Entrevista concedida a Ennio Candoti (Instituto de Física, UFRJ).
Midia
Part of Entrevista José Leite Lopes
Publicada em setembro/outubro de 1985.
Nascido em Recife em 1918, o professor José Leite Lopes deixou-se fascinar, ainda adolescente, pela estrutura da matéria. Por influência de Irmão Pacomio, seu professor no curso de química no Colégio Marista, começou a fazer experiências em casa. Mais tarde, aluno de Luiz Freire, na Escola de Química do Recife, descobriu a física e não a largou mais. Em 1945, trabalhando com Pauli em Princeton, foi espectador privilegiado do desenvolvimento da energia nuclear e, em 1946, do debate caloroso que gerou a explosão da bomba atômica sobre o Japão. Professor de Física Teórica da Faculdade Nacional de Filosofia desde 1946, só deixou o cargo quando de sua cassação pelo regime militar, em 1969. Diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) entre 1960 e 64, demitiu-se do cargo também por conta das arbitrariedades comuns na época. Foi para a França, mas voltou em 1967, atendendo a apelos dos estudantes cariocas. "Era um período de tentativa de restauração da democracia, que durou apenas até o AI-5",ele avalia. Exilado, Leite Lopes esteve em Pittsburgh, nos Estados Unidos, onde "não quis ficar", e em Estrasburgo, onde permaneceu até 1986. Entre os seus trabalhos originais em pesquisa e filosofia da ciência, está o que predisse a existência do bóson Z0 e a unificação das forças eletromagnéticas e as forças fracas, de 1958. É autor de importantes livros, adotados internacionalmente, como Fondements de la physique atomique (1967), Lectures on symmetries (1969) e Gauge field theories (1981). É professor emérito das universidades de Estrasburgo, do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.
Uma das mais importantes experiências da física de nossos dias confirmou as previsões teóricas da existência de um bóson intermediário neutro, o Zo. A hipótese da existência dessa partícula encontra-se em seus trabalhos desde 1958...
Eu tinha trabalhado na teoria das forças nucleares descritas por trocas de mésons entre prótons e nêutrons. E vinha estudando, nos anos 50, as propriedades das interações fracas. Depois de um trabalho de Feynman e Gell-Mann, supus que os bósons vetoriais teriam interação fraca, com a mesma intensidade g que a carga e, que é a intensidade das forças eletromagnéticas. Naquela época, conheciam-se apenas interações fracas com mudança de carga elétrica. Quer dizer, um nêutron transformando-se em próton, partícula de carga diferente. A suposição que fiz nesse trabalho foi a de que haveria interações fracas em que não ocorreriam mudanças de carga elétrica. Um elétron pode bater num nêutron, sai o elétron, sai o nêutron; não mudam de carga, mas há uma interação entre eles em resultado da troca de um bóson intermediário neutro. Na teoria das forças nucleares existiam o píon positivo, o negativo e o neutro, e sua interação era tal que havia uma simetria perfeita entre os três e os mésons positivo, negativo e neutro. Mais tarde, quando surgiu a teoria das interações fracas e foi sugerida a existência de bósons intermediários vetoriais positivo e negativo, imaginei que poderia existir também o neutro. Fui verificar se haveria uma simetria correspondente, uma invariância, e que tipo de interação havia entre as partículas e esse bóson neutro, se era diferente da interação com o bóson carregado. Era diferente, e isso foi confirmado muito depois, e, nestes últimos anos, experimentalmente verificado. A predição do bóson neutro e a ideia de unificação contida na igualdade g = e foram desenvolvidas por Glashow, Weinberg e Salam.
Quando nasceu esse seu interesse pela estrutura última da matéria?
Já no Colégio Marista, no Recife, a química explicada pelo Irmão Pacomio me interessava muito. Pacomio explicava tudo, era um velhinho simpático, formidável. Eu comprava reagentes na farmácia e fazia as experiências em casa. Depois, quando entrei na escola de química, meu professor de física foi Luiz Freire, outra pessoa extraordinária. Tinha uma formação em filosofia muito boa e era homem de grande cultura. Era um grande conversador, que atraía as pessoas. Influenciou Mario Schenberg, chegou mesmo a conduzi-lo para a física. Era um homem fascinante. Outro grande professor foi Oswaldo Gonçalves de Lima. Um dos maiores químicos do Brasil, de todos os tempos. Ele me influenciou um bocado, conversando, na aula, no laboratório. Ele acentuou em mim a curiosidade pela teoria atômica. Mais tarde, o Mario Schenberg, em São Paulo, o Pauli, em Princeton, e Feynman, que esteve aqui no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) por um ano, em 1951. Feynman é um sujeito fabuloso. E também o Oppenheimer, que estava em Princeton logo depois da segunda guerra, que encontrei de novo em 1949, e que também veio ao Brasil, e ainda Hideki Yukawa, o inventor dos píons, que era meu amigo.
E hoje em que você está trabalhando?
Até recentemente, conheciam-se quatro partículas com interação eletromagnética e fraca. São os léptons, cujo nome já indica serem partículas leves: o elétron e seu neutrino e o múon cuja massa é duzentas vezes a do elétron - e seu neutrino. São leves porque o próton, por exemplo, tem mil e oitocentas e tantas vezes a massa do elétron. E o múon tem carga negativa, mas apresenta as mesmas propriedades eletromagnéticas do elétron, isto é, as mesmas propriedades de interação fraca.
O fato de ele ter uma massa que é duzentas vezes a do elétron é que é um mistério...
Ninguém compreendia por que, e até hoje não deixa de ser um mistério. Tive a ideia lá pelos anos 70, de considerar que os léptons - o elétron e seu neutrino, o múon e seu neutrino - não seriam partículas simples. Da mesma forma que, com o modelo de Gell-Mann, o próton, o nêutron e o lambda passam a ser partículas compostas, formadas de quarks, perguntei a mim mesmo se os léptons não teriam também uma estrutura. Porque, digamos, em 1940,1950, antes de Gell-Mann, não ocorreria a ninguém que o próton fosse uma partícula composta. Sabia-se que o próton e o nêutron tinham propriedades anormais, como um momento magnético anormal, e dizia-se que isso se dava porque estavam cercados por uma nuvem de mésons. Mas, não se imaginava que tinham uma estrutura de partículas, de subpartículas. Ora, depois,verificou-se que são formados de quarks.
E quais seriam os constituintes dos léptons?
A teoria pressupunha que os quarks e os elétrons eram elementos constituintes independentes. Eu pressupus que léptons podiam ser constituídos por quarks e por uma nova partícula, uma espécie de lépton neutro pesado que, associando-se ao par quark - antiquark, segundo esse modelo de 1970, daria um lépton. E assim, se poderia descrever o elétron e seu neutrino, o múon e seu neutrino. Mas, havia uma dificuldade nesse primeiro modelo, e fui obrigado a introduzir dois léptons neutros diferentes. Mais tarde, no fim da década de 1970, descobriu-se experimentalmente um novo lépton. Foi na Califórnia, no laboratório do SLAC, que é o acelerador linear de Stanford. Esse novo lépton, chamado tau (τ), tem uma massa muito grande, maior mesmo que a do nêutron, cerca de três mil vezes maior que a do elétron.
E como apareceu o tau?
Nesse acelerador linear, provoca-se a colisão de elétrons e antielétrons com energia de muitos bilhões de elétrons-volt. Ao colidirem, eles dão lugar a um par de novos léptons que são o tau e o antitau. Esse tau depois se desintegra em múon ou elétron acompanhados dos respectivos neutrinos e de um novo neutrino, o neutrino tauônico. Conhecemos então, atualmente, seis léptons: o elétron, o múon, o tau e seus neutrinos. Se dissermos que a massa do elétron é igual a um, a do múon é duzentos e a do tau cerca de três mil. O fato de terem propriedades eletromagnéticas e fracas, semelhantes, e massas tão diferentes é um mistério. Não se sabe de onde vem essa diferença. E com o aparecimento do tau eles deixam até de ser leves... apenas não têm interação forte. E isso me convenceu mais ainda de que os léptons devem ter uma estrutura interna.
Em que direção você orientou suas pesquisas?
Em vez de deter-me em modelos, quando ainda não há elementos suficientes para nos indicar que tipo de estrutura os léptons poderiam ter, comecei, a partir do final da década de 1970, a estudar com o meu grupo de Estrasburgo, os efeitos que poderiam indicar a existência da estrutura interna dos léptons. Assim, se o lépton elétron, múon ou tau é formado de subpartículas, a hipótese mais simples é a de que essa subpartícula tenha também spin 1/2. O que se inspira diretamente no quark. Se houver um sublépton de spin 1/2, um lépton ordinário, como o elétron, seria constituído de três dessas partículas. Porque são necessárias três delas para dar spin 1/2. Ora, esses três subléptons, em condições experimentais particulares, poderiam dar um lugar a uma partícula com spin 3/2.
Nosso grupo começou então a estudar os léptons com spin 3/2. E calculamos os efeitos, os processos físicos que pudessem pôr em evidência essas partículas com spin 3/2. De 1975 até hoje, produzimos um grande número de trabalhos em que calculamos processos eletromagnéticos, processos de interação fraca em que são postas em jogo essas partículas supostamente existentes. Depois estendemos nosso trabalho e passamos a considerar também o quark como partícula composta, podendo ter spin 3/2. Mais tarde, apareceram investigações de outros físicos, eminentes físicos modernos, sobre a composição dos subléptons e "subquarks", a que deram o nome de préons. Esses trabalhos desenvolveram-se posteriormente aos nossos e independentemente de nossas ideias. Fizemos esses estudos sobre certos efeitos físicos na esperança de que possam vir a ser observados em laboratório, permitindo-nos verificar se obedecem as nossas previsões teóricas. Caso obedeçam, poderemos dizer que essas partículas existem.
Na mesma época em que você descobria a física, a fissão nuclear era obtida em laboratório. Você foi, portanto, um observador privilegiado da história do pecado original da ciência moderna...
A fissão do urânio foi realizada pela primeira vez na Alemanha, em 1939. Esse ano marca o nascimento da energia nuclear. Como era véspera da guerra mundial, essas pesquisas chamaram a atenção dos físicos, porque nunca se tinha visto a possibilidade de uma liberação tão fantástica de energia. O trabalho foi desenvolvido no âmbito do Projeto Manhattan, nos Estados Unidos, com a participação de eminentes físicos europeus e norte-americanos. E deu lugar à tragédia da bomba atômica, lançada em Hiroxima e depois em Nagasaki. Em 1945, eu estava em Princeton, trabalhando com Pauli, e acompanhei tudo isso. Einstein estava lá nessa época, Jauch também. Mas, não estavam trabalhando na bomba atômica.
Qual foi a reação quando a bomba foi lançada?
Foi uma grande surpresa. O New York Times falava da descoberta misteriosa. Logo após defender a tese, assisti, em janeiro de 1946, à primeira reunião da Sociedade Americana de Física, em Nova Iorque. Os físicos norte-americanos discutiram intensamente a questão e propuseram a criação da Comissão de Energia Atômica, que deveria ficar sob controle civil. Durante a guerra, o Projeto Manhattan fora dirigido por um general, o Leslie Groves. E naturalmente devia haver militares querendo controlar a energia atômica, porque a bomba atômica é uma arma de guerra. Mas, os físicos achavam que os civis é que deveriam ditar a política de energia atômica.
E qual foi a reação no Brasil?
No Brasil, e em todo o mundo, houve uma grande repercussão. Nas Nações Unidas - e o Brasil tinha assento lá - foi criada uma Comissão de Energia Atômica. O representante brasileiro foi o almirante Álvaro Alberto, que era professor de química da Escola Naval. Utilizando seu prestígio e o prestígio da energia atômica no mundo, Álvaro Alberto trabalhou junto ao governo do presidente Dutra pela criação de um conselho nacional de pesquisas. Os Estados Unidos tinham um conselho de pesquisas desde 1916, a Itália desde 1923. Na União Soviética existia a Academia de Ciências, que desempenhava um papel muito importante do ponto de vista do fomento da pesquisa científica, da criação de institutos e do apoio aos pesquisadores. No Brasil, não havia uma organização estatal que apoiasse a pesquisa científica.
Enviado o projeto ao Congresso e aprovado, a lei foi sancionada no segundo governo de Vargas, já em 1951. Álvaro Alberto foi o primeiro presidente do CNPq. Pela primeira vez, formulou-se uma política científica nacional. Foram concedidas bolsas de estudo para que jovens brasileiros se especializassem em ciências, fossem fazer pesquisas científicas e cursos de doutorado no exterior. O CNPq dava auxílio aos laboratórios científicos do país e às universidades que tivessem esses laboratórios.
É dessa época a criação dos institutos?
O CNPq criou o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, uma região muito importante do Brasil, desconhecida, e que sempre foi objeto dos interesses internacionais; criou o Instituto de Matemática Pura e Aplicada para desenvolver a matemática no país; o Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação, para estimular a documentação científica. Propôs também, ao presidente Getúlio Vargas, o desenvolvimento de um programa de energia nuclear. A proposta era baseada no seguinte: havia vários anos que o Brasil exportava areia monazítica para os Estados Unidos, e essa areia contém tório, elemento importante no domínio da energia atômica. Em troca, recebíamos trigo. Álvaro Alberto propôs ao governo que o pagamento fosse feito não em dólares ou trigo, mas no que chamou de compensação específica. Quer dizer, os Estados Unidos nos pagariam a areia monazítica com informações sobre energia atômica, seções de choque, parâmetros, números que desconhecíamos e eram necessários para o desenvolvimento da energia atômica. Pagariam também com aparelhos, equipamentos para laboratórios de energia atômica.
Mas isso era proibido...
Proibido por lei. Havia uma grande rivalidade com a União Soviética, que, nos primeiros anos do pós-guerra, ainda não tinha a bomba atômica. E os Estados Unidos queriam guardar o segredo. O que é uma política errada, porque um segredo científico não pode ser guardado por muito tempo. A lei chamava-se Mac-Mahon. Não podia haver pagamento por compensação específica. Mas o Álvaro Alberto não desanimou. Procurou comprar na França e na Alemanha equipamentos que, instalados no Brasil, permitiriam o desenvolvimento de um programa de energia atômica. Na França, encomendou usinas para a produção de urânio em estado puro; na Alemanha, as primeiras máquinas capazes de enriquecer o urânio, as ultracentrífugas, ainda hoje utilizadas na Europa e nos Estados Unidos. Na época era um processo pioneiro, estava sendo empregado pela primeira vez na Alemanha. Mas, esses equipamentos não vieram, porque os Estados Unidos vetaram.
E como surgiu a cooperação internacional para o desenvolvimento da energia atômica?
Gradativamente, os Estados Unidos viram que estavam perdendo o segredo. A União Soviética fez a bomba sozinha, a França desenvolveu a energia nuclear por conta própria, a Inglaterra também, a Holanda cooperava com a Noruega. Aos poucos, os pequenos países avançados estavam descobrindo os chamados segredos atômicos. Os Estados Unidos e a União Soviética concordaram então em promover uma grande conferência internacional em que os segredos seriam revelados. Milhares de trabalhos foram apresentados, revelando todos os dados necessários à construção de reatores de potência para pesquisa e as aplicações de radioisótopos. Essa conferência marcou época. Havia uma equipe de secretários científicos para coordená-la e conduzir os trabalhos. Eu fui um deles, outro foi o Abdus Saiam, que recentemente recebeu o prêmio Nobel. Nessa conferência ficou clara a força política da energia atômica. Voltei para o Brasil, em 1955, convencido de que o país devia realmente levar à frente um programa de utilização pacífica da energia nuclear, um programa importante do ponto de vista energético e do desenvolvimento científico e tecnológico. Criou-se então a Comissão de Energia Atômica, da qual eu era membro.
E que iniciativas foram tomadas?
Eu tinha sugerido a criação de um laboratório nacional de energia nuclear, mas na realidade foi criado um Instituto de Energia Atômica, em São Paulo. Depois, foram fundados o Instituto de Pesquisas Radioativas, em Belo Horizonte e o de Energia Atômica, no Rio de Janeiro, na Universidade Federal, com um pequeno reator. Eu era contrário a isso. Achava e ainda acho que deveria haver um grande laboratório nacional com alguns reatores para se trabalhar de início com grande concentração de físicos, matemáticos, químicos, biólogos, metalurgistas, enfim, todos os cientistas e técnicos necessários. Assim, poderíamos formar gente. Depois, aos poucos, daríamos nossa pequena contribuição ao Brasil. Mas, isso não foi aprovado.
E o Álvaro Alberto?
Em 1954 houve o suicídio de Vargas. Foi um acontecimento político maior, muito importante. No governo Café Filho, o Álvaro Alberto foi demitido do CNPq e a política de energia atômica foi totalmente modificada. E a meu ver, a modificação não teve um sentido positivo. Enquanto a política traçada por Álvaro Alberto atendia aos interesses nacionais, a nova política limitava-se à assinatura de acordos com países estrangeiros, principalmente com os Estados Unidos, para a importação de reatores e de equipamentos já prontos. Enquanto isso, a Argentina desenvolvia um programa em linhas similares àquelas propostas por Álvaro Alberto, procurando fazer com que até os reatores fossem projetados por equipes nacionais.
E a Comissão Parlamentar de Inquérito de 1955?
A comissão foi instaurada na Câmara dos Deputados. O presidente era o deputado Gabriel Passos, o relator, o deputado Dagoberto Salles, e um de seus membros mais ativos era o deputado Renato Archer. O primeiro a depor nessa comissão foi o Álvaro Alberto, eu fui o segundo. No relatório publicado depois, estão expostos os acontecimentos e as mudanças ocorridas no governo Café Filho, por influência do general Juarez Távora. Com essa mudança na política de energia atômica eu me afastei e fui afastado do problema.
E o acordo nuclear de 1975?
Acho que alguém disse ao presidente Geisel que o Brasil estaria muito atrasado no campo da energia nuclear. E ele fez esse acordo, até hoje muito controvertido, muito discutido. Penso que o Brasil perdeu vinte anos de trabalho e desenvolvimento. Os governos passados não entenderam a importância da energia atômica, e, quando se procurou remediar nossa carência, fez-se um acordo enorme com a Alemanha, envolvendo a compra de equipamentos caríssimos e em grande número, em vez de se fazer as coisas gradativamente, formando gente, tecnólogos, construindo os equipamentos, adaptando e inventando novas tecnologias. Mas, nada disso foi feito.
E a Universidade do Brasil nos anos 40, como era? Como foi sua entrada na carreira acadêmica?
Minha primeira experiência na Universidade do Rio de Janeiro deu-se em 1941, quando fui convidado a assumir o cargo de assistente de Luiz Sobrero, um italiano, professor de física teórica e física superior. Embora eu ainda não tivesse terminado o curso de física, isso era possível porque já era formado em química pela Escola de Engenharia de Pernambuco. Mas, a nomeação não saiu. O diretor da faculdade, o Raul Leitão da Cunha, disse que não havia verbas. Em 1945, quando terminei a tese, em Princeton, fui nomeado professor catedrático interino de física teórica e física superior na Faculdade de Filosofia, por indicação de Costa Ribeiro e do San Tiago Dantas, que era o diretor na época.
Qual era o panorama da física no Brasil em 1946?
Havia os trabalhos pioneiros de Berrnhard Gross sobre física do estado sólido. Havia o Francisco Mendes de Oliveira Castro, matemático e físico-matemático, que se interessava pelos problemas experimentais e seu tratamento matemático. Na Faculdade de Filosofia, tínhamos o Joaquim Costa Ribeiro e seus assistentes e o Plínio Sussekind Rocha, homem de grande cultura, sobretudo filosófica, professor de mecânica celeste e mecânica racional. Eu queria desenvolver a física teórica voltada para a física nuclear e a física de partículas. Nesse terreno não havia nada no Rio de Janeiro.
E em São Paulo?
Lá havia a equipe do Mario Schenberg, que fazia física teórica, e o Marcelo Damy de Souza Santos, que comandava a física experimental. Como na Universidade de São Paulo existia o regime de tempo integral, eles podiam dedicar-se, exclusivamente, à pesquisa e ao ensino na universidade. Não era o caso no Rio de Janeiro.
A batalha do tempo integral durou vinte anos...
No Rio de Janeiro, os professores da Escola de Engenharia, da Faculdade de Direito, tinham suas atividades fora da faculdade, depois do término dos cursos. E para cadeiras básicas, como física, matemática, filosofia, isso a meu ver não era possível. Era necessário instituir o regime de tempo integral. Comecei a escrever artigos, a falar nas reuniões da congregação. Lembro de ter escrito um artigo sobre o problema da ciência no Rio de Janeiro, para o Jornal de Debates, dirigido por Mattos Pimenta, jornalista conhecido. Por causa desse artigo, entrei em contato com dois biólogos importantes do Instituto de Manguinhos, Haity Moussatché e o Hermann Lent. E passei a discutir com eles as questões do apoio à ciência.
E o Dasp, já atrapalhava?
O Dasp era rígido, não permitia o regime de tempo integral. Os professores universitários do Brasil eram funcionários públicos federais, e tinham de ganhar o que estava estabelecido, não mais que aquilo. A pesquisa científica não era conhecida nem compreendida, não só pelos funcionários do Dasp, mas até pelas autoridades universitárias. Estávamos em 1946, a bomba atômica tinha acabado de cair em Hiroxima e Nagasaki, o prestígio da física nuclear crescera de súbito no mundo inteiro, mas aqueles reitores e diretores - salvo um homem de grande inteligência e sensibilidade como San Tiago Dantas - em sua maioria não compreendiam, nem mesmo sabiam se a universidade devia ou não ter professores dedicados exclusivamente ao ensino e sobretudo a investigação científica.
A Fundação Rockefeller, parece-me, tentou contribuir na época para a superação do impasse...
Em torno de 1949, a Fundação Rockefeller passou a apoiar pesquisas desenvolvidas no Rio no campo da biologia e da física, com recursos para a compra de aparelhos científicos e, acredito, mesmo com bolsas. Seu representante veio ao Rio visitar-me várias vezes e estava a par de nossas dificuldades. Chamava-se Miller. Em certa oportunidade, ele apresentou à universidade uma proposta para o estabelecimento do regime de tempo integral que começaria com três professores: um de física, um de filosofia e um de biologia. Os indicados, se não me falha a memória, foram, além de mim mesmo, Carlos Chagas Filho e Álvaro Vieira Pinto, professor de filosofia da Faculdade Nacional de Filosofia. O regime começaria na seguinte base: no primeiro ano a Fundação Rockefeller daria um complemento para que esses três professores tivessem um salário que lhes permitisse dedicar-se só a pesquisa, trabalhando em tempo integral. No segundo ano, a fundação daria 75% desse complemento, no terceiro, 25%. E assim a participação da fundação iria decrescendo, até que a universidade assumisse inteiramente a remuneração do tempo integral. Entretanto, a coisa não funcionou: o dinheiro era entregue à universidade e ela nos pagava com um atraso enorme. O acordo acabou desmoralizado.
Havia chances de vencer essa batalha?
Seria muito difícil continuar trabalhando na Faculdade Nacional de Filosofia sem uma ajuda maior. Comecei então a me corresponder com o César Lattes, que tinha sido meu colega em São Paulo - eu tinha estado lá depois de acabar o curso de física, antes de ir para Princeton. Lá, começara a trabalhar com Mario Schenberg e conhecera o Lattes e o Walter Schultzer. Havia também uma física muito importante, que tinha sido colega nossa, Sonja Ashauer. Era uma física teórica. Quando fui para Princeton, o Lattes foi para Bristol e a Sonja para Cambridge, trabalhar com o Dirac. Ela morreu logo depois que voltou para o Brasil. Infelizmente, ela faleceu. De Princeton, comecei a me corresponder com o Lattes. Disse para ele que era muito importante que, quando voltasse da Inglaterra, em vez de ir para São Paulo, que já tinha um bom grupo de físicos experimentais comandados por Marcelo Damy, fosse para o Rio de Janeiro, onde não havia física experimental no setor nuclear. Essa correspondência deu lugar à criação da cadeira de física nuclear na Faculdade Nacional de Filosofia. Em Bristol, o Lattes tinha descoberto, com Occhialini e Powell, o méson pi na radiação cósmica. Logo depois, foi para os Estados Unidos, e lá, juntamente com Gardner, produziu o méson pi no cíclotron de Berkeley. E ficou famoso por esse trabalho. Isso ajudou nossos planos de trazê-lo para o Rio. Propus então ao Costa Ribeiro a criação da cadeira de física nuclear. Ele acolheu a ideia com o maior entusiasmo e a faculdade aprovou, a reitoria encaminhou a proposta ao ministro, este a mandou para o presidente, que a enviou ao Congresso - e foi criada a cadeira de física nuclear. Mas, mesmo criada a cadeira, não havia condições para a montagem de laboratórios, a compra de equipamentos e o regime de tempo integral.
A criação do CBPF tornava-se ume necessidade...
Foi nessa época que o Lattes, antes de voltar definitivamente, pediu a um amigo dele, Nelson Lins de Barros, que também estava nos Estados Unidos, na Califórnia, que visse como estavam as coisas no Rio. Contei ao Nelson da gravidade da situação e da total falta de apoio das autoridades universitárias. Ele me levou ao seu irmão, o ministro João Alberto Lins de Barros, político influente que participara da Revolução de 1924 e da Revolução de 1930, depois da qual ocupara vários cargos no governo. Era um homem de grande inteligência e muito dinâmico. Ele me ouviu e disse: se a universidade não faz, vamos criar uma sociedade privada, uma instituição civil que possa fazer. O Rio de Janeiro, o Brasil não podem deixar de desenvolver a física nuclear e a energia nuclear. Daí nasceu a ideia do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. O Lattes veio e o CBPF foi criado em 15 de janeiro de 1949. Aliás, acho que o Lattes estava na Califórnia, eu o representei na primeira sessão. No início, o João Alberto dava dinheiro do bolso dele. Nós nos instalamos num escritório da rua Álvaro Alvim, no centro da cidade. Começamos a entrevistar jovens para trabalhar conosco e a comprar livros. O sindicato dos engenheiros nos deu dinheiro para a compra de revistas e a Confederação Nacional das Indústrias, cujo presidente chamava-se Euvaldo Lodi, nos deu uma subvenção mensal de cem contos. Quem conseguiu isso foi o Rômulo de Almeida, que é um economista baiano e um amigo. Finalmente, em 1951, o recém-criado CNPq passou a ajudar diretamente o CBPF.
E esse apoio deu estabilidade financeira ao CBPF?
Com as sucessivas crises econômicas e a crescente inflação, os recursos postos à disposição do CBPF foram diminuindo. Procuramos então outras saídas. Uma delas na direção da colaboração latino-americana. Em 1959, fui ao México como professor da primeira Escola Latino-Americana de Física, fundada por Moshinsky, do México, por mim mesmo e por J.J. Giambiagi, argentino. A ideia da escola era convidar professores pesquisadores da Europa e dos Estados Unidos para tratar com os latino-americanos uma área da física a cada ano. A escola se reuniria ora no México, ora no Rio, ora em Buenos Aires. Voltei da reunião do México convencido de que o Brasil devia criar um organismo latino-americano de física. Em Buenos Aires havia o Clam — Centro Latino-Americano de Matemática, da Unesco, em cooperação com os governos latino-americanos. Propus então ao Conselho Técnico e Científico do CBPF que promovêssemos a criação de um Centro Latino-americano de Física, que teria sede no próprio CBPF. Foi uma nova batalha que durou anos e envolveu contatos com a Unesco, através do embaixador Paulo Carneiro, o ministro das relações exteriores San Tiago Dantas e seu vice, o deputado Renato Archer. Mas finalmente, o Claf foi criado.
E a Universidade de Brasília, não é também dessa época?
Com a criação de Brasília, era importante que lá, na capital federal, houvesse também uma universidade. E nossa ideia era que, não havendo outras universidades por ali, partindo-se do zero, podia-se criar uma estrutura nova. Formamos uma equipe. O Darcy Ribeiro começou a reunir gente, veio o Haity Moussatché, o Walter Oswaldo Cruz, o Herman Lent, o Maurício Rocha e Silva, o Jaime Tiomno e o Fernando Laboriau, um botânico que está atualmente na Venezuela. Vieram também a Maria Yedda Linhares, do setor de história, o Celso Furtado. A ideia era organizar uma universidade com institutos fundamentais onde haveria pesquisa. De matemática, de química, física, biologia, filosofia etc. Depois os alunos ingressariam nas escolas tecnológicas de medicina, direito, engenharia, onde haveria a preocupação de profissionalizar e eventualmente, também, de fazer pesquisas tecnológicas. Essa era a ideia essencial.
E como se imaginava a carreira universitária?
Não haveria professor catedrático por concurso. Os professores seriam escolhidos pelo que tivessem realizado, pela competência revelada. E tanto a escolha dos jovens, dos assistentes, como a promoção seriam sempre na base do mérito. Essa era a ideia fundamental. Ela foi realizada, foi construído um grande prédio, apelidado de minhocão, projeto do Oscar Niemeyer. Mas infelizmente, com o movimento militar de 1964, a Universidade de Brasília terminou, morreu. Até 1965,1966, havia uma boa equipe. O Roberto Salmeron era o decano de ciências; estavam lá o Gabriel Fialho, o Ricardo Palmeira, que passara muito tempo nos Estados Unidos. Com o golpe de 1964, eu, que era diretor científico do CBPF, pedi demissão. Meu mandato no CNPq expirou e não foi renovado. Em todas as universidades foram instaladas comissões de inquérito policial-militar. Havia perseguições e um profundo mal-estar. Recebi um convite do Maurice Levi e fui para Paris, trabalhar na Faculdade de Ciências. Em 1966, alguns professores da Universidade de Brasília foram expulsos, e então mais de cem pediram demissão e se afastaram. A universidade foi destruída por intervenção militar.
E em 1967 você voltou...
Em 1967, recebi uma petição de estudantes do Rio para que eu voltasse. Foi justamente quando houve a mudança de governo, a Constituição de 1967. O marechal Costa e Silva tinha assumido a presidência e resolvi voltar porque havia uma constituição, um parlamento funcionando. Então reassumi: a minha cadeira na universidade que estava intacta e minha posição de pesquisador no CBPF também. Voltei em 1967 e fiquei até 1969. Nesse período houve uma tentativa de restauração da democracia, mas tudo terminou com a edição do Ato Institucional n° 5, o famoso AI-5. Professores foram afastados compulsoriamente, centenas, e eu fui atingido por esse ato.
Quais eram os seus projetos na época?
Ao voltar, fui designado diretor do Instituto de Física. A sede da universidade estava sendo mudada para a cidade universitária e a própria estrutura da universidade estava sendo mudada. A Faculdade de Filosofia estava sendo desdobrada em institutos. Imitava-se o que tinha sido feito em Brasília, mas a meu ver de maneira muito má. Havia muita gente que não se dedicava à pesquisa, e uma universidade assim não podia ser boa. E faltavam recursos, não havia nem giz. Para que o campus da cidade universitária adquirisse certa dinâmica e prestígio, pensei na instalação de um acelerador de partículas lá na cidade universitária. Uma máquina com energia da ordem de 600 milhões de elétrons-volt, energia intermediária. Ela acabava de ser produzida e seria uma máquina nem muito grande nem pequena. E os aceleradores existentes no país, em São Paulo, estavam obsoletos, após terem permitido muitos bons trabalhos. Para a elaboração do projeto foram obtidos recursos da Finep e o apoio do Instituto de Pesquisas da Marinha, cujo diretor tinha sido meu colega no CNPq, antes de 1964. A coisa estava em pleno desenvolvimento quando, em 1969, veio o AI-5. E fui obrigado a ir embora. Antes de sair, como parte do projeto para a utilização dessa máquina, propus que se convidassem físicos brasileiros que estavam no exterior há algum tempo, como o Fernando e a Susana de Souza Barros, o Jean Meyer e o Salmeron, que estava no Laboratório Europeu para Física de Partículas (CERN) e depois foi para Paris.
O Fernando e a Susana Souza Barros acabaram vindo...
E contribuíram para o desenvolvimento do instituto, que de fato ocorreu, e foi maior mesmo do que se poderia pensar.
Em 1969 você foi para Pittsburgh, nos Estados Unidos...
Fui, mas não quis ficar nos Estados Unidos. O governo americano havia inspirado e apoiado fortemente o golpe militar brasileiro, e não me senti bem lá. Tinha convites de outros países, entre eles a França. E para lá fui, em 1970, para Estrasburgo, onde fiquei até agora.
Recentemente você foi convidado para integrar uma comissão do Ministério da Educação que deveria repensar o ensino superior no país...
Essa comissão não vai, evidentemente, propor uma estrutura muito definida de regimentos, estatutos. O que ela deve propor são certos princípios gerais a serem obedecidos pelo governo, como por exemplo o princípio da autonomia, o financiamento adequado. Deve-se também rediscutir a estrutura de poder na universidade. A atual estrutura do Conselho Universitário, com todos aqueles professores tradicionais, não funciona. Mas, as coisas não devem vir de cima. Devem sair também de dentro das universidades, do movimento dos estudantes e do universo dos professores. Da Andes, das associações de docentes das várias universidades, da SBPC. Acho que, ao fim do trabalho dessa comissão, que durará seis meses, deve haver um grande encontro nacional para se discutir a nova universidade. E é daí que deveria sair um projeto nacional, com a colaboração de toda a comunidade universitária.
E os princípios, estão sendo discutidos ?
O primeiro princípio, acho eu, é que uma universidade, para ter esse nome, deve ser fonte de conhecimento humano. Quer dizer, deve ter trabalhos de pesquisa, não digo em todos os setores, mas pelo menos nos setores fundamentais. Deve haver criação de pesquisas, desenvolvimento no setor tecnológico, no setor cultural, na filosofia, nas letras, nas artes. Sem o espírito de que se está procurando conhecimento novo, a transmissão de conhecimentos para os alunos a meu ver é deficiente, tem-se uma universidade de segunda categoria. Disseram-me que isso é evidente. Acho que não é, porque se fosse não haveria universidade de categoria inferior no mundo. Vou propor que sejam criados institutos de estudo superior, ou faculdades isoladas, em que não haveria pesquisa básica e que não teriam o nome de universidade. Seria também importante a criação de institutos superiores de tecnologia.
E as diversidades regionais?
Não há nenhum motivo para que em todas as regiões do país existam universidades idênticas, com estruturas idênticas e os mesmos institutos e faculdades. Pode haver universidades nos centros mais avançados e, em outros locais, institutos superiores de tecnologia, que variarão de acordo com os interesses da região. No Amazonas, no Amapá, em Mato Grosso, nos estados do Nordeste, podem ser criados institutos que desenvolveriam tecnologias específicas: tecnologia do babaçu, do petróleo etc. Isso tudo está sendo discutido, e é muito importante, nessa fase de transição política para um regime democrático no Brasil, que o problema da universidade seja discutido e repensado. E que se comece de novo, em bases mais sólidas e convenientes.