Entrevista a Gilberto Velho (Museu Nacional e UFRJ), César Benjamin e Cilene Vieira Areias (Ciência Hoje).
Midia
Part of Entrevista Gilberto Freyre
Publicada em maio/junho de 1985.
Gilberto Freyre é sem dúvida um dos maiores nomes das ciências sociais no Brasil. No entanto, o reconhecimento do impacto revolucionário de sua obra -notadamente de Casa grande & senzala, de 1933 — nem sempre tem sido fácil, especialmente entre as gerações mais jovens. No aspecto formal, sobressai dela um estilo próprio e original, marcado por uma irreverência bem pouco convencional no tratamento de assuntos variados e por uma técnica expositiva que valoriza o talento e a improvisação. Quanto ao conteúdo, basta dizer que este e outros trabalhos seus — como Sobrados e mocambos de 1936 — abriram áreas praticamente virgens de investigação no Brasil. Inauguraram nova temática e adotaram pontos de vista até então desconhecidos no país. Transformaram o cotidiano em objeto relevante para a ciência social, tratando, com franqueza inusitada para a época, de aspectos sexuais da vida familiar, da contribuição do escravo na formação da cultura brasileira, da alimentação, da raça. Foi ele o introdutor, entre nós, da antropologia cultural desenvolvida no início do século nos Estados Unidos. Se cientistas sociais brasileiros podem pesquisar hoje, com legitimidade, a condição da mulher, as minorias sexuais, o espaço doméstico, família e parentesco devem muito ao seu trabalho, mesmo que não o saibam. Sua obra é polêmica. Tanto no Brasil como no exterior, recebeu fortes críticas. Uns fizeram restrições à sua preocupação com a sexualidade. Outros, sempre recriminaram sua visão de uma sociedade em que predominam mecanismos de acomodação e conciliação. Ninguém poderá negar, no entanto, que seus trabalhos oferecem rico material para o estudo da cultura brasileira.
Nascido em 1900, filho de um professor de economia da Faculdade de Direito de Recife, sua cidade natal, Gilberto Freyre fez seus estudos universitários nos Estados Unidos. Em 1922, defendeu em Columbia sua tese de mestrado: Social life in the middle of the 19th century. A escravidão já aparecia como objeto privilegiado de sua atenção. De volta ao Recife no ano seguinte, organizou o I Congresso Brasileiro de Regionalismo, lançando o Manifesto Regionalista, cuja orientação influenciou uma série de escritores nordestinos. Segundo ele, seu próprio estilo literário foi marcado pela "revolução sócio-linguística" representada pelo imagismo dos países de língua inglesa.
Professor de universidades no Brasil e no exterior, homem de imprensa, escritor, deputado à Assembléia Nacional Constituinte de 1946, representante do Brasil na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1949, conferencista, Gilberto Freyre chegou aos 85 anos considerando-se um "anarquista construtivo". E produzindo. Sua obra mais marcante porém, segue sendo aquela que escreveu com pouco mais de 30 anos, Casa grande & senzala, reeditada 23 vezes em português e traduzida para o espanhol, inglês, francês, alemão e italiano.
Vamos conversar um pouco sobre sua formação universitária em Baylor e em Columbia, nos Estados Unidos. Você conheceu a época gloriosa de Columbia, não é?
Saí do Brasil menino ainda, em 1918, depois de ter frequentado, no Recife, uma escola secundária que mantinha ligações com a universidade norte-americana de Baylor, para onde fui fazer o curso superior. A partir daí, eu poderia ter feito uma opção a favor de Yale, de Harvard ou de Princeton. Mas, já possuía nessa época uma intuição que me levava a pensar na antropologia como a grande área de estudo das ciências do homem. Não como uma área meramente acadêmica, mas profundamente ligada à vida, à economia, ao cotidiano, às coisas aparentemente sem importância. E em Columbia eu pude encontrar o maior dos antropólogos de língua inglesa de todos os tempos, Franz Boas. Embora Malinowsky viesse alterar depois alguma coisa da minha orientação antropológica, sempre considerei algo fora do comum encontrar, numa universidade, um mestre como Boas. Não era exatamente um bom didata, pois o próprio aluno precisava sugar, fora da cátedra, tudo o que ele tinha para dar. Além disso, sua origem alemã ficava perfeitamente marcada na má dicção. Mesmo assim, cada aula sua era para ser ouvida de orelha em pé, sem perder uma vírgula. Tivemos um relacionamento extra-cátedra muito bom, o que foi valioso para mim e para colegas como Margaret Mead, Heskowits e Ruth Benedict, que considero a maior de todos da minha geração.
Boas formou uma constelação de grandes antropólogos de diversos países do mundo, realizando uma revolução que me interessava especialmente. Estudar com ele foi fundamental para meu modo de ser antropólogo e meu interesse pelo Brasil dentro desta perspectiva. Na época, ele já realizara sua célebre pesquisa sobre formas do crânio, que garantia a não existência de inferioridade das demais raças em relação ao homem branco. Ora, desde que deixei o Brasil, eu padecia do complexo dominante entre nós, o da superioridade e inferioridade de raças. Saíra daqui sob o impacto de dois sociólogos, um francês, Gustave Le Bon, e um argentino, em grande voga no Brasil, José Ingenieros. Para eles, não havia nenhuma dúvida sobre a inferioridade do mestiço. Não havia salvação para um país de mestiços.
Outro mestre de quem aproveitei muito foi o sociólogo Giddings, cujo domínio da língua inglesa fazia com que suas aulas fossem verdadeiras obras de arte, para serem apreciadas também pela beleza e pela estética.
Depois de conviver em Columbia com o que havia de mais importante na ciência social da época, você voltou ao Brasil ainda na primeira metade da década de 1920 e ficou relativamente isolado. Durante algum tempo, a compreensão do que você já havia produzido foi muito fragmentada. Como é que você vê isso em termos da história da ciência social no Brasil?
Houve uma verdadeira rejeição ao que eu representava. Pelo padrão acadêmico brasileiro, eu não era sequer considerado como formado em curso superior...
Mas, você tinha o mestrado...
Ninguém aqui sabia o que era mestrado, coisa típica dos países anglo-saxões. Não vingava nem na Europa continental, embora lá o reconhecessem como equivalente ao doutorado em ciências do homem ou em letras. Mas no Brasil de 1923, quando cheguei, não havia ainda nenhuma noção do que fosse universidade. Sempre me perguntavam: "Formou-se em direito?" Eu dizia não. "Formou-se em engenharia?" Não. "Formou-se em medicina?" Não. "Mas, então, que diabo você fez com o dinheiro do seu pai no estrangeiro?" Eu não tinha a menor vontade de explicar nada: "fiz umas bobagens, estudei umas coisas..." No terreno da antropologia, só existia a antropologia física. Tudo isso concorreu para que eu vivesse uma fase de "monstro" rejeitado e ignorado.
Quando chegou, você não encontrou nenhum interlocutor com quem pudesse dialogar?
Imediatamente, não. Mas, logo descobri um: o grande Roquette Pinto, que ficou pulando de contente por eu ter voltado ao Brasil com esta formação. O outro, que mais tarde me levou para o Rio, foi o Anísio Teixeira, cuja história é interessante. Ele havia sido quase padre jesuíta, mas, depois de largar a batina, não se transformara em antijesuíta demagógico. Também estudara em Columbia, no Teachers College, cuja pedagogia eu considerava um tanto messiânica, o que me causava alguma desconfiança. Ademais, ele sofreu grande influência do Dewey, que me parecia um pouco demagógico, no bom sentido desta palavra. Mas, Anísio e Roquette foram meus primeiros interlocutores no Brasil.
Os europeus, por outro lado, se interessaram muito por um não-europeu que começava a se tornar presente nos estudos sociais, baseando-se em um mundo mestiço. Daí surgiram convites de grandes universidades da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Espanha e de Portugal. Quando Portugal me descobriu, foi como se eu tivesse caído da Lua. Eles estavam quase complemente ignorantes em sociologia e antropologia modernas. Columbia e Stanford, nos Estados Unidos, também me convidaram para professor-visitante, logo depois que eu fui vítima da Revolução de 1930.
Foi aí que você redigiu, em forma definitiva, Casa grande & senzala?
Exato. Minha família foi escorraçada, por minha causa, durante a chamada Revolução de 30. Apesar de não pertencer a partidos e não desejar fazer carreira política - nem eleitor eu era - tornei-me uma espécie de orientador intelectual do governador Estácio Coimbra, de Pernambuco. Sendo solteiro, morava com meus pais, cuja casa foi roubada e incendiada durante a revolta. Um senhor roubo, a caminhão, que não deixou nada: vestes, pratas, móveis, joias, tudo. Estácio Coimbra me fez então um apelo para segui-lo ao exílio, e eu não pude deixar de ir. Não tinha literalmente nada, nem muda de roupa, nem dinheiro. Sabia apenas que necessitava começar tudo de novo, a partir de uma situação muito precária. O que se passou depois só se explica pela intervenção de um anjo da guarda.
Toda a ciência antropológica que eu tinha dentro de mim teria que servir para um futuro livro, que eu ainda não sabia como seria. Lá pelas tantas, o navio em que viajávamos para o exílio aportou em Dacar, no Senegal, e, apesar das dificuldades, fiquei deliciado com a oportunidade de conhecer o local. Pedi então a alguns pesquisadores franceses para fazer umas excursões, de modo que pudesse entrar em contato direto com as sociedades tribais africanas dessa área. Alguns nativos já falavam francês, mas muita gente ainda andava nua e só falava dialetos, pois os colonizadores estavam, de certa forma, tentando respeitar costumes tribais. Tomei muitas notas, mas não sabia para quê. Chegando depois a Lisboa, frequentei arquivos, o Museu Etnológico e a Biblioteca Nacional, sempre fazendo anotações sem saber exatamente o que faria com elas. Lá pelas tantas, para minha completa surpresa, recebi um comunicado da embaixada brasileira dando conta de um cabograma da Universidade de Stanford, que me remetia certa quantia em dinheiro e um convite para tornar-me professor visitante da instituição, com regalias extraordinárias. Eu tinha 30 anos, vejam só, e deveria dar um curso de graduação e outro de pós-graduação. Lá chegando, encontrei um geólogo que eu havia ajudado tempos antes, traduzindo-lhe um texto sobre a geologia do Brasil. Acho que foi por influência dele que fui convidado. Era um grande scholar, cientista e humanista, que possuía talvez a maior coleção brasiliana fora do Brasil. Parecia que ela estava à minha espera. Metido ali é que me veio a ideia de Casa grande & senzala.
Você retornou ao Brasil em 1933, e participou depois da criação da Universidade do Distrito Federal, não é?
Anísio Teixeira tinha aproximadamente a minha idade, e voltara ao Brasil decidido a trabalhar pela criação entre nós de um verdadeiro centro de estudos universitários. Em 1935, realizou, a meu ver, a mais séria tentativa de criação de uma universidade até hoje em nosso país, a Universidade do Distrito Federal. Ele também tinha um certo traquejo em administração no Brasil, pois, assim como eu em Pernambuco, fora chamado, antes de 1930, para assessorar intelectualmente o governador da Bahia, Góes Calmon. Para criar a nova universidade, ele contou com toda a força, os recursos e o prestígio do então prefeito do Distrito Federal, o pernambucano Pedro Ernesto.
Anísio deslocou-se até o Recife para me convidar a assumir a cadeira de sociologia. Do nosso encontro resultou a criação da primeira cadeira de antropologia sóciocultural no Brasil, precedida na América Latina apenas pela que Manuel Gamio, também discípulo de Boas, fundara antes no México. Inauguramos também a cadeira de sociologia, e começou uma grande fase para mim. Anísio me deu todo o apoio, e tive estudantes magníficos, como Hélio Beltrão, Lúcia Miguel Pereira e Heloísa Alberto Torres. Na universidade, me vi cercado por vários outros professores, digamos assim, "baianos", quer dizer, cheios de flama oratória, como o próprio Hermes Lima. Houve certa relutância em me aceitar porque eu dava aulas em tom de conversa, mas não mudei meu estilo. A mocidade acabou aderindo a mim, o que foi uma das grandes vitórias que tive na vida. Em cada aula, os estudantes já tinham podido consultar a gravação da anterior, o que propiciava muita conversa, com inteira liberdade de ideias. As fitas dessas discussões travadas em sala, serviram-me para a elaboração do livro Sociologia: Introdução ao estudo dos seus princípios, que foi muito perseguido pelo patrulheirismo ideológico submarxista. Eu digo sub, porque tive com marxistas diálogos ricos e produtivos e, entre eles, houve gente inteiramente solidária comigo, como, por exemplo, Astrojildo Pereira.
Qual era o grau de conhecimento da obra de Marx nesta época e como fluía seu diálogo com Astrojildo?
O verdadeiro conhecimento era quase nulo, e o Astrojildo constituía uma grande exceção. É um homem que merece um estudo biográfico, merece ser apresentado em termos modernos, pois ele foi um pré-moderno. Tivemos laços tão profundos que, anos depois, ele fez um dos melhores estudos a respeito da minha obra, publicado em coletânea com outros autores. Ele sabia realmente o que era o marxismo. Quem mais? Não sei. Talvez o Otávio Brandão, que foi morar na Rússia.
Eu sempre fiz restrições a certos usos do marxismo, mas não se pode apresentar nenhuma atitude antimarxista sectária de minha parte. Sempre fui a favor do que eu mesmo chamava de pós-marxismo. E fiz um grande convertido: o inteligentíssimo Oswald de Andrade. Num de seus artigos no Correio da Manhã, ele tratou da sua conversão ao "pós-marxismo de Gilberto Freyre", dizendo que não rejeitava o que aprendera de marxismo, mas achava que isso não satisfazia mais: Marx foi homem de uma época europeia, e nós estávamos noutra época. Ora, quem é pós-marxista não é antimarxista.
Você estava na Universidade do Distrito Federal quando da decretação do Estado Novo?
Acompanhei de perto tudo o que aconteceu quando esse trabalho foi desbaratado policialmente por um grande intelectual, Francisco Campos, que se tomou de ódio pessoal contra mim, contra o Anísio e contra o Pedro Ernesto, que foram perseguidos pela polícia. Deram-me um pontapé imediato da universidade, e voltei para Recife.
Com o fim do Estado Novo, você participou da Constituinte e criou o Instituto - hoje Fundação - Joaquim Nabuco. Pode-se dizer que você realmente estabeleceu uma escola, no sentido amplo do termo. Qual era então o panorama das ciências sociais no Brasil? E qual o lugar da antropologia?
Eu creio que o centro mais sério de produção de estudos sociais ao país foi a Universidade do Distrito Federal, fechada pelo Estado Novo. Inclusive pelo que propus ali para a moderna indústria brasileira. Como antropólogo, cheguei a propor a industriais ligados ao vestuário pesquisas para sabermos as configurações físicas mais típicas dos brasileiros de cada região. No momento em que o Brasil começava a fabricar roupas feitas, era preciso conhecer as formas de corpo de sua população. Como vocês veem, procurávamos ligar nossa ciência ao surto industrial que estava em curso, coisa que ainda está por se fazer.
A partir de certa altura, o maior centro de estudos sociais do Brasil passou a ser São Paulo, que também vivia uma feliz experiência universitária sob o patrocínio de Armando Salles de Oliveira e de outros. Tanto lá como no Rio, houve a acertada orientação de importar professores estrangeiros competentes, pois, por mais patriotismo que se tivesse, não era possível inventar sociólogos, antropólogos e mesmo economistas por aqui. O estudo da economia era então muito precário, tendo Roberto Simonsen como expoente. Foi preciso esperar pelo aparecimento do Caio Prado Júnior para termos um economista idôneo.
O que você trazia em mente ao propor a criação do Instituto Joaquim Nabuco?
Como analista social e deputado, eu sentia muita falta de centros brasileiros dedicados à pesquisa sobre o próprio país. Ocorreu-me então a ideia de aproveitar as comemorações do primeiro centenário de nascimento de Joaquim Nabuco para propor, na Assembleia Constituinte da qual eu fazia parte, a criação de um centro deste tipo no Recife, o que poderia servir de estímulo para outras iniciativas do gênero nos demais lugares. Meu projeto, aprovado pelo Legislativo, previa que a ação da nova instituição abrangeria não só o Nordeste, mas também o Norte do país, e que seu funcionamento seria desvinculado do sistema universitário para evitar o velho mal deste sistema: a burocratização. Creio que o instituto foi o primeiro centro brasileiro de pesquisas sociais que contou com esse tipo de autonomia.
Aos 85 anos, você continua produzindo, trabalhando, apresentando textos renovados. Você analisou e descreveu ao longo deste tempo mecanismos de equilíbrio da sociedade brasileira, mas nunca negou o conflito dentro dela. Como você vê essa sociedade brasileira particularmente a nordestina - diante do quadro atual? Os mecanismos tradicionais de lidar com os conflitos, as tensões, as contradições, funcionarão?
O Brasil vem mudando muito. Nuns pontos para melhor, noutros para pior, sobretudo por causa desses últimos anos de governos militares. Não sou antimilitarista, mas devo dizer que nunca me enganei com esse surto militar iniciado em 1964, o que me levou a recusar convites do general Castello Branco para ocupar um ministério ou a embaixada em Paris. Os militares se deram aos tecnocratas, que comprometeram os valores éticos do Brasil e nada fizeram para diminuir o desprezo pelo Nordeste, que já se manifestava então no Centro-Sul. Você não pode definir o ministro tecnocrata por excelência, o Delfim Netto, senão como um quase patológico anti-nordestino.
Agora, estamos diante de um teste como nunca houve no Brasil. Há uma grande crise ética, um desprezo ostensivo pelas éticas, e o povo brasileiro está escandalizado. Há conflitos inter-regionais. Embora não deseje fazer o jogo marxista sectário, há conflitos de classe. Não acho que haja conflitos de raça, porque nós somos um país preponderantemente miscigenado. Toda essa tentativa de se criar uma negritude brasileira é coisa sem sentido e sem apoio: numa população miscigenada não pode medrar de forma atuante um preconceito de raça. O miscigenado é uma barreira contra ele. Isso é uma vantagem enorme para o Brasil, se vocês o comparam com outros países. Acho inclusive que, em parte por isso, os conflitos de classe não têm no Brasil uma conotação tão forte, ou intransponível. São transponíveis. Sem querer exagerar no otimismo, não sou tão preocupado com tais conflitos. Serão saudáveis. Ocorrerão para uma espécie de saúde de uma grande nação, que vai se tornar cada vez maior. E com essas palavras quase de retórica baiana, eu termino por aqui.