Entrevista concedida a Erney P. Camargo (Departamento de Parasitologia, USP), Hugo Armelin (Departamento de Bioquímica, USP) e Vera Rita da Costa (Ciência Hoje).
Midia
Part of Entrevista José Moura Gonçalves
Publicada em novembro de 1989.
Sem exagero, o professor José Moura Gonçalves pode ser considerado um dos precursores da moderna bioquímica brasileira. Na década de 1930, ainda estudante de medicina em Belo Horizonte, começou a trabalhar no laboratório de química fisiológica do professor Baeta Vianna, que comandava um afinadíssimo grupo de jovens e talentosos pesquisadores. De Minas, Moura Gonçalves seguiu para o Instituto de Biofísica da antiga Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, a convite do professor Carlos Chagas Filho, e lá começou a trabalhar com físico-química de proteínas e enzimas. Viajou em seguida para a Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, onde realizou talvez o trabalho mais importante de sua carreira: o isolamento de uma nova proteína tóxica do veneno de cascavéis, a crotamina. De volta ao Brasil, na década de 1950, integrou-se ao projeto de criação da respeitada Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, no interior paulista, a convite de seu diretor, professor Zeferino Vaz, que o via como o pesquisador ideal para conduzir um centro de excelência em pesquisas bioquímicas. Por seu trabalho Estudos sobre a crotamina, teve seu nome indicado por unanimidade para receber o prêmio Lafi de ciências médicas em 1965. Mas, além de grande pesquisador, sempre foi um homem combativo e preocupado com a instalação da modernidade no ambiente universitário. Lançando mão de estratégias que lhe permitiam os estatutos da Universidade de São Paulo (USP), substituiu algumas cátedras por disciplinas autônomas, reunindo-as em departamento. Após o golpe militar de 1964, fez o que estava a seu alcance para defender a universidade, lutando contra um modelo que privilegiava o autoritarismo em detrimento da competência.
O senhor começou sua carreira de pesquisador num dos grupos pioneiros da bioquímica brasileira, o do professor Baeta Vianna. Fale-nos sobre a sua experiência com ele.
Iniciei minha formação científica quando estava no segundo ano da faculdade de medicina, em Belo Horizonte. Estagiava no laboratório de química fisiológica da faculdade, sob orientação do Baeta Vianna. Nessa ocasião o Aroeira Neves era o chefe da seção de microscopia e sorologia do laboratório. Foi ao lado desses expoentes da vida acadêmica que se enraizou em mim a ideia de me dedicar ao ensino e à investigação científica.
O Baeta Vianna, interessado em fazer uma bioquímica voltada para a clínica, aplicava as técnicas e o conhecimento da área na resolução de problemas biomédicos. Numa determinada ocasião apareceu no laboratório um descendente de espanhol inteiramente amarelo. Ele estava cansado de procurar médicos e obter diagnósticos alarmantes e que não explicavam aquela cor. No primeiro encontro, o Baeta matou a charada: ele estava com carotenemia, pois era um emérito comedor de mamão.
Como pesquisador, o Baeta tinha uma visão muito clara da importância da bioquímica quantitativa. Tinha um certo fascínio pela microbureta, que ele próprio construía para levar adiante seus microensaios. Se alguém dosava alguma coisa com a precisão de l ml, ele queria dosar com a precisão de 1/10 ml. Além disso o Baeta era um ótimo professor. Ele conseguia despertar o interesse dos alunos pela bioquímica, propondo problemas fisiológicos e discutindo a parte analítica da disciplina. Suas aulas eram atualizadíssimas. Em Belo Horizonte, ele buscava melhorar o estado da análise clínica na própria comunidade. A preocupação com o aspecto social da pesquisa científica era também um traço marcante de sua personalidade. Criou a Fundação Benjamin Guimarães, voltada para o atendimento de crianças tuberculosas, e o serviço de assistência universitária. Não há como descrever o Baeta, ele era uma pessoa fascinante.
O que é que se pesquisava na área biomédica nessa época?
O Carlos Chagas estudava a tripanosomíase numa região de Minas Gerais onde era muito alta a incidência de bócio endêmico, patologia com que o Baeta Vianna estava trabalhando naquela época. Acreditava-se que o bócio tinha origem parasitária, porque haviam sido encontrados tripanossomas na tireóide de chagásicos. Mas o Baeta resolveu testar a hipótese de que o bócio resultava também da deficiência de iodo nos alimentos e na água da região e fez uma pesquisa em duas cidades mineiras — Capela Nova e Ouro Branco — onde a incidência da doença era alta. Como numa delas não havia barbeiro, agente transmissor da doença de Chagas, o Baeta conseguiu desfazer muitos equívocos que envolviam o problema. Havia também o grupo do Gilberto Vilela, que trabalhava em Manguinhos com febre amarela, beribéri, e o do Franklin de Moura Campos, em São Paulo.
Depois de formado o senhor permaneceu em Belo Horizonte?
Fiquei na faculdade de medicina até 1940, onde trabalhava em tempo parcial. Na outra parte do tempo, pesquisava no laboratório particular do Aroeira Neves, Abdon Hermeto, Lívio Renault. Foi lá que desenvolvi, em 1939, minha tese de livre-docência na cadeira de química fisiológica. O tema, agentes lipidotrópicos e lipidopexia hepática - sugerido pelo Baeta Vianna - versava sobre a colina, uma substância de importante função metabólica que evita o acúmulo de gordura nas células hepáticas. Isso foi feito com o auxílio de equipamentos disponíveis tanto na faculdade quanto no laboratório.
Em 1940, fui para o Instituto de Biofísica, no Rio, a convite do Carlos Chagas Filho. Não me adaptei bem à cidade e voltei para Belo Horizonte seis meses depois. Pouco depois surgiu uma vaga para professor assistente da disciplina de física biológica no instituto. Como o Chagas tornou a me chamar, oferecendo-me uma posição melhor, resolvi voltar para o Rio de Janeiro. Quando comecei a trabalhar, pude sentir o impacto da bioquímica, o quanto essa área representava em termos de novas fronteiras do conhecimento. A atmosfera de trabalho criada por Chagas e o intercâmbio com vários cientistas cristalizaram a ideia de aplicar-me à química de proteínas e enzimas. Tive uma grande influência do casal Wurmser (René Wurmser e Sabina Filitti-Wurmser), que o Chagas havia convidado para trabalhar em Manguinhos. Eles deixaram a França durante a Segunda Guerra Mundial e durante cinco anos trabalharam conosco. No Instituto de Biofísica comecei a trabalhar com físico-química de proteínas e a me interessar pelo potencial de oxirredução em proteínas desnaturadas. Foi lá que começou essa história de proteína. Como eu dava aulas no curso do Chagas sobre o assunto, os alunos acabaram me apelidando de "Proteína". O próprio Wurfnser, quando consegui uma bolsa para o exterior, aconselhou-me a permanecer nessa linha de pesquisa.
Como foi sua experiência no exterior?
Em 1945, como bolsista da Fundação Rockefeller, fui estudar química de proteínas no departamento de química coloidal da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, onde permaneci por um ano. Em Wisconsin havia um ambiente de trabalho muito bom. Dediquei-me à físico-química de proteínas, empregando técnicas de eletroforese, ultracentrifugação e difusão. Estudei eletroforese com o Gorson Kegeles, difusão com o Alfred Polson, ultracentrifugação com Kay Pedersen e fracionamento do plasma sanguíneo com Harold Deutsch e Robert Alberty. Como a bioquímica da faculdade de medicina de Wisconsin era fraca, passei a freqüentar os seminários da faculdade de agricultura. Nessa época, e na mesma faculdade, um professor de química orgânica havia descoberto o dicumarol, a antivitamina K, que provocou um enorme impacto científico no campo da bioquímica.
Em Madison, Wisconsin, publiquei, como pesquisador-assistente, meu primeiro trabalho sobre constituição química de venenos de serpentes, com a colaboração de Alfred Polson, que na época era o "rei da difusão". Havia levado comigo uma boa quantidade de veneno de Bothrops jararaca, e o Polson uma amostra de veneno de Crotalus terrificus terrificus, da Argentina. A partir da sugestão dele, fiz eletroforese dos venenos de Bothrops e Crotalus e pude ver, pela primeira vez, a proteína básica que mais tarde, no Rio de Janeiro, chamaria de crotamina. Quando levei o material para o exterior, já tinha a intenção de analisar os componentes. Sabia que o veneno era rico em proteínas, pois em 1939, no Instituto Butantã, os pesquisadores Karl Slotta e Fraenkel-Conrat haviam descoberto a crotoxina, primeira proteína tóxica isolada do veneno de cascavel. Nessa ocasião, quando comecei a trabalhar no assunto, só alemães faziam química no Brasil.
Em fins de 1946 transferi-me para o Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, para trabalhar com o professor Jesse Greenstein em enzimas proteolíticas. Produzi muitos trabalhos, entre eles a descrição da enzima que hidrolisava alfa-alfa-diglicilaminopropiônico com liberação de amônia e ácido pirúvico, na proporção de um para um. Estive no exterior em vários outros momentos da minha carreira, todos eles muito proveitosos. Em agosto de 1950, por exemplo, fui a Copenhagen participar de um congresso internacional de fisiologia e aproveitei para fazer um estágio de 40 dias no laboratório Carlsberg, dirigido por Linderstrom Lang. O interesse de Lang permitiu-me desenvolver técnicas de pressão osmótica; dilatometria e microtitulação de enzimas proteolíticas em cortes de tecido. De Copenhagen fui para Uppsala, na Suécia, para estagiar durante 20 dias com o Arne Tisélius. Logo em seguida fui para a Inglaterra, onde realizei, com o auxílio do Conselho Britânico, o que chamávamos de tournée bioquímica: Shefield, Oxford, Cambridge e Londres.
O senhor foi um dos primeiros a montar o aparelho de Tisélius e a fazer cromatografia de papel. O que isso representou para o desenvolvimento da bioquímica?
Acho que fui o primeiro, mas isso pouco importa. Quando voltei ao Brasil, em 1948, comecei a formar a seção de físico-química de proteínas do Instituto de Biofísica, a pedido do Carlos Chagas. Ele tinha grande interesse em implementar eletroforese no instituto, daí eu ter começado a montar o laboratório e a trabalhar na análise eletroforética livre dos venenos de cobra. Mas não comprei o aparelho de Tisélius prontinho, O Kegeles, de Wisconsin, indicou-me onde comprar as lentes, que eram muito boas. As janelas do banho eram de vidro plano-paralelo, a meio comprimento de onda. Outras partes foram construídas no Rio de Janeiro. E assim fui, aos poucos, montando o equipamento. Os meus diagramas, modéstia a parte, ficavam muito bem feitos.
No começo não tínhamos nada. As primeiras cromatografias de papel foram feitas com latas de querosene. Não existiam as cubas de vidro bonitinhas, como há hoje. Nesse período trabalhei com Aida Hasson-Voloch, que era minha assistente, e Laura Gouveia Vieira, com quem sou casado. O primeiro coletor de frações, que consegui com o auxílio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, na época ainda Conselho Nacional de Pesquisas), nos trouxe muita alegria. Gostaria de homenagear os técnicos que me ajudaram, na pessoa do eletricista Oswaldo, da faculdade de medicina. Ele não só impermeabilizava o teto para não chover no laboratório, como também nos ajudava a montar os equipamentos mais sofisticados.
Por que o senhor decidiu ir para Ribeirão Preto?
Estava trabalhando no Instituto de Biofísica quando recebi um telefonema do Zeferino Vaz. Isso foi em 1952. Ele, que estava no Ministério da Educação e Cultura, me pediu que o procurasse imediatamente, pois havia sido indicado professor de bioquímica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Levei um susto enorme. Não sabia quem era Zeferino Vaz nem que havia faculdade de medicina em Ribeirão Preto. Na verdade, nem sabia onde ficava a cidade. Passado o susto, e como eu já estivesse cansado do Rio de Janeiro, resolvi arriscar. Fui conhecer a cidade e acabei acreditando na viabilidade de uma faculdade de medicina no interior de São Paulo. Fiquei muito entusiasmado com a ideia, embora, não posso negar, tenha sofrido com essa mudança, principalmente porque ela significou um interregno na minha carreira científica. Lá foi preciso começar do nada.
Como era o laboratório em Ribeirão Preto? Quem trabalhava lá?
O primeiro laboratório que montei ficava no porão de uma casa na rua Visconde de Inhaúma. Trabalhava com o Carlos Ribeiro Diniz, o Francisco Jerônimo de Sales Lara e com o engenheiro químico Rubens Molinari, que havia sido colocado na faculdade pelo Zeferino Vaz. Logo que eu e o Diniz começamos a pesquisar e a fazer eletroforese em papel, isolamos duas toxinas do veneno de escorpião, que nos valeram uma publicação no Biochimica Biophysica Acta. O Diniz continuou trabalhando no assunto. Durante umas férias, o Marcos dos Mares-Guia fez um estágio em Ribeirão Preto e eu o coloquei estudando enzimas proteolíticas de veneno de cobra. Publicamos um artigo sobre o assunto e ele me disse que, depois daquele trabalho, continuaria atuando na mesma linha. Acabou indo para América do Norte como bolsista da Fundação Rockefeller, fez PhD e se dedicou ao estudo da tripsina. O Mares-Guia foi o autor de uma das maiores homenagens que já recebi: escreveu-me dizendo que esperava bons resultados de sua pesquisa para dedicá-los aos meus 65 anos. Os resultados de um de seus trabalhos foram publicados no Journal of Biological Chemistry e a dedicatória aparecia no rodapé. Fiquei emocionado.
Foi muito difícil conseguir um espaço para instalar o laboratório na própria faculdade de medicina. Mas nessa época foram criadas várias escolas práticas de agricultura no interior do Estado de São Paulo e, para nossa sorte, muitas não vingaram. O Zeferino Vaz conseguiu então que o prédio da escola de Ribeirão Preto fosse cedido para que os laboratórios das disciplinas básicas fossem montados. Em Ribeirão aconteceu uma dessas coincidências importantes: recebi a visita de um sueco e comentei com ele que achava que a crotamina dialisada perdia muito de sua atividade. Ele me falou então de uma substância que acabara de ser estudada no laboratório do Tisélius, o sephadex. Ao voltar para a Suécia, enviou-me um pouco dela. Foi graças ao uso do sephadex que pude ver a crotamina separada da crotoxina por cromatografia em coluna. Os estudos sobre a ação da crotamina também foram feitos por mim. Costumava dizer, brincando, que comigo os camundongos "plantavam bananeira", por causa da paralisia que a crotamina provocava nas patas posteriores.
Em Ribeirão Preto o senhor diversificou seus temas. Que pesquisa realizou lá?
Como era muito difícil conseguir veneno, logo que cheguei a Ribeirão montei um serpentário. Um amigo, o Celso Junqueira, de Morro Agudo, ia pessoalmente me levar as cobras. E eu acabei me apaixonando por elas, particularmente pela cascavel. Tínhamos umas gaiolas de vidro e, toda vez que ia alimentá-las com camundongos, fazia "onda" para agradá-las. Quando chegavam, as cascavéis eram muito agressivas. Mas com o carinho que recebiam, duas semanas depois já faziam "festa" para mim.
Também trabalhei com Trypanosoma cruzi, pois na região de Ribeirão Preto havia muitos casos de doença de Chagas. Um rapaz que trabalhava na cervejaria da cidade fazendo cultura de leveduras acabou indo trabalhar comigo. Iniciamos a cultura do tripanosoma, que era feita de um modo muito simples, e conseguimos obter uma boa quantidade do parasita. Extraímos o polissacarídeo descrito por Júlio Muniz, do Instituto Oswaldo Cruz, e o purificamos por eletroforese livre. Comecei fazendo a cultura do protozoário e depois a determinação do grau de redução do polissacarídeo e composição dos açúcares. O trabalho foi desenvolvido com o Tsutomi Yamaha, do Instituto de Higiene de Tóquio, que eu havia levado para Ribeirão Preto como bolsista do CNPq.
O senhor fundou a química de proteínas, mas não era um enzimólogo. Como aconteceu a integração com a enzimologia?
A primeira bolsa que me foi oferecida era para trabalhar nessa área com o Bernardo Houssay, na Argentina. Mas justamente na época um "acidente" chamado Perón se abateu sobre ele, que acabou expulso da universidade. Fiquei então aguardando uma nova chance. Só mais tarde, com a bolsa da Rockefeller, fui para a América do Norte fazer química de proteínas e enzimas proteolíticas.
O senhor foi para Ribeirão Preto a convite do Zeferino Vaz, mas depois precisou fazer concurso... Que história é essa?
Com o Zeferino Vaz as coisas eram assim. Enquanto ele foi o diretor da faculdade de medicina, durante dez anos, não tive problemas. Mas quando ele deixou o cargo, em 1961, tive que fazer concurso para a cátedra de bioquímica. Fui o primeiro diretor da faculdade após a constituição da congregação, eleito e reeleito por sete anos. Seria tolice dizer que houve apenas acertos em período tão longo. Sou um homem, não sou um anjo.
Fale um pouco dessa fase. Sabe-se que o senhor impediu a instalação de um Inquérito Policial Militar [IPM] na faculdade.
Quem não se lembra da crise universitária nos primeiros meses de 1964? Quanta incompreensão das autoridades! Quanta energia despendida desnecessariamente! Não quero mais me lembrar desse período; quero apenas repudiá-lo. Ainda estamos doentes e distantes da convalescença plena. Houve muita arbitrariedade, tanto na primeira fase do golpe, em 1964, quanto na segunda, em 1968, em que vigorou o AI-5.
Paralelamente a tudo isso, estava sendo gestada a reforma universitária. Como foi sua participação nesse processo?
Não me parece possível diferenciar os fatos. Na década de 1960, tudo acontecia ao mesmo tempo, de maneira muito interligada. Na universidade o que se procurava era a modernização da instituição e, quanto a isso, a grande batalha foi contra o sistema de cátedra então vigente. Nessa época fiz parte do Conselho Universitário da USP e foi possível melhorar muita coisa. Simpatizei desde o início com a criação da disciplina autônoma e lutei muito para implantá-la. Certa vez, para conseguir extinguir uma cátedra, pedi ao Ruy Miguel Covian, durante uma reunião da congregação, que assumisse a presidência e fui para o plenário votar. Como houve empate, resolvi reassumir a presidência e fui fazer valer o meu direito ao voto Minerva. Decidi pela extinção da cátedra e pela criação de um departamento.
Em meio a toda essa agitação o senhor continuava pesquisando?
Mesmo nessa atmosfera de desassossego, comecei a trabalhar em fosforiliase A e B de músculos, com alguns assistentes. Com uma bolsa da Fulbright da categoria Exchange Professor-ship, passei o ano de 1965 na divisão de radiobiologia de Oak Ridge, nos Estados Unidos. Lá purifiquei a ADN-polimerase e fiz um trabalho , publicado em 1967, com a colaboração do paquistanês A. Muhamed e de J. Trosko, sobre a atividade das enzimas desoxirribonuclease e desoxirribonucléico-polimerase durante o desenvolvimento da drosófila. O Trosko cuidava das diferentes fases do desenvolvimento da drosófila, o Muhamed preparava a desoxirribonuclease e eu a ADN-polimerase. Recebi uma proposta para trabalhar na faculdade de medicina de Kentucky, mas não aceitei. Acabei estudando a inibição da desoxirribopolimerase com os nucleotídeos do ácido ribonucléico. Consegui bons resultados nesse período.
Como foi sua passagem pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico?
De 1967 a 1974 fui membro da comissão de biologia, juntamente com o Aristides Pacheco Leão, o Amadeu Cury e o Lobato Paraense. Éramos responsáveis por analisar os processos e conceder bolsas. Hoje o comitê assessor é constituído por um grande número de pessoas, mas o número de bolsas também é muito maior. São tantas as bolsas para o exterior, que fico imaginando o que farão essas pessoas quando voltarem ao país, diante dos problemas de salário e das dificuldades para aquisição de equipamentos com que convivemos.
Com base na sua experiência no exterior e no CNPq, que conselhos o senhor daria hoje aos bolsistas?
O melhor conselho que posso dar aos bolsistas é que eles, antes de mais nada, escolham bem o lugar para onde ir. Aconselho também os estudantes a dominarem a língua do país para onde forem.
Após aposentar-se em Ribeirão Preto, o senhor foi trabalhar no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). Como foi sua experiência em São Paulo?
Aposentei-me em 1971 e, para aumentar minha renda, aceitei a proposta para trabalhar com radiobiologia no Instituto de Energia Atômica, hoje Ipen. O Romulo Ribeiro Pierone, que dirigia o instituto naquele período, estava interessado em criar um curso de pós-graduação e me chamou para chefiar a seção de bioquímica. Achei a proposta interessante. O ambiente, no entanto, não era bom. As pessoas estavam muito preocupadas com o salário e era uma dificuldade fazê-las trabalhar. Mesmo com todas as dificuldades, fiz coisas de que gostei no Ipen. Uma delas foi estudar a modificação dos efeitos da radiação gama em camundongos por ação do BCG, com a colaboração da argentina Nelida dei Mastro. Verificamos um efeito protetor do BCG que me encantou. Cerca de 70 % dos camundongos não morriam se tivessem recebido uma determinada dose de BCG no abdome. Esse tipo de proteção, no entanto, é muito relativa, pois só funciona se o animal receber a dose de BCG antes de ser irradiado. Quatro teses de doutoramento foram defendidas no Instituto de Química da USP. Um dos trabalhos descrevia os determinantes antigênicos comuns à crotoxina e à fosfolipase A, que determinam a proteção de camundongos contra doses tóxicas de crotoxina e veneno global, quando se injeta fosfolipase A nos animais.
O ambiente de trabalho piorou muito com a mudança de direção no instituto. O novo diretor não compreendia o que era radiobiologia, confundindo a disciplina com medicina nuclear. Por mais que eu dissesse que proteção radiológica é subproduto da radiobiologia, ele só me falava que a seção de radiobiologia estava "inchada" e que o pessoal devia ser reduzido, criando um pânico de desemprego. Ele, como muitos outros, insistia na importância do dosímetro. Quando tiraram dois profissionais de meu laboratório para purificar urânio, achei um exagero. Além disso, era um tal de não ter verba insuportável!
O que o senhor tem feito hoje?
Aposentei-me aos 70 anos e faço questão de dizer que sou um homem católico. A agnostia dos outros nunca me influenciou e considero um infeliz aquele que não crê na existência de Deus. Dedico-me atualmente à minha família, usufruindo da convivência com minha esposa e meus filhos.