Entrevista a Roberto Lent (Instituto de Biofísica, UFRJ).
Midia
Part of Entrevista Haity Moussatché
Publicada em maio/junho de 1983.
Haity Moussatché nasceu em 1910 na Turquia, e veio para o Brasil ainda criança. Aqui, diplomou-se médico pela Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1933. Começou a trabalhar em fisiologia (disciplina que estuda os processos de funcionamento dos organismos vivos), como monitor, ainda durante o curso médico, e só foi contratado pelo Instituto Oswaldo Cruz em 1937, já com anos de trabalho naquela instituição. No Instituto Oswaldo Cruz teve uma carreira de quase quarenta anos. Foi chefe da seção de farmacodinâmica, e depois da de fisiologia entre 1958 e 1964. Teve seus direitos políticos cassados, junto com outros nove pesquisadores de Manguinhos, em 1970, num rumoroso processo de perseguição política que abalou os meios científicos e culturais do país. Desde 1971 é professor da Universidade Centro-Occidental, em Barquisimeto, Venezuela, onde formou nos últimos dez anos um laborioso grupo de pesquisa. É autor de cerca de duzentos trabalhos científicos em farmacologia, bioquímica e fisiologia.
Dr. Moussatché, quando o senhor começou a trabalhar no Instituto Oswaldo Cruz no início da década de 1930, como era o ambiente científico, quais eram as personalidades, o que o impressionava mais?
Bem, o ambiente, naquela ocasião, era muito restrito. Contavam-se pelos dedos as pessoas que faziam pesquisa. Em fisiologia, os pioneiros foram dois irmãos, Álvaro e Miguel Ozório de Almeida. Eles trabalhavam num laboratório improvisado no galpão de uma casa da rua Machado de Assis, no bairro do Catete, Rio de Janeiro. O laboratório era particular, e era mantido pelo industrial Cândido Gaffré. Álvaro e Miguel Ozório, muito produtivos, já tinham vários estudantes de medicina trabalhando com eles no galpão da rua Machado de Assis quando Carlos Chagas, então diretor do Instituto Oswaldo Cruz, teve em 1919 a ampla visão de convidar Miguel Ozório a organizar o primeiro laboratório de fisiologia numa instituição oficial. Foi desse laboratório precursor que se originou a fisiologia brasileira.
Como era nessa época, em Manguinhos, a captação de recursos, o financiamento da atividade cientifica?
Bem, esse era um problema sério. No Instituto Oswaldo Cruz, naquela época, não havia verbas especificamente destinadas às linhas de pesquisa. O dinheiro proveniente do governo federal destinava-se a objetivos imediatistas, como a fabricação de vacinas etc. Esse dinheiro era - por uma "química", como se dizia - utilizado para a pesquisa fundamental pelo Instituto, pois não havia por parte do governo (nem há atualmente, não é?) a compreensão exata da importância da pesquisa básica para o país. E havia também dinheiro proveniente da venda aos fazendeiros da vacina contra a peste da manqueira que assolava o gado, descoberta e fabricada no Instituto. Essa verba era parcialmente utilizada em pesquisa básica, livre de restrições governamentais.
A ascensão de sua geração à linha de frente no Instituto, aí pela década de 50 e início dos anos 60, coincidiu com a estagnação e depois declínio da instituição. Apareceram outros grupos que tinham uma visão completamente diferente do que devia ser o Instituto, o que ocasionou uma série de choques que redundaram na cassação dos direitos políticos de dez pesquisadores - inclusive o senhor - em 1970. Como vê esse processo?
É complicado. Não estou completamente de acordo com a idéia de que o Instituto Oswaldo Cruz havia entrado em declínio. Isso não é verdade. O Instituto teve uma fase heróica, a fase de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, em que se descobriram doenças e mecanismos patológicos, desenvolveram-se vacinas e processos terapêuticos, tudo com grande impacto social. Depois passou-se a investigar questões que não produziam manchetes de jornal, mas que eram igualmente importantes para a ciência. Da fisiopatologia da leishmaniose, a doença parasitária descoberta por Gaspar Vianna, passou-se à crioepilepsia, ou seja, às crises convulsivas produzidas em rãs por resfriamento da medula espinhal. Na época das cassações não havia declínio, mas sim um verdadeiro florescimento, com muitos laboratórios ativos, o de Walter Oswaldo Cruz, o de Gilberto Villela, o de Herman Lent, o meu próprio, e outros mais. Todos com muitas publicações, muitas linhas de trabalho, muitos estudantes. E a prova disso é que em várias instituições do país, como o Instituto de Biofísica, a Escola Paulista de Medicina, a Universidade de Brasília e outras, encontram-se pesquisadores que começaram naqueles laboratórios de Manguinhos.
Na década de 60 falava-se muito na idéia de criação do Ministério da Ciência, que foi defendida pelo senhor e outros tantos como a possibilidade de um avanço na estruturação do apoio à pesquisa no Brasil. Como vê hoje essa idéia?
Bem, esse foi um assunto muito polêmico. Algumas pessoas achavam que a criação de um Ministério da Ciência iria burocratizar o trabalho científico e seu financiamento. O cargo seria político, as verbas portanto não seriam tão bem utilizadas como o eram no Conselho Nacional de Pesquisas, que havia sido criado em 1952. Eu ainda sustento a idéia. Acho que o ministério seria útil, não tenho medo dessa chamada burocratização. O ministério elevaria o status da ciência nas esferas de governo, e poderia coordenar menos dispersivamente o apoio à ciência, que atualmente se faz de modo desigual em vários órgãos diferentes. Já naquela época prevíamos o que ocorreu depois com o CNPq. O presidente do CNPq, inicialmente o almirante Álvaro Alberto, reportava-se diretamente ao presidente da República. Depois de 1964 passou a reportar-se ao ministro do Planejamento, e atualmente comunica-se apenas com o secretário de ciência e tecnologia da Seplan. O Ministério da Ciência pelo menos manteria institucionalizado o acesso aos mais altos foros do governo, como ocorreu nos países que o criaram depois daquela proposta.
Na ocasião em que esse debate estava ocorrendo houve o movimento de 1964, e alguns anos depois o período de "caça às bruxas" que redundou na cassação dos dez de Manguinhos. Como o senhor descreveria aquele período?
Os laboratórios chefiados por pessoas que se opunham às diretrizes com que era conduzido o Instituto foram sendo marginalizados, depois hostilizados e boicotados, e por fim tiveram seus chefes afastados do Instituto. As verbas escassearam, os jovens não viam mais perspectivas e procuravam outras instituições. O laboratório de Walter Oswaldo Cruz foi fechado, e seus assistentes se dispersaram por outros centros de pesquisa. Na verdade, o que houve de grave naquela ocasião não foi a nossa cassação, o nosso afastamento. Mal ou bem, nós continuamos, seja em outros países que nos acolheram, seja mesmo em outras instituições no Brasil. O grave foi o fechamento de nossos laboratórios, a dispersão dos estudantes, a destruição de décadas de trabalho paciente de construção e formação de pessoal. A divisão de fisiologia, fruto do espírito visionário de Carlos Chagas, foi eliminada, simplesmente deixou de existir, situação que perdura até hoje.
Quais têm sido os temas de seu trabalho de pesquisa em fisiologia, ao longo destes anos?
Olhe, não é fácil descrevê-los todos. Eu comecei com Miguel Ozório de Almeida, investigando o fenômeno da crioepilepsia, já mencionado. Isso nos tomou alguns anos. Para explicar este e outros fenômenos, passei a me interessar pelos mediadores químicos da transmissão sináptica, ou seja, pelas substâncias que transferem a informação de uma célula nervosa a outra. A acetilcolina, por exemplo. A pesquisa científica é curiosa: quando você resolve um problema, aparecem outros sete que te atraem e levam a outros campos. Por isso meu trabalho se desviou para o estudo do choque anafilático na cobaia, isto é, a violenta reação imunitária que pode provocar a morte. Isso me levou a problemas de imunologia, imunofarmacologia, e por fim acabei tentando até mesmo umas experiências em psicologia experimental. Quando saí do país e fui trabalhar na Venezuela, comecei estudando certos venenos de cobras como a cascavel e a jararaca. Soubemos pela literatura especializada que o gambá, tão comum no Brasil, é resistente ao veneno dessas cobras. Interessou-nos saber por que, e conseguimos isolar uma fração protéica do soro do gambá que protegia outros animais, como por exemplo o camundongo, contra o veneno da jararaca. E isso naturalmente deu origem a uma quantidade enorme de problemas: isolar e purificar a fração ativa do soro. Desejamos conhecer sua estrutura.
Existem várias razões que movem a curiosidade do cientista, não é? E os cientistas são muito diferentes: alguns passam anos e anos no mesmo campo, pesquisando um mesmo problema de degrau em degrau. Outros são mais dispersivos, espíritos mais lúdicos; sua vida científica é mais irregular, ziguezagueante. Como o senhor se vê quanto a isso?
Bem, eu certamente me coloco nessa segunda categoria. Além disso, acho que no Brasil, como nos demais países subdesenvolvidos, o pesquisador deve ter mais de uma área de trabalho, porque não é raro que você encontre dificuldades insuperáveis numa área, e nesse caso tem a opção de mover-se a outro campo no qual já iniciou algo. Enquanto espera um aparelho importado, que leva anos para chegar, continua trabalhando em outro assunto.
Existem diferenças de responsabilidade social entre cientistas de países desenvolvidos e os de países como o nosso, do Terceiro Mundo?
Acredito que a responsabilidade social do pesquisador seja a mesma em qualquer país. O contínuo desenvolvimento científico faz aparecer a todo momento temas que exacerbam a consciência da responsabilidade social do cientista. É o caso da física nuclear, bem conhecida sua evolução histórica. E é o caso, mais recente, da engenharia genética. As descobertas feitas nessa área, hoje de tanto interesse, podem ser utilizadas socialmente de várias maneiras, às vezes com conseqüências bastante graves para a humanidade. Frente a isso, todos os pesquisadores do mundo têm igual responsabilidade. O cientista é um profissional essencialmente ético, porque a base da investigação científica é o respeito à verdade. É claro, no entanto, que o cientista é um ser humano como qualquer outro, e embora a lógica de seu trabalho seja o ideal da busca da verdade, nem sempre ele se conduz irrepreensivelmente dentro dessa trilha. Todos sabemos que têm havido denúncias de fraudes científicas, plágios, relatos de resultados falsos. Esses fatos deploráveis resultam tanto das fraquezas humanas de que o cientista não se pode livrar como de uma estrutura acachapante que às vezes pressiona o pesquisador a publicar seus resultados o mais rápido possível, a qualquer custo. É publicar ou morrer. Mas de modo geral acho que a maior parte da comunidade científica segue os princípios éticos mais autênticos do trabalho científico, mesmo porque todo resultado da pesquisa de um investigador será replicado mais cedo ou mais tarde por algum outro pesquisador, e confirmado ou negado. Ao longo do tempo, a verdade acaba se estabelecendo, apesar de tudo.
Os cientistas socialmente responsáveis reivindicam participar do planejamento e execução da política científica do país. Isso significa descobrir qual a política científica mais apropriada ao Brasil?
Transfiro a pergunta ao senhor: como é que a ciência de um país pode avançar mais rapidamente? Bem, costuma-se apontar duas maneiras antagônicas: uma política científica dirigista, voltada para a resolução de certos problemas, contra uma política científica liberal, multidisciplinar, sem metas. Eu não as vejo como antagônicas. Ao contrário, acho que devem coexistir. Nosso país deve ter um orçamento para a ciência que nos permita fazer as duas coisas simultaneamente. Ninguém pode pôr em dúvida que devemos ter metas prioritárias para resolver problemas de impacto social. Não há dúvida de que devemos avançar na criação de uma tecnologia do álcool combustível para diminuir nossas importações de petróleo. O que é imperdoável é considerar que apenas essas questões merecem nosso esforço científico. É imperdoável porque já está mais que demonstrado que de uma pesquisa aparentemente diletante pode surgir um enorme significado social. Quem pensa que se deve aplicar todo o orçamento da pesquisa científica em problemas "prioritários" não está fazendo mais que obrigar o Brasil a continuar sempre na retaguarda da investigação básica e tecnológica e, portanto, a permanecer uma economia dependente.