Entrevista a Carlos Chagas Filho (Instituto de Biofísica, UFRJ). Publicada em novembro/dezembro de 1983.
Midia
Part of Entrevista Johanna Döbereiner
Nascida em 1924 na cidade de Aussing, Alemanha, Johanna Dõbereiner viveu em Praga, Tchecoslováquia, até a Segunda Guerra Mundial, quando deixou o país como refugiada. Durante três anos, primeiro na Alemanha Oriental e depois na Alemanha Ocidental, trabalhou no campo, adquirindo seus primeiros conhecimentos em agricultura.
Em 1950, graduou-se pela Faculdade de Agricultura da Universidade de Munique, emigrando em seguida para o Brasil. Logo ingressou no Ministério da Agricultura, para trabalhar como pesquisadora em microbiologia de solo, função que exerce até hoje. O orientador de seus primeiros trabalhos foi Álvaro B. Fagundes, responsável por seu aprendizado das técnicas básicas da especialidade.
A partir do final da década de 50, publicou uma série de trabalhos sobre o enriquecimento seletivo de bactérias fixadoras de nitrogênio em plantações de cana-de-açúcar, e descreveu uma nova bactéria fixadora de nitrogênio, a Beijerinckia fluminensis. O grupo que dirige na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro iniciou em 1963 um extenso programa de pesquisas sobre vários aspectos da fixação biológica do nitrogênio por plantas cultivadas, acumulando dados e resultados que indicam a superioridade desses recursos naturais sobre a utilização de fertilizantes minerais.
Obteve o grau de mestre pela Universidade de Wisconsin, EUA, em 1963, e nos dois anos seguintes fez cursos sobre microbiologia do solo na Universidade da Flórida e em Santiago do Chile. Por ocasião da introdução do cultura da soja no Brasil, no início da década de 60, tomou partido em favor do aproveitamento das associações entre a planta e bactérias fixadoras de nitrogênio, opondo-se à utilização obrigatória de adubos nitrogenados. A adoção desta linha de pensamento resultaria, ao longo dos anos seguintes, numa considerável economia de divisas para o país.
Em 1974, em trabalho conjunto com Day, descreveu a ocorrência de uma associação entre bactérias do gênero Spirillum (mais tarde reclassificadas como Azospirillum) e gramíneas. As possibilidades abertas pelo achado em relação à atividade agrícola no Terceiro Mundo motivaram a criação do Programa de Cooperação Internacional em Fixação de Nitrogênio nos Trópicos, sob a sua coordenação. Em 1975, em colaboração com Bülow, descreveu a ocorrência de bactérias semelhantes ao Spirillum nas raízes do milho. A larga distribuição dessas bactérias em solos tropicais despertou grande entusiasmo, devido à potencialidade de sua aplicação em lugar do recurso a fertilizantes.
Johanna Döbereiner tem participado ativamente de reuniões científicas internacionais e foi eleita presidente honorária da Reunião Anual da SBPC -Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência de 1976, realizada em Brasília. Membro titular da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Pontifícia de Ciências, recebeu em 1976, o prêmio Frederico Meneses Veiga, da Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa), o prêmio Agricultura de Hoje, de Bloch Editores, em 1977, e o prêmio Bernardo Houssay, da Organização dos Estados Americanos, em 1979. É doutora honoris causa da Universidade da Flórida, EUA, e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Você é, incontestavelmente, uma pesquisadora de reconhecimento nacional e internacional. Chegou ao Brasil muito moça, vinda da Alemanha; eu gostaria que você nos contasse os episódios que marcaram sua carreira tão fascinante.
Uma carreira muito comprida, não? Creio que, sem dúvida, quem mais marcou o início de minha carreira foi Álvaro Barcelos Fagundes. Ele era, na época, diretor do Serviço Nacional de Pesquisa Agropecuária. Eu cheguei aqui sem conhecer ninguém. Por acaso, meu pai tinha vindo alguns anos antes, e conheceu o dr. Fagundes através de outra pessoa. Naquela época, só se conseguia alguma coisa através de uma recomendação. Então, foi uma grande coisa eu ter sido apresentada a ele, que me perguntou: "Você é especialista?" Eu respondi: "Não, sou recém-formada." Ele disse: "É", mas nós temos uma verba aqui para contratar especialistas estrangeiros." Eu, estrangeira, era mesmo recém-formada, mal falava português, não tinha nem três meses de Brasil. Aí, ele falou: "A senhora estude mais um pouquinho e volte daqui a 15 dias." Quinze dias depois eu voltei de novo, e ele disse: "Só temos, realmente, contratos para especialistas. A senhora não é especialista?" Respondi: "Não, infelizmente não. Fiz a minha tese em microbiologia do solo, na Alemanha, mas acabo de receber o diploma." E ele disse: "O dinheiro que há é só para especialistas, a senhora volte em 15 dias." Duas semanas depois eu voltei: ele perguntou, de novo, a mesma coisa, e eu respondi: "Se o senhor quiser, posso considerar que tenho uma certa especialização, pois fiz a minha tese num assunto específico. Mas mesmo se o senhor não me contratar, eu queria trabalhar, mesmo sem ganhar nada." Ele disse: "Muito bem, pode começar amanhã." Aí, eu comecei a entender que no início era um pouco diferente.
Isso foi quando?
Em 1951.
Em que instituição?
No Serviço Nacional de Pesquisa Agropecuária (SNPA), situado no quilômetro 47 da antiga estrada Rio - São Paulo, cujo diretor era o doutor Fagundes. Ele tinha feito uma tese de doutoramento sob a orientação do Starkey, que por sua vez era professor da Universidade de Rutgers, da escola de Waksman. Como não havia, naquele tempo, pesquisa em microbiologia do solo no SNPA, o dr. Fagundes queria começar uma investigação nessa área e assim, pessoalmente, ele me orientou. Eu não sabia de nada, nunca tinha trabalhado em laboratório, e ele, com uma paciência incrível, me ajudou. Mas foi preciso mais de um ano, talvez, para eu aprender o beabá em microbiologia.
E o seu diploma, onde ficou?
O diploma de agrônomo não valia muito, já que depois da guerra, em 1945, 1947, os cursos na Alemanha eram muito fracos. O dr. Fagundes, entretanto, com a maior paciência, me ensinou agronomia mesmo, de que eu, então, não tinha a menor ideia. Minha tese em microbiologia do solo tinha sido uma revisão da bibliografia, já que na Alemanha daquela época não havia laboratórios.
Então pode-se dizer que você é uma Brazilian made scientist?
Claro, sou, sou.
E qual foi seu primeiro projeto de trabalho, naquela época?
Durante um ano ou dois começamos a fazer algumas pesquisas sobre a ecologia de micro-organismos, mas uns dois anos depois Fagundes foi transferido, deixou de ser diretor, e então, praticamente de 1953 até 1960, fui autodidata, pois não havia ninguém do campo por perto.
Você se orientou, nesse momento, para os problemas de fixação do nitrogênio pelas bactérias?
Sim, inclusive o primeiro trabalho que publiquei provocou uma briga com meu chefe, que discordava de alguns aspectos. Insisti em publicá-lo, e esse foi meu primeiro trabalho com Azotobacter, uma das espécies de bactéria que fixam o nitrogênio em associação com as plantas. Em 1958-59, já com alguns colegas, publicamos um trabalho sobre a fixação do nitrogênio em cana-de-açúcar na Revista Brasileira de Biologia. Talvez justamente devido à minha formação na Alemanha, quando fui confrontada com a agricultura tropical, eu sempre achei curioso, por exemplo, que a grama-batatais, que cresce em todo lugar, permanecesse verde e viçosa sem que ninguém nunca a adubasse com nitrogenados. O mesmo com a cana-de-açúcar, cultivada há séculos sem adubação, mantendo uma certa produção constante. Em 1959, houve um congresso de solos de que participei, e vários outros cientistas presentes também acharam isso estranho. Aí, quando apresentei meus dados sobre a ocorrência de bactérias em cana-de-açúcar, eles ficaram desconfiados e acharam estranho que aqui no Brasil, uma região de clima tropical, houvesse bactérias fixadoras de N2 habitando as raízes das plantas. Mas havia uma razão lógica para o fenômeno. Uma bactéria só cresce, em meio de cultura, a uma temperatura mínima de 25 graus centígrados. Melhor sempre é uma temperatura de 30-35°C. Mas essa temperatura praticamente não ocorre nos solos de regiões temperadas como os Estados Unidos e a Europa. Nas regiões tropicais, por outro lado, isso seria muito mais provável. No entanto, na ocasião em que apresentei o trabalho, a incredulidade foi geral. O pessoal me chamou até de visionária porque havíamos descoberto uma bactéria nova - a Beijerinckia fluminensis - que se associava com a cana-de-açúcar. Ninguém havia notado isso antes, e nós fizemos aqui pela primeira vez, com métodos muito rudimentares e simples. Até hoje, quando já temos descritas quatro novas bactérias e mais duas ou três em estudo, meus trabalhos suscitam alguma incredulidade. Naquela época o pessoal me gozava, acho que ninguém realmente me levava a sério, porque não existia na literatura qualquer descrição da associação entre bactérias fixadoras do nitrogênio e plantas superiores. Surgiu então a oportunidade de fazer um curso de pós-graduação nos Estados Unidos. Eu fui então para a Universidade de Wisconsin com meu marido, que obtivera também uma bolsa de estudos. Ficamos dois anos, e comecei a trabalhar com leguminosas.
Qual foi o período em que você esteve nos Estados Unidos?
1961 a 1963.
Antes de ir para lá você já tinha um pequeno grupo trabalhando com as bactérias das gramíneas?
É, já tinha, mas lá não fiz nada em gramíneas porque meu orientador em Wisconsin não queria saber de nada disso. Apesar de ter grande renome, ele não me ensinou muita coisa. Sempre digo que a única coisa que aprendi com ele foi fazer rolhas de algodão, muito usadas no laboratório. Eu tinha, naquela época, uma mentalidade bastante forte, e fui realizando o trabalho apesar de tudo. Meu orientador viajava muito. Um dia, após uma ausência de quatro meses, ele voltou e a tese estava pronta. Ele ficou possesso, mas se fechou em seu escritório durante dois dias para lê-la. A tese já estava inclusive datilografada... Vi-o na defesa da tese, onde apenas corrigiu três vírgulas, e mais nada.
Agora uma outra questão, esta de caráter mais gera/: você chegou aqui com vinte e poucos anos, portanto com formação basicamente europeia. Qual foi o choque cultural que você sentiu?
Bem, acho que choque eu nunca senti. Há uma diferença muito grande entre uma pessoa que vai voluntariamente para um país e aquele que vai forçado. Nós fomos expulsos da Tchecoslováquia, e meu pai não queria viver na Alemanha de maneira alguma. Então ele se candidatou a emigrar para os Estados Unidos, mas não foi aceito porque pensaram que ele era alemão, o que não era verdade: ele era tcheco. Mas aí meu pai era muito amigo do professor Fritz Feigl e de Hans Zocher, que conseguiram que ele viesse para o Brasil. Eles eram muito ligados ao meu pai, muito amigos, e conseguiram um contrato para ele no Departamento de Produção Mineral. Ele veio em 1948, com um otimismo tremendo, e sempre dizia: "escolhi o Brasil porque quero fazer deste país a minha pátria." E nós viemos também. Eu vim com essa decisão - não tinha outra escolha e aceitei o Brasil como minha pátria, como meu país. E nunca tive qualquer choque cultural, a não ser no início, quando fui discriminada algumas vezes como estrangeira.
Mas quando falo choque, não quero dizer atrito. O choque a que me refiro é uma coisa diversa: transferir-se para um lugar em que tudo é diferente: hábitos, modo de vida, costumes, cozinha, tudo diferente...
A isso a gente se acostuma. Quando cheguei, vim realmente com essa intenção, a de tomar o Brasil como minha pátria. Logo de início pensei em me naturalizar, ficar aqui definitivamente. Mas de vez em quando, no início, alguns colegas não me viam assim: "Ela não é nossa, não é daqui..." Isso me doía bastante. Eu tentei sempre ser o mais brasileira possível, tentei não ser diferente, tentei me ajustar.
Você, na década de 1950, devia ser uma das poucas mulheres trabalhando em pesquisa no Brasil, pelo menos em relação ao número de homens. Isso lhe causou alguma dificuldade?
Acho que nunca. Até hoje, de vez em quando, paro e penso: engraçado, no trabalho jamais alguém me fez sentir que sou mulher.
Um dos pontos que me impressionam é seu conhecimento de bioquímica, por exemplo. Onde é que você aprendeu bioquímica? Não foi na Alemanha...
Não, eu não aprendi bioquímica, não entendo isso...
Sim, mas você sabe a bioquímica necessária para o que faz o que é uma coisa importantíssima.
Bom, sei a base. Fiz um curso de bioquímica durante o mestrado nos Estados Unidos, assim como de genética. Atualmente, faço questão de saber o suficiente para poder ler e discutir com os bioquímicos, mas jamais poderia programar e executar eu mesma uma linha de pesquisa independente em bioquímica, pois minha formação é agronômica. A gente sente que os bioquímicos geralmente acham que eles tem uma cultura científica superior. Está certo, eles sabem coisas que nós não sabemos, mas o agrônomo também sabe coisas que os bioquímicos não sabem. Infelizmente há um certo senso de superioridade, não só dos bioquímicos mas também dos geneticistas, julgando que quem não entende de genética ou de bioquímica não é cientista. Talvez, a minha vantagem seja o fato de que eu tentei entender o suficiente para poder discutir, enquanto a maioria dos agrônomos não se preocupa com isso. Mas essa situação é julgada de modo estereotipado. Eu entendo isso, mas sempre reajo
Acho muito justa essa sua reação: uma das coisas que nunca pude aceitar é esse senso de superioridade de uma instituição ou de uma disciplina em relação à outra.
Eu acho que cada uma tem suas características. Mas o problema é difícil. Os dois grupos - geneticistas e agrônomos - não se entendem. Os geneticistas fazem genética, os agrônomos, agronomia, e não há nada intermediário. Talvez um dos segredos de nosso sucesso tenha sido o de procurar conciliar o pessoal da bioquímica e da genética com os agrônomos, tentando fazer uma ponte entre as disciplinas.
Você se considera uma cientista básica ou uma dentista aplicada?
Aplicada.
Eu tenho minhas dúvidas. Não vejo diferença entre a ciência básica e a aplicada.
Bom, deixe-me explicar. Eu sou uma cientista aplicada. Mas faço questão de dizer que o cientista aplicado também é um cientista. Tanto a pesquisa básica como a ciência aplicada são ciências. O cientista básico e o aplicado são a mesma coisa, ambos têm o seu valor.
Sim, há uma continuidade. Uns são mais aplicados e outros são menos aplicados, mas acho que, no seu caso, por exemplo, não sei onde é que termina a ciência básica e a aplicada. Você é, ao mesmo tempo, uma cientista básica e uma cientista aplicada. Eu não vejo como você vai fazer aplicação sem ter o conhecimento básico.
Outro dia o presidente da Embrapa formalizou isso muito bem. Declarou que a Embrapa é, hoje em dia, uma instituição que deve apoiar e financiar pesquisas que resolvam problemas, independentemente de serem básicas ou aplicadas. Começa-se com o problema e desenvolve-se uma pesquisa para solucioná-lo.
Você não sente na Embrapa a ausência de alunos? Você não dá cursos, não é?
Não dou cursos regularmente, mas sinto falta disso. Um professor tem obrigação, muito mais que nós, de se manter atualizado. Como tem que dar aula, ele deve estudar para cada aula, o que é positivo. Isso realmente eu acho que é uma falha em minhas atividades: eu estaria muito mais em dia se tivesse que dar aulas. Mas há um outro lado: eu colaboro com cursos de pós-graduação da Universidade Rural e do inpa- Instituto Nacional de pesquisas da Amazônia dando algumas aulas por ano. O nosso grupo tem atualmente 12 alunos bolsistas de iniciação científica, cinco alunos bolsistas de aperfeiçoamento e dez alunos de pós-graduação. Além disso, julgo cerca de cinco teses por ano, ou seja, muito mais que muitos professores das universidades.
Qual é a ligação entre a Embrapa e a Universidade Rural?
É uma ligação muito engraçada, que já existe há uns dez anos e que nunca foi ratificada. Sempre colaboramos com o núcleo do departamento de agronomia da universidade, sempre demos aulas nos cursos de pós-graduação e sempre colaboramos com a orientação de estudantes. Meu laboratório é cheio de estudantes, mais do que muitos laboratórios de uma universidade.
Quais são as reais perspectivas que você vê, economicamente, para a utilização de bactérias fixadoras de nitrogênio?
Não é mais uma perspectiva, é realidade. Muitas coisas já são realidade atualmente. Só para dar um exemplo, vou citar o caso da soja. Em 1963, justamente quando voltei dos Estados Unidos, a soja entrou no Brasil. Nessa ocasião, fundaram a Comissão Nacional da Soja e eu fui chamada a participar. Naquela época, os geneticistas da comissão, todos com formação norte-americana, achavam que trabalhar com bactérias era brincadeira de cientista, não tinha aplicação nenhuma. O melhoramento genético da soja nos Estados Unidos foi feito com adubação nitrogenada em cima. Então eles melhoraram a soja que respondia melhor à adubação. Mas eu reagi. Nas reuniões da comissão da soja, composta por vários melhoristas formados nos Estados Unidos, tivemos uma discussão muita forte tentando convencê-los a fazer o melhoramento da soja sem adubo nitrogenado - que era muito caro para o Brasil - e com a aplicação de bactérias, o que consegui. Na Comissão do Feijão, no entanto, não conseguimos convencê-los. Hoje em dia, a soja, como todos reconhecem, não precisa de adubo nitrogenado. O feijão, por outro lado, tem que ser adubado, com todos os problemas técnicos e econômicos que se conhece. A soja, devido à decisão tomada pela Comissão Nacional da Soja em 1964, foi selecionada e melhorada para produzir muito sem adubo nitrogenado, aproveitando a simbiose entre as bactérias e as raízes da planta. Com isso, calculando de modo muito conservador, o Brasil está economizando anualmente cerca de um bilhão de dólares. Mas ainda, se naquela época os melhoristas tivessem ganho a discussão e a soja tivesse sido melhorada com adubo, provavelmente o Brasil jamais poderia competir no mercado internacional do produto. O preço barato da soja brasileira, hoje em dia, é função desse simples fato. Já o caso dos cereais é mais difícil. Nos cereais, a associação com as bactérias fixadoras do nitrogênio é muito menos perfeita, muito mais primitiva. Sabemos que cerca de 10 a 30% do nitrogênio que o milho, por exemplo, incorpora, provêm da fixação biológica. Mas a coisa é mais complicada, e ainda não conhecemos suficientemente os mecanismos envolvidos.
Você acha possível que a chamada engenharia genética possa desenvolver bactérias mais eficientes para a fixação de nitrogênio nas gramíneas, ou isso depende mais da planta que da bactéria?
É difícil ainda dizer alguma coisa segura. Nós obtivemos dados bem mais promissores do que pensávamos com uma das bactérias novas com que estamos trabalhando. Mas a maior chance de sucesso é trabalhar para melhorar os dois. Como não acredito em coisas espetaculares em ciência, que surgem de um dia para o outro, devagarinho vamos melhorando a bactéria e melhorando a planta. O sistema das gramíneas, entretanto, é um sistema muito menos perfeito que o da soja; por isso, não acredito que possamos chegar ao ponto de suprir todas as necessidades da agricultura através de nossas pesquisas.
Seu trabalho atual na Embrapa sofre os efeitos da crise econômica do Brasil?
Não, por enquanto ainda não. A última palavra que tive dos dirigentes da Embrapa foi: "Não esquente a cabeça com dinheiro." Não tivemos nenhum corte, e espero que continue assim.
Uma pergunta indiscreta: você é dos cientistas que pedem mais para conseguir o justo?
Eu tenho fama de ser justa demais... Todo mundo vive reclamando que, no meu laboratório, jamais entrou um equipamento que não tenha funcionado na semana seguinte...
A importância econômica de seu campo de trabalho se reflete no financiamento? Ou seja: você recebe mais verba para trabalhar em um tema de grande relevância para a agricultura e a economia do país?
Sem dúvida alguma. Eu disse isso quando dei o exemplo da soja. O que talvez tenha mudado, nestes últimos anos, em relação à década de 1960, é que os dirigentes também se conscientizaram do impacto que a pesquisa pode ter. Isso não era sempre reconhecido.
Mudando completamente de assunto: como é que você concilia suas atividades científicas com a sua atividade de dona de casa e agora avó?
Dona de casa, acho que sou péssima, pois sempre tive a sorte de ter uma boa empregada que toma conta da casa integralmente. Já como mãe e avó me considero bem-sucedida. Tenho três filhos, todos formados, um fazendo um curso de pós-graduação na Inglaterra, o outro já de volta ao Brasil, após sua pós-graduação no exterior, a menina já casada... Tive muita sorte em trabalhar no quilômetro 47. Lá, eu sempre ia para casa na hora do almoço, e à noite também ficava em casa. Estava sempre perto das crianças e, por isso, mesmo trabalhando podia acompanhá-los melhor. Eu sempre senti que podia dar mais a meus filhos por não estar sempre com eles. Jamais tive vontade de passar férias sem meus filhos, nunca enjoei deles. Conheço muitas mães que, ficando o dia inteiro com as crianças, enjoam delas, desgastam-se e acabam com raiva dos filhos. Posso falar com consciência que não houve um segundo em minha vida em que ficasse enjoada dos meus filhos. Isso porque não tinha a obrigação de ficar o dia inteiro com eles. Vestia-os de manhã, dava-lhes o café e ia trabalhar. Almoçava com eles, punha-os para dormir depois do almoço e ia de novo trabalhar. Cuidava deles, mas nunca ficava o dia inteiro com eles.
Você se apresentou extremamente brasileira, mas sua vida de garota foi passada na Europa. Você se lembra de sua infância em Praga? Não tem às vezes reminiscências saudosas daqueles tempos?
Sinto a mesma coisa que todo mundo. Tive duas vezes a oportunidade de voltar a Praga, uma em 1970, outra no ano passado. Talvez por ser uma cidade da Europa oriental, Praga não mudou nada. Senti um enorme prazer em revê-la. Mas nunca senti, como muitos refugiados, vontade de voltar definitivamente. Jamais penso nisso. Praga representa para mim o mesmo que Belo Horizonte representa para um mineiro que vive no Rio. É bem verdade que nas duas vezes que fui lá foi um "matar saudades" tremendo. Consegui visitar o lugar onde morava, entrar na casa de minha avó, verificar que ela se conservava igual a meus tempos de garota. Peguei o bonde número treze que me levava à escola. Não tenho aquele complexo que muitas pessoas expulsas da Tchecoslováquia tem, quando pensam: "Fui expulsa de lá, e logo que puder voltarei."