Bíblia - publicamos nossas observações, feitas primeiro em microscopia óptica (1966) e depois em microscopia eletrônica (1972). Nossos trabalhos não tiveram maior repercussão. Mas, anos depois, de repente, começaram a ser encontradas várias evidências de que provavelmente, quase seguramente, há um tipo de reprodução que permite trocas genéticas, parecida com a reprodução sexuada, neste grupo de parasitas. Então nosso trabalho foi reapreciado. A interpretação que demos antes foi a mesma que outras pessoas deram. São coisas que dão satisfação.

Que projetos vocês estão encaminhando neste momento?

Maria: Eu tenho um projeto principal, que é o estudo de infecção no gambá, animal considerado o mais importante reservatório de Trypanosoma cruzi. A partir de algumas hipóteses, eu queria entender melhor a circulação do cruzi na natureza. Uma delas era a de que as cepas que a gente estuda em laboratório são populações selecionadas pelos próprios métodos que utilizamos para sua manutenção. Não são exatamente o que você encontra circulando na natureza. Daquilo que está circulando, você tirou um bocadinho que passou para um camundongo, então você fez uma seleção. Com auxílio do pessoal da biologia molecular, mostramos que realmente isso acontece e foi possível provar o papel de nossos métodos de laboratório como selecionadores de subpopulações do parasita.

A outra hipótese era de que os próprios hospedeiros vertebrados, com mais longa convivência com o cruzi, teriam desenvolvido capacidade de controlar as subpopulações mais invasivas do parasita. Nos estudos com o gambá, vimos que ele realmente seleciona populações. Algumas cepas muito patogênicas, que matam o camundongo, não matam o gambá (ao contrário, o gambá até as elimina, enquanto outras cepas ele mantém). Com o auxílio da biologia molecular, nós estamos tentando entender o mecanismo pelo qual ele faz essa seleção.

Uma completa surpresa para nós foi que, nas glândulas de cheiro do gambá, o T. cruzi faz um ciclo igual ao que ele faz no barbeiro. É uma coisa realmente inesperada. No gambá, o cruzi faz um ciclo igual ao que ele faz no homem, no camundongo, em qualquer animal vertebrado; e nas glândulas de cheiro, ele faz um ciclo igual ao que ele faz no inseto. É um duplo ciclo. O nosso projeto, que inclui vários mestrandos e doutorandos, tem como título geral O gambá como selecionador de cepa de cruzi e como duplo hospedeiro.

Também com surpresa, verificamos que não é só o cruzi. Existe outro tripanosoma, o T. freitasique também faz este ciclo, um tripanosoma próprio do gambá. Aí temos uma série de perguntas: qual a importância deste ciclo do ponto de vista da transmissão do cruzi, e do ponto de vista da evolução desses parasitas? Ainda não tínhamos encontrado este ciclo na natureza, mas já tivemos notícia de que em Santa Catarina e Manaus acharam infecção natural na glândula desse bicho. Como todos os mamíferos tem glândulas de cheiro, inclusive nós, este achado pode ter um significado muito grande. Pode ser - é uma hipótese - que muitos tripanosomas se multipliquem nestas glândulas.

Leônidas: O projeto em que estou trabalhando é relacionado principalmente à malária. A principal finalidade é identificar quais são os anofelinos que estão transmitindo malária em Rondônia, território onde estão ocorrendo 40% dos 500 mil casos de malária no Brasil. É preciso identificar qual é o transmissor da doença e, descobrindo os transmissores, temos que estudar os seus hábitos para descobrir algum ponto vulnerável que permita combatê-los mais facilmente. É quase uma retomada de projetos de muitos anos atrás, mas hoje as condições são totalmente diferentes.

Vários outros trabalhos estão sendo desenvolvidos no Departamento de Entomologia. Mércia Arruda está investigando a possibilidade de existir malária de macacos entre os índios. Há um grupo que está estudando os maruins, porque se descobriu recentemente que estes insetos são transmissores de uma virose muito importante na região amazônica, chamada febre de Oropouche. Há, ainda, um grupo estudando os transmissores da oncocercose e outro os ácaros das poeiras domésticas. Esses carrapatinhos são responsáveis por muitas formas de alergia, inclusive asma.

Um levantamento sobre as publicações em parasitologia nos últimos anos mostrou que há áreas que vêm se desenvolvendo muito - leishmaniose, esquistosomose - e outras em que há poucos grupos trabalhando e quase nada publicado. A que se deve esta diferença de interesse?

Leônidas: Eu tenho a impressão  de que estas pesquisas têm moda. No princípio do século, a moda aqui no Brasil era a ancilostomíase. Pensava-se que era uma das doenças principais do Brasil. A Fundação Rockefeller estabeleceu, naquele tempo, prioridade para pesquisas sobre ancilostomíase e treinou pessoal inclusive no Brasil. Depois, o interesse passou a ser esquistosomose, isso já nas décadas de 40 e 50. O número de trabalhos sobre esquistosomose era enorme. Depois, veio a doença de Chagas. Está até agora, mas a leishmaniose já está empurrando a doença de Chagas.

Maria: Às vezes é meio fortuito isso, mas há também as prioridades estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde e pelo CNPq. A história da ancilostomose começou no Sul dos Estados Unidos, na época do escravagismo, quando o negro era considerado inferior, vadio, mentiroso. Mas, no fim da Guerra da Secessão, o Sul ficou devastado e o branco também ficou pobre, sem perspectiva. Como, de acordo com a mentalidade americana, só é pobre quem não trabalha, partiram para explicar a decadência do branco. Verificaram uma alta taxa de ancilostomíase e passaram a responsabilizar a doença pela existência do poor white. Até o Monteiro Lobato embarcou, criou o Jeca Tatu.

Qual é a sua opinião sobre a formação acadêmica atual?

Maria: Não quero dar a entender que naquele tempo era tudo melhor. Não. Mas eu acho que hoje a pressão, a competição, é tão grande que as pessoas são levadas a correr, a fazer tudo rápido. Saltam etapas. Isso nem sempre é bom. Naquele tempo, a competição era muito menor. Não tínhamos dificuldade para conseguir trabalho. Agora, o moço acaba de se formar e não tem perspectiva de trabalhar, não sabe o que vai fazer. Tem que competir com centenas para conseguir trabalho.

A formação da maioria dos nossos jovens pesquisadores é uma coisa que me preocupa. Eles não dispõem de tempo para curtir a fase gostosa de formular os porquês e as hipóteses, não lhes é facultado decidir por eles próprios a metodologia a utilizar na busca das soluções. Não têm uma visão histórica do desenvolvimento da pesquisa científica, não têm tempo de digerir sequer uma fração do sempre crescente volume de informações que nos vem das mais diversas áreas. Têm que fazer mestrado, rapidamente, antes que expire a vigência da bolsa. Têm que acumular créditos. A tese tem que ser sobre assunto atual. Muito bem: aprendem as técnicas, utilizam-nas para resolver o problema específico que o orientador lhes propôs. Escrevem a tese. É importante que a bibliografia seja recente, nada aquém de 1980 e de preferência as revisões - não há tempo para consulta aos trabalhos originais... A motivação para prosseguir? Uma nova bolsa, desta vez para o doutorado...

Os cursos decaíram muito de qualidade. Talvez por causa dessa explosão da população. Tem muito mais gente para fazer os cursos universitários. Mesmo no tempo da Faculdade de Medicina de São Paulo, as turmas eram pequenas, cada professor tinha no máximo 20 alunos. Isso num curso de graduação. Hoje, você vai ver, são centenas. Uma aula atrás da outra. Você tem uma quantidade enorme de cursos superiores por aí. Eu vejo as pessoas que vêm procurar a gente para fazer biologia parasitária, formados em biologia, com uma formação muito, mas muito deficiente mesmo. Gente boa, inteligente, diplomada, que quer estudar, mas que vem com um conhecimento mínimo. As razões são complexas, você não pode encontrar uma só que explique tudo.

Vocês tiveram que passar um período fora do Brasil - em Portugal e depois na Venezuela - por força das circunstâncias...

Maria: E estas circunstâncias nos obrigaram a interromper os projetos em que trabalhávamos. Foram as mesmas circunstâncias que culminaram com o exílio de tantos pesquisadores brasileiros, colegas e amigos nossos, como o Luís Hildebrando Pereira da Silva, os Nussenzweig, o Luís Rey, o Erney Camargo, o Michel Rabinovich e tantos mais, da USP e de outras universidades e institutos de pesquisa. Foram as mesmas que nos levaram, ao Leônidas e a mim, a deixar o país por algum tempo. Não podemos deixar que estas circunstâncias se repitam.

Título

Entrevista concedida a Nilcéa Freire (Departamento de Parasitologia, UERJ) e Sheila Kaplan (Ciência Hoje}.