Entrevista concedida a Ramayana Gazzinelli, Márcio Q. Moreno (Departamento de Física, UFMG) e Marise Muniz (Ciência Hoje)

Midia

Part of Entrevista Francisco Magalhães Gomes

Publicada em abril de 1989.

Quando o físico Francisco de Assis Magalhães Gomes dirigia o Instituto de Pesquisas Radioativas (IPR) da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), informações desencontradas sobre os objetivos da instituição ganharam as páginas de um jornal da imprensa mineira. Atribuindo ao estudo da energia nuclear finalidades bélicas, o periódico chegou a divulgar que se construía no IPR a bomba atômica. A bomba, na verdade, não ia além da imaginação dos que haviam forjado a notícia. Magalhães desativou-a, porém, a tempo. Sou o inimigo número um da bomba atômica, diz ele hoje, do alto de seus 83 anos, ao recordar, essa história absurda. Mas o IPR — criado em 1953 e à época-uma das instituições mais importantes do país no âmbito das pesquisas nucleares — não foi sua única contribuição para o desenvolvimento do ensino e da pesquisa em Minas Gerais. A ele se devem também o sucesso do curso de física da Faculdade de Filosofia e do Instituto de Ciências Exatas (Icex) da UFMG e à formação de várias gerações de físicos teóricos e experimentais. Embora não tenha deixado contribuições relevantes no que diz respeito à criação de ciência e tecnologia — "não descobri nada de novo, apenas transmiti conhecimento", reconhece ele - Francisco Magalhães dedicou toda a sua vida à organização de instituições e à formação de novos pesquisadores, permitindo que o país acompanhasse o ritmo acelerado do desenvolvimento científico e tecnológico do século XX. Tudo isso, num ambiente de plena liberdade e tolerância intelectual. Durante o período em que dirigiu o Icex, de 1968 a 1972 — quando a repressão no país era das mais rigorosas — cuidou de evitar interferências políticas em sua área de responsabilidade, buscando resguardar a livre circulação de ideias. Ao julgar-se velho para ensinar física, trocou-a pela história da ciência. A física devia ficar para os jovens que chegavam do exterior com novidades, ele diz. Atualmente, reserva boa parte de seu tempo a Galileu - sobre quem está prestes a concluir um longo estudo - e à literatura, a amante que dividiu, com a física, sua paixão pelo conhecimento.

Quando o senhor começou a se interessar pela física?

Meu interesse pela física surgiu quando ainda cursava o secundário. Não propriamente por obra de algum professor, eu tinha grande atração pela matéria. No colégio onde estudava, o antigo Ginásio Mineiro de Belo Horizonte, o professor Virgínio Behring, um homem muito inteligente, resolveu, a certa altura do curso, fazer perguntas aos alunos em vez de simplesmente responder suas dúvidas. Acho que ele se cansou de dar aulas expositivas e então inverteu os papéis. Ele dizia assim: da próxima vez, vamos estudar a queda dos corpos. E então era ele que perguntava sobre o tema aos alunos. Foi nesse tempo, que me interessei pela física. E sou obrigado a dizer uma coisa que parece falta de modéstia: eu era o melhor da sala. Sabendo disso, o professor primeiro inquiria a turma toda antes de chegar a mim. Depois, na Escola de Minas de Ouro Preto, onde fiz o curso universitário, fui também muito bom aluno de física.

Porque o senhor optou por estudar na Escola de Minas de Ouro Preto e não na Escola de Engenharia de Belo Horizonte ou do Rio de Janeiro?

Primeiro, porque sou ouro-pretano e tinha adoração pela Escola de Minas. Depois, porque éramos dez irmãos e ficaria caro para meu pai financiar minha estada no Rio. Ele era médico, mas um médico dos pobres e não ganhava muito dinheiro com medicina. Em Ouro Preto, tínhamos a casa grande da família e não seria sacrifício para meu pai manter-me lá.

Quando o senhor cursou a Escola de Minas, ela ainda desfrutava do conceito que tinha na época de Henri Gorceix (mineralogista francês convidado pelo imperador dom Pedro II para organizar e dirigir a Escola de Minas de Ouro Preto)?

O conceito era muito bom ainda. Embora na minha época, o número de alunos estivesse se reduzindo, a Escola de Minas desfrutava de enorme prestígio. Em matéria de rigor e tradição, era muito melhor do que a de Belo Horizonte, extremamente melhor. Mas, curiosamente, a física da Escola de Minas era muito elementar e não me adiantou muito. O professor da matéria - que tinha estudado até na Europa à custa de bolsas do imperador Dom Pedro II — era muito competente. Mas, a física que ele ministrava não era muito melhor do que a que havia aprendido no ginásio.

Seu pai teve alguma influência na sua carreira?

De certa forma, devo a meu pai meu interesse pela física. Ele era um homem muito instruído e me incentivou a estudar a matéria, embora fosse químico e naturalista — possuía um herbário com nove mil diferentes espécies de plantas em Ouro Preto. Ele me dizia: Estude física porque o desenvolvimento da física tem sido enorme, vai dominar e por aqui pouca gente sabe a matéria. Foi ele que me abriu os olhos. Quando me dizem que fui eu quem introduziu a física em Minas, aceito naturalmente, porque as físicas que havia quando estudei, eram muito elementares. Não se empregavam nem mesmo a geometria analítica e o cálculo no primeiro ano de estudo da disciplina. Só se estudava a física elementar. Aconteceu até uma coisa muito engraçada que prova o que estou dizendo: o Baeta Viana - um homem muito influente naquele tempo, professor de química e assistente de meu pai — esteve lá em casa um dia e ficou impressionadíssimo com o fato de eu estar lendo o Ollivier, que é um texto universitário francês, considerado um clássico na área de física. Nessa época, eu já era formado e estava lendo o Ollivier pura e simplesmente por gosto, para aprender física. E ele então me perguntou: "O que você está fazendo aí, Magalhães, lendo esse livro?" Respondi que estava lendo o Ollivier porque poderia surgir a oportunidade de participar de algum concurso para lecionar física. Mas, a congregação nas universidades antigas era uma coisa muito complicada; havia muita disputa pelos lugares. Mesmo assim, concorri a uma vaga no anexo da Escola de Engenharia e acabei passando. Eu já tinha o título de professor do anexo da Faculdade de Medicina, além de ter sido convidado para fazer parte de uma banca examinadora de química. Tinha, portanto, dois títulos e isso colaborou para a escolha de meu nome.

Como era o ambiente científico na sua época de estudante e no início de sua carreira de professor?

Na Escola de Minas de Ouro Preto, onde estudei, e na Escola de Engenharia de Belo Horizonte não havia ambiente científico algum. Na Escola de Medicina, sim. O Baeta Viana ensinava uma química muito avançada, resultado de seus estudos nos Estados Unidos. Meu pai também tinha muita visão e ampliava muito o horizonte de seus alunos. Mas, na Escola de Engenharia não existia propriamente ciência. Havia professores competentes, como o Lúcio dos Santos e o Pedro Rache. O Rache era um professor de mecânica racional que se divertia em fazer pilhéria com os alunos. Ele punha um problema na pedra e dizia que dava um doce para quem o resolvesse, adiantando que ele próprio, não sabia. Depois, bombardeava todo mundo. O velho Cipriano de Carvalho era um positivista de cultura até interessante, mas seu curso de física era muito antiquado. Costumava-se dizer que ele não andava de bonde porque não acreditava na eletricidade. O Cipriano, que seguia muito o positivismo de Augusto Comte, era bom matemático mas não era um físico exemplar.

E como o senhor começou a ensinar física? Que livros o senhor adotou?

Na Escola de Medicina, adotei o Tillieux, um livro belga que, para a época, era muito moderno. Adotei a edição do ano anterior à minha entrada na escola. Para vocês terem uma ideia, ensinava até desvio de raios catódicos nos campos elétrico e magnético. Para os cursos de engenharia, usei livros mais avançados, principalmente, os franceses. Depois usei o Perucca, que era adotado em São Paulo pelo Wataghin, e o Bruhat, adotado nas faculdades de ciências na França, muito conceituado na época.

E qual foi a reação dos alunos quando o senhor introduziu essas modificações?

Fiquei com fama de professor muito rigoroso. Na verdade, há que se distinguir o professor que é considerado rigoroso apenas pelo prazer de dar bomba daquele que ganha essa fama pelo prazer de ver os alunos aprenderem. E claro que eu me incluía no segundo caso. Quando entrei para a Escola de Engenharia, não havia bomba em mecânica nem em cálculo. Fui eu que introduzi a reprovação nessas disciplinas. Com raras exceções, os professores que me antecederam eram de uma tolerância incrível. Muitos repetiam o mesmo tratado durante 40 anos!

O senhor participou da criação da Universidade de Minas Gerais?

Não, nessa época eu ainda era estudante da Escola de Minas. Quem participou foi meu pai. A universidade foi criada em 1927, um ano antes de minha formatura. Mas, ela não foi criada propriamente como uma universidade. Poderia ter sido chamada de Escolas Reunidas Minas Gerais. Para dirigi-la, foi nomeado o Mendes Pimentel, um dos maiores juristas de Minas, que teve a inteligência de convocar pessoas que não eram de sua área para assessorá-lo. Para as áreas de física e química, por exemplo, chamou o Baeta Viana. Foi o Pimentel que me chamou para lecionar física no anexo da Escola de Medicina. Ele nos apoiava e estava até mesmo disposto a nos dar um belíssimo laboratório, porque confiava em nosso trabalho. Depois, fui para a Escola de Engenharia. O Cipriano havia desistido da cátedra em razão da idade avançada, criando assim uma nova vaga. A congregação deveria eleger seu substituto. O diretor na época, o Artur Guimarães, não me apoiou, mas mesmo assim fui aprovado por causa do meu currículo e da minha experiência como professor do anexo da Medicina.

senhor fez dois concursos de cátedra, não? Como foram esses concursos?

Na época, os concursos não eram brincadeira. Depois de formado, estudei durante dez anos para prestar meu primeiro concurso e não tive uma formação com mestres. Tive que me esforçar muito, não me improvisei não. Fiz o primeiro concurso em março de 1938 para a Escola de Engenharia e em abril do mesmo ano para a Escola de Minas de Ouro Preto. Passei nos dois, sem favor algum.

senhor teve concorrentes nesses dois concursos?

Não, ninguém tinha coragem. Para se ter uma ideia de como eram difíceis os exames, basta dizer que os concorrentes aos três concursos precedentes haviam sido reprovados. A coisa era de apavorar! Eu sabia que os três concorrentes anteriores haviam perdido e mesmo assim decidi disputar as duas vagas. Meu raciocínio era: ou eu passava nos dois ou em nenhum. Por isso causou até certo sucesso eu ter resistido aos dois concursos.

Como foi sua experiência como funcionário público da Prefeitura de Belo Horizonte?

Triste memória eu tenho desse tempo. Era uma politicagem danada! A vantagem é que eu trabalhava meio expediente e podia dar minhas aulas pela manhã no anexo da Faculdade de Medicina, onde ainda não cumpria o regime de dedicação exclusiva. Mas, acabei sendo escorraçado da prefeitura por ter votado contra a doação de dois terrenos em plena área urbana ao Minas Tênis Clube. Na ocasião, eu ocupava o cargo de inspetor de contratos particulares e em meu parecer disse que não poderia concordar com que uma prefeitura miserável, sem recursos até mesmo para calçar uma rua ou construir uma rede de esgoto, doasse um de seus raríssimos patrimônios para a construção de um clube particular. A minha proposta era que se fizesse no local uma escola pública de ginástica, mas nem cheguei a apresentá-la para não parecer que estava interferindo demais. Meu voto contra a doação foi suficiente para que eles começassem a me fazer pirraças. Para não ser perseguido, decidi então sair e me dedicar exclusivamente ao magistério. Eu gostava mesmo era de ensinar.

Qual a sua participação na criação da Faculdade de Filosofia?

Participei do processo, mas não tive atuação efetiva. Eu sustentava o ponto de vista de que a universidade deveria ser de cunho cultural. A Faculdade de Filosofia era também de ciências e letras, embora não tivesse formalmente esse nome. Mas, tudo que houve de ciências e letras na época veio da Faculdade de Filosofia. A nossa dificuldade, entretanto, era formar um quadro de professores. Eu, por exemplo, levei o Eduardo Schmidt e o Edmundo Dantas. Era quem eu tinha na época para indicar. A criação da faculdade deveu-se a um grupo que eu freqüentava e com o qual tinha muita intimidade. Dele participava o Arthur Versiani Velloso, que para organizar a faculdade trocou muitas ideias com Emile Bréhier [historiador francês da área de filosofia]. Mas, nesse processo houve muito gato que passou por lebre. O Velloso teve muita dificuldade para formar o quadro de professores, e o que se passou faz lembrar o evangelho na parábola do casamento: A família dos noivos convidou muita gente, mas como os convidados não foram, então ela mandou os criados cercarem os que passassem pela estrada. Em parte foi assim que as coisas aconteceram.

Como foi a criação do Instituto de Pesquisas Radioativas (IPR), da Escola de Engenharia da UFMG? Poderia dar seu testemunho sobre as origens e os primeiros passos do instituto?

Quem teve a ideia de criar o IPR foi o professor Cândido Hollanda, da Escola de Engenharia, que procurou o diretor da escola, Mário Werneck, e apresentou a proposta. O Werneck gostou da ideia e os dois chegaram a conclusão de que eu era a única pessoa em condições de levar à frente o projeto. De fato, eu era a pessoa mais indicada na época para lidar com esses assuntos, e meu nome foi aceito por unanimidade pelos colegas de congregação para dirigir o instituto. A intenção era estudar a física nuclear, e na Escola de Engenharia eu era o catedrático de física que tinha mais ligação com o estudo da radioatividade. Além disso, tinha vivido a experiência de conhecer de perto instituições desse tipo nos Estados Unidos por indicação do almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva, na época presidente do Conselho Nacional de Pesquisa [o atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq]. O almirante solicitou ao governo americano uma autorização para que eu visitasse todas as instituições de energia atômica, menos as secretas, as de guerra. À exceção das instalações bélicas, pude ver tudo, até os laboratórios de separação de radioisótopos, onde se isolou pela primeira vez o urânio-235. Era uma beleza! Essas viagens me valeram muito. Em Chicago, por exemplo, conheci uns seis pesquisadores que haviam recebido o prêmio Nobel e com eles troquei ideias preciosas. Para desenvolver suas pesquisas, o IPR teve desde o início apoio integral do Conselho Nacional de Pesquisa. Depois, para estudar propriamente as aplicações pacíficas da energia atômica, contamos também com o apoio material bastante valioso do governo de Minas, na época exercido pelo Bias Fortes.

Como diretor do IPR, o senhor enfatizou muito a formação de metalurgistas. Por que razão?

Nesse tipo de instituto, é importante que se faça uma diversificação de especialistas. Tínhamos que ter físicos, porque da física dependem os estudos de radioatividade. Mas, paralelamente, precisávamos de químicos, já que a química estuda mais especificamente os elementos e seus compostos. A metalurgia é um ramo paralelo da química, mais especificamente a química dos metais, que tem um papel importante na indústria de energia atômica. Por isso, p rocurei desenvolver em escala maior o estudo da metalurgia na Escola de Engenharia. Criamos o curso de engenharia metalúrgica, do qual fui professor durante três anos, e começamos a enviar estudantes para estudar metalurgia no exterior, principalmente na França e nos Estados Unidos. Muitos deles fizeram mestrado e doutorado na área, o que ajudou o IPR a desenvolver boas pesquisas. Mas, infelizmente, o instituto passou em 1972 para o controle da Nuclebrás, criada no governo Ernesto Geisel. Eu sabia que essa mudança não ia dar certo e fiz um memorial reservado à Presidência da República, pedindo providências, alertando as autoridades sobre a importância de se manter o instituto no âmbito da universidade, cujos objetivos naturais são ensinar, estudar e pesquisar. Uma empresa criada para construir um reator nuclear de alta potência não teria esses objetivos. Defendi como pude a manutenção do instituto na universidade. Em minhas aulas, conferências, congressos, procurava mostrar que a universidade era um organismo com mais força e permanência. Citava como exemplo a história da Inglaterra, que condenou à morte o rei Carlos I, mas manteve, intactas suas universidades. A França mandou para a guilhotina o rei Luís XVI, mas as universidades francesas nada sofreram com a revolução. De nada valeram os meus protestos! O IPR foi transferido para a Nuclebrás, uma instituição inadequada para sua finalidade. Pode ser que agora os novos governantes estejam convencidos de que eu tinha razão. A Nuclebrás foi extinta e o IPR ficou subordinado à nova Comissão Nacional de Energia Nuclear, que também não é a instituição adequada para controlá-la. Meu desejo é que o IPR retorne à Universidade Federal de Minas Gerais, onde nasceu e se criou.

Que reações ocorreram na Escola de Engenharia quando o senhor tomou a frente do IPR? Houve alguma hostilidade à ideia?

Quem me ajudou mesmo foi o Chiquito Barcelos. No início, não houve propriamente hostilidade, mas com o tempo começaram a aparecer resistências ao projeto, particularmente do Mário Werneck, que era um sujeito muito ciumento. Ele não podia ver uma pessoa se destacar um pouco. Era um problema sério, mas eu não me incomodava com isso. O que me irritou mesmo foi a denúncia infundada de um periódico de Belo Horizonte que, à época da criação do IPR, chegou a afirmar que estávamos construindo uma bomba atômica na Escola de Engenharia. Isso me revoltou muito e ameacei ir à Justiça para citar o jornal por crime de calúnia. Era uma denúncia perigosa, que podia colocar em risco minha própria vida.

Por esse motivo o senhor ganhou o apelido de "Chico Bomba Atômica"?

Talvez tenha sido essa a origem do apelido. Pode ter sido também por pura graça de estudante. Mas, estou longe de fazer jus a essa alcunha. Eu me considero o inimigo número um da bomba atômica.

senhor foi também membro da comissão Nacional de Energia Nuclear. Quem o indicou?

Fui membro dessa comissão, mas antes disso, quando fui indicado para o Conselho Nacional de Pesquisa, criado no governo de Getúlio Vargas, meu nome foi vetado pelo Juscelino Kubistchek. O Juscelino, então governador de Minas, fez uma campanha contra minha indicação e não houve jeito de eu ser nomeado. Depois, como presidente da República, nunca me deixou exercer cargo algum, nem no conselho e nem na universidade

Qual o motivo dessa perseguição?

Primeiro porque eu era da UDN [União Democrática Nacional] e ele do PSD [Partido Social Democrata]. Depois, porque eu havia assinado o Manifesto dos Mineiros, que era contrário à ditadura de Getúlio Vargas e pedia eleições para a Presidência da República. Esse fato desencadeou uma verdadeira guerra de nervos contra mim. Era um negócio para desesperar qualquer um. Eles incitaram minha própria família, dizendo que eu estava fazendo uma coisa louca, que acabaria perseguido, na miséria. Eles tinham moços de recado para falar essas coisas lá em casa e isso assustou muito meus familiares.

Como foi a história do manifesto? Quem o liderou?

O Pedro Aleixo e o Milton Campos tiveram participação muito expressiva nesse movimento, e eu assinei o manifesto a pedido deles. A partir daí começaram as perseguições. Fiquei sabendo por um amigo que o Benedito Valadares, então governador de Minas Gerais, ameaçava  demitir-me da universidade, que na época era uma fundação do governo do Estado. Mas eu provocava: mandei dizer ao Benedito que, se ele fizesse isso, iria se arrepender amargamente. Ameacei até ir aos Estados Unidos e contar na ONU o que era a política brasileira. Eu tinha que reagir porque esse pessoal se julgava dono do Brasil. Eles acreditavam que tinham poder suficiente para botar na rua uma pessoa que estava exercendo honestamente sua profissão. Eram absolutamente insensíveis e não tinham a menor moral. Eu soube depois, que até solicitaram ao Conselho de Segurança Nacional uma revisão da minha vida. Mas, além do episódio do manifesto, não encontraram nenhum crime. Dizem até que o resultado dessa investigação foi muito bom para mim. Para falar a verdade, aquele manifesto era uma bobagem muito grande. Hoje, eu tenho até vergonha de lembrar disso. Mas, o Getúlio Vargas ficou furioso com o manifesto e chegou a fazer ameaças tremendas. Num discurso do alto do encouraçado Minas Gerais disse: "Não é possível lançar o Brasil nos azares das competições partidárias para satisfazer o prurido demagógico de leguleios em férias." Isso para mim é espanholismo de fronteiriço. Não havia motivo para o golpe de 1937, a não ser imitar Mussolini e Hitler. Aquilo era vocação de fronteiriço. O Getúlio era fascista. Fui contra o golpe de 1937 e a tirania Vargas. E o Benedito Valadares? Vocês conhecem o Benedito? Deus que me perdoe, mas o homem era uma desgraça! Mas era também muito esperto, porque passou a mão no Gustavo Capanema, muito mais competente do que ele.

Mas o senhor exerceu um mandato na Comissão Nacional de Energia Nuclear. Como foi nomeado?

Essa história foi até engraçada. Fui nomeado para a comissão em 1962 pelo presidente João Goulart. Até então eu nunca havia pleiteado cargos a quem quer que fosse. Mas, tomei algumas providências no sentido de fazer parte dessa comissão. Fiz isso por indignação, porque o Mário Werneck queria me excluir de qualquer jeito. Ele indicou o Cássio Pinto com esse único objetivo. Mas, o próprio Cássio me procurou dizendo que eu deveria abrir os olhos, que havia interesse em minha exclusão. Então decidi descarregar minhas metralhadoras: recorri a pessoas com quem tinha amizade, que tinha certeza que me apoiariam e pedi ao Arthur Velloso que enviasse um telegrama ao presidente, indicando meu nome pela Faculdade de Filosofia. Como eu possuía mais títulos e tinha sido um dos primeiros organizadores de pesquisas radioativas, fui escolhido. Se o Werneck tivesse feito uma lista tríplice, eu nunca teria recorrido a este artifício. Mas, ele indicou apenas um nome, utilizando como intermediário um desses diretores incolores, inodoros e insípidos. Aí fiquei muito aborrecido, porque entendi que essa atitude era para me desmoralizar publicamente.

senhor ainda exercia esse mandato quando ocorreu o movimento militar de 1964. O senhor foi cassado por iniciativa do general Ernesto Geisel?

Saí da comissão no governo Castelo Branco. Na época, o Geisel era chefe do Gabinete Militar e não gostava nem um pouco de mim. Mas,não teve a oportunidade de me cassar. Antes que isso acontecesse, fiz um telegrama ao presidente que dizia assim: "Senhor presidente, peço a vossa excelência a exoneração de minhas funções de membro da Comissão Nacional de Energia Nuclear, porque julgo que, com a atual administração, estou servindo mal ao país." Tive que sair, mas saí por gosto.

Como foi sua participação na criação do Departamento de Física da UFMG e na reforma universitária?

Nisso tive participação ativa. Sempre fui dedicado à universidade e não perdia uma única reunião para discutir o que quer que fosse. Pela minha experiência, freqüentemente era convocado para participar da elaboração de currículos e como membro da congregação tinha liberdade de propor e opinar. Eu era professor catedrático por concurso e naquele tempo os catedráticos eram os donos do poder. Ninguém dava um só pio na física sem me consultar. Mas,eu não defendia esse tipo de poder. Ao contrário, concordei plenamente com a criação dos departamentos, onde todos passariam a ter voz ativa e voto. Na verdade, não tive o menor desejo de prolongar o monopólio de minha influência através do sistema de cátedra. A minha influência na física permaneceu porque continuei tendo o maior interesse na boa evolução dessa ciência entre nós.

Como surgiu seu interesse pela história da ciência? Foi quando o papa João Paulo II o indicou para participar de uma comissão de revisão do processo contra Galileu?

Não, a nomeação do papa é coisa recentíssima. Meu interesse pela história da ciência é muito antigo. Sempre tive muita preocupação com a cultura. Mas meus estudos nessa área começaram por conta própria. Quando a história da ciência foi introduzida no curso de física da Faculdade de Filosofia, no início da década de 1960, decidi deixar a física para os jovens que estavam chegando com bons cursos feitos no exterior, inclusive doutores. Pensei assim: a física é para os jovens e a história da ciência é coisa para velho. Foi uma atitude muito leal, porque em matéria de física os jovens chegavam do exterior com muita novidade. Nesse campo, realizei dois trabalhos de natureza histórica: um sobre a eletrificação no Brasil, por solicitação da Eletropaulo, e outro sobre a siderurgia brasileira, a pedido do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico [hoje BNDES], com o apoio do CNPq.

Mas o senhor não fez essa opção também por acreditar no valor do ensino da história da ciência?

Claro, mas ocorreu também o seguinte: eu nunca tive muita popularidade como professor de física por ser muito rigoroso. Já como professor de história da ciência, ganhei uma popularidade incrível. Os alunos gostavam muito, pois faltava no curso algo mais humanístico no meio de tanto cálculo, de trabalhos difíceis de laboratório. Era uma matemática muito dura, e a história da ciência distraía os alunos.

Como o senhor avalia o ensino da história da ciência na formação de cientistas e professores?

Um professor não pode ser exclusivamente um especialista. É preciso que ele tenha também certa cultura, e a história da ciência, a meu ver, é parte integrante da cultura universitária. Para entender de fato uma descoberta científica, é indispensável conhecer como foi que as coisas evoluíram. É preciso ter uma base histórica para entender como as descobertas realizadas no século XX progrediram com tanta rapidez em relação às descobertas dos séculos anteriores. Na física, é obrigatório conhecer o que se passou de Galileu a Einstein.

E seu interesse por Galileu? Que razões levaram o senhor a estudá-lo?

Eu reconhecia o mérito de Galileu e lamentava muito o fato de ele ter sido perseguido por suas descobertas. Lendo tratados de física, percebi que Galileu, em muitos casos, não havia sido reconhecido como o mais importante precursor da física moderna. Então decidi estudá-lo, pesquisando tudo que havia sido publicado a seu respeito. Nessa pesquisa, tive que ir umas dez vezes à Europa e duas vezes aos Estados Unidos, onde participei de vários congressos relacionados à sua obra. Só na minha biblioteca devo ter cerca de 200 volumes sobre Galileu.

Qual o objetivo de seu estudo sobre Galileu?

Minha intenção é mostrar Galileu como um homem combativo, que lutou contra circunstâncias desfavoráveis e que sofreu uma enorme injustiça. Suponho que em nosso meio essa história não seja muito bem conhecida. Em meu livro, mostro que, mesmo injustiçado, Galileu conseguiu uma vitória maior do que esperava. Percebi, em meus estudos, que os físicos sempre o elogiaram, mas os historiadores e filósofos nem tanto. É curioso isso. Os físicos nunca negaram os méritos de Galileu, porque ele foi de fato o criador da física moderna. Já os historiadores não lhe dão o devido valor. O Poincaré, por exemplo, que é um pesquisador muito bom, define Galileu como um platonista.

senhor acaba de ler Leonardo da Vinci, de Sigmund Freud. Qual a sua opinião sobre o livro?

Confesso que tenho certa prevenção contra Freud. Entre Marx e Freud, os dois autores que dominam o pensamento moderno , vou ser sincero: prefiro Marx. É uma questão de simpatia. Mas, o livro de Freud sobre Da Vinci é muito interessante, embora ele exagere um pouco em suas deduções. A análise que faz não me convenceu muito. O Freud dá muita importância a sonhos — ele analisa um sonho que Da Vinci teve na infância, em que um falcão bate a cauda em sua boca — e dá uma ênfase exagerada a essas coisas. Não nego seu mérito, mas eu não aceito certas ideias freudianas. Não estou falando da psicanálise, porque nesse campo não me julgo competente para discordar. Em Futuro de uma ilusão, por exemplo, Freud faz um estudo da religião e de certa forma a considera um tipo de loucura. Já Henri Bergson, em Les deux sources de Ia morale et de Ia religion, considerou os grandes místicos católicos como modelos de robustez intelectual. Ele cita Santa Teresa entre eles. Uma senhora que governou 30 conventos na Espanha e que com alguma freqüência tinha de andar 50 léguas a cavalo para levar mensagens de uma localidade a outra poderia ser tida como louca? Bergson é o filósofo mais célebre da França neste século, e o único em condições de vir a superá-lo é Jean-Paul Sartre. Mesmo assim, acho que a influência de Bergson ultrapassa muitas vezes a de Sartre.

Em meio a tantos estudos, como o senhor encontrou tempo para dedicar-se também à botânica?

Comecei a estudar botânica com meu pai, quando era ainda menino. Depois cursei a cadeira de botânica na Escola de Minas de Ouro Preto. Nós tínhamos zoologia no primeiro ano, botânica no segundo, mineralogia no quarto e paleontologia e geologia estratigráfica no sexto. Éramos estudantes de engenharia de minas, mas fazíamos também o curso de geologia. Por isso, tive que estudar muita botânica para conhecer a flora de Minas e classificar as plantas. Mais tarde, depois de formado, me envolvi com a botânica por um motivo curioso. O Rodrigo Melo Franco me procurou pedindo que eu classificasse a madeira de um altar de jesuítas muito antigo, encontrado numa igreja localizada onde hoje é a avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. A madeira havia sido classificada como freijó [Cordia goeldiana], que é muito leve e serve para construir embarcações. Mas, o Rodrigo duvidava da classificação, porque essa madeira só existia na Amazônia. Ele achava absurda a ideia de o altar ter sido feito com freijó numa época em que pouco se conhecia a Amazônia e insistiu que eu fizesse um estudo para comprovar, alegando que eu era um Magalhães Gomes. Acabei concordando e pedi que ele me enviasse um pedaço da madeira do altar. Levei a amostra à Escola de Minas, onde havia algumas amostras de freijó, e fiz cortes finíssimos no pedaço de madeira do altar e no exemplar da escola. Em geral os botânicos fazem isso e depois colorem a amostra com corantes. Mas eu, como físico, resolvi examinar as duas amostras num microscópio polarizante, porque nele a madeira fica sujeita à pressão, permitindo a polarização cromática, que é uma beleza. Fiz o exame e comprovei que a amostra do alotar era de fato de freijó. Então mandei um relatório ao Rodrigo. Foi minha última experiência em botânica.

senhor teve papel importante na formação de novos físicos em Minas Gerais. Que legado deixou nessa área?

Na verdade, não pude especializar-me em pesquisa teórica ou experimental. Comecei na física numa época em que não havia entre nós faculdades especializadas na área e não pude realizar um doutorado como meus colegas das gerações mais recentes. Minha contribuição foi organizar instituições formadoras de recursos humanos, e por esse motivo cheguei a ser comparado ao Luís Freire, da Universidade de Pernambuco. Sempre incentivei os jovens engenheiros ou físicos a estudarem no exterior em busca de uma formação inexistente aqui. Dediquei quase toda a minha vida a isso e só me aposentei aos 57 anos de serviço. Não descobri nada de novo, apenas transmiti conhecimento; durante toda a vida profissional fui professor. Mas,mesmo assim, faço parte da Academia Brasileira de Ciências, honraria que não pleiteei. Na época em que fui indicado, cheguei a dizer que não era um físico de descobertas. Mas, eles argumentaram que o papel que eu havia desempenhado como organizador do ensino e da pesquisa justificava plenamente a escolha. Sou também membro da Academia Mineira de Letras, porque gosto muito de literatura. Minhas netas acham muita graça quando digo que a física foi minha esposa e a literatura, minha amante.

Com tantas responsabilidades de esposo, o senhor pode dedicar algum tempo à sua amante?

Ah, não tanto quanto gostaria... Freqüentemente era obrigado a abandonar meus clássicos da literatura porque a física assim o exigia. Mas, a paixão eu não abandonava. Minhas horas vagas eram dedicadas aos grandes clássicos gregos e latinos. Gosto muito dos dramaturgos gregos. Tenho toda a obra dramática grega traduzida em francês e inglês. Mesmo com pouco tempo, li quase todos os grandes clássicos: Virgílio, Homero, Dante, Camões, Shakespeare. Gosto também de poesia lírica, particularmente de Fernando Pessoa. Mas, a grande paixão da minha vida é o Don Quixote, de Cervantes, que eu tenho em espanhol e em alemão. Costumo fazer pilhéria com meus amigos dizendo que sei ler Don Quixote até em alemão. Estudei apenas o alemão instrumental para me auxiliar no estudo da física. Tenho também em minha biblioteca quase tudo de Camões e de Gil Vicente. São obras raríssimas! Atualmente, fui atacado por uma mania nietschiana e já não estudo tanto a física. A não ser Galileu. Gasto pelo menos umas seis horas por dia só com ele.

Em que o senhor está trabalhando atualmente?

Estou concluindo o estudo sobre Galileu, denominado Galileu e o mundo moderno, que deverá ter umas 500 páginas aproximadamente, e iniciando outro sobre Leonardo da Vinci. Se for comparar com base nas unidades do personagem Jacinto de Tormes, do romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, poderia dizer que tenho dois metros de Galileu e um de Da Vinci.

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Entrevista concedida a Ramayana Gazzinelli, Márcio Q. Moreno (Departamento de Física, UFMG) e Marise Muniz (Ciência Hoje)