Entrevista concedida a José Albertino Rodrigues, UFSCar
Midia
Part of Entrevista Florestan Fernandes
Publicada em setembro/outubro de 1983.
Florestan Fernandes é, sem dúvida, o mais importante sociólogo brasileiro. Ao resenhar uma seleção de seus textos, editada por Warren Dean para o International Journal of Sociology (1981), William P. Morris chama-o de "pioneiro e líder da sociologia do Terceiro Mundo ". De fato, sua ascensão universitária foi muito rápida. Nascido em São Paulo em 1920, teve uma infância e uma adolescência marcadas pela dura luta pela sobrevivência, mesmo depois de ter ingressado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), em 1941. Bacharel em ciências sociais em 1943, em dez anos já percorrera toda a carreira acadêmica naquela universidade, chegando a livre-docente e professor catedrático. De 1949 a 1969, quando foi aposentado compulsoriamente na USP pelo AI-5, já havia publicado dez livros marcantes: Organização social dos Tupinambás (tese de mestrado, 1949); A função social da guerra na sociedade Tupinambá (tese de doutorado, 1952); A etnologia e a sociologia no Brasil, 1958; Fundamentos empíricos da explicação sociológica (inclui a tese de livre-docência, 1959); Ensaios de sociologia geral e aplicada, 1960; Folclore e mudança social na cidade de São Paulo, 1961; A sociologia numa era de mudança social, 1963; A integração do negro na sociedade de classes (tese de cátedra, 1964; tradução inglesa, 1969); Educação e sociedade no Brasil, 1966; e Sociedade de classes e subdesenvolvimento, 1968.
Seu afastamento da USP foi traumático para ele e seus principais colaboradores, igualmente atingidos pelo Ato Institucional, mas foi um golpe contra a sociologia e principalmente a universidade, que até hoje fica a lhe dever uma reparação moral. Condições de trabalho as mais favoráveis lhe foram oferecidas por instituições universitárias estrangeiras como a Universidade de Toronto, onde lecionou dois anos. Mas preferiu permanecer no Brasil e lutar, política e intelectualmente, contra a ditadura. E continuou a publicar artigos e livros, que chegam hoje a três dezenas. Destaquem-se: O negro no mundo dos brancos, 1970; Elementos de sociologia teórica, 1970; Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, 1973; A revolução burguesa no Brasil, 1975; A universidade brasileira: reforma ou revolução?, 1975; Circuito fechado: quatro ensaios sobre o "poder institucional", 1976; A sociologia no Brasil, 1977; Apontamentos sobre a "teoria do autoritarismo", 1979; Da guerrilha ao socialismo; a Revolução Cubana, 1979; A ditadura em questão, 1982, e Marx e Engels: história (org., 1983).
Mesmo com a anistia, não se sentiu em condições de voltar à USP e preferiu aceitar dar aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em longa entrevista a Ciência Hoje, repassa os principais pontos de sua carreira e de seu pensamento, de que damos aqui os extratos mais significativos.
Em seu trabalho Em busca de uma sociologia crítica e militante, você se insurge contra a designação "escola paulista de sociologia". Para nós, você foi um grande mestre e um líder intelectual, chefe de uma escola. Como você se situa após a diáspora daquela escola, tendo sido pelo menos seu animador?
Quando falo que não existiu uma escola paulista de sociologia, na verdade não estou contra nada, apenas repudio uma ideia inadequada. Houve uma forte concentração de pessoas trabalhando comigo na cadeira de sociologia I. Mas não tem sentido dizer que eu fui o chefe de uma escola, porque todos nós produzíamos juntos, de modo que seu conceito de animador é melhor do que o de chefe de escola. Acho que essa tentativa de falar de uma escola de sociologia é outra ironia usada um pouco no exterior, dentro de uma tendência das ciências sociais do fim do século XIX e início do século XX. Não se pode ver um trabalho qualquer como produto de uma pessoa de muita influência. Eu nunca me coloquei no papel de um Durkheim, de um Boas ou de um Parsons. De um lado, porque eu não me considero uma pessoa com qualificações para ter um o papel de chefia desse tipo; de outro lado, porque eu nunca pretendi isso .
A minha pretensão, a minha grande aspiração era que a sociologia se transformasse numa ciência empírica, em uma ciência capaz de explorar a pesquisa empírica, sistemática, e, ao mesmo tempo, capaz de construir teorias, principalmente válidas para um país como o Brasil e com vistas à aplicação em uma relação política com a realidade. No conjunto, não havia a ambição de ter um corpo teórico unificado, de fazer com que cada elemento do grupo pensasse dentro daquelas categorias, e que nós praticamente fossemos uma espécie de grupo de fanáticos. Não, ao contrário. Pode ver que, dentro de nosso grupo, pegando os colaboradores principais, havia, no começo, Renato Jardim Moreira, Fernando Henrique Cardoso, Octávio lanni, Marialice Mencarini Foracchi e Maria Sylvia de Carvalho Franco. Depois é que aparecem Luís Pereira e outros mais. Só nesse grupo inicial já se vê uma variação muito grande, não só de personalidade mas também de preferências. Havia uns que estavam mais identificados com o marxismo na variante de Lukács, havia outros que estavam muito preocupados com a problemática de uma sociologia norte-americana, como era o caso do Renato, que tinha uma grande capacidade de elaboração da técnica de pesquisa de campo. E todo esse pessoal que trabalhava comigo tinha liberdade para seguir os seus caminhos. Portanto, não havia uma escola. No momento em que atingíamos um certo pico de maturidade, de organização e de possibilidades, no início da década de 60, nós já tínhamos um projeto que reunia várias investigações em curso sobre a sociologia brasileira, chamado Economia e sociedade no Brasil. Nós já tínhamos desenvolvido antes um projeto sobre a empresa industrial. Por aí você vê que a discussão entre a sociologia diferencial, ou histórica, e a sociologia empírica, ou descritiva, atinge um nível de relação com aquilo que nós poderíamos fazer, com nosso papel dentro da sociedade brasileira ao nível da universidade, ao nível da ciência e ao nível da relação de todos os programas sociais do país.
Antes de 1964, sua obra era antes de tudo a de um acadêmico, sem deixar de ser um militante. Depois, por força das circunstâncias, você se tornou antes um militante, sem deixar de ser um acadêmico no bom sentido. E possível afinal conciliar as duas posturas?
Na verdade, na formulação da questão você já responde: a relação entre um acadêmico que era militante e, em seguida, a relação de um militante que também é acadêmico. Na realidade, um estava contido no outro. Quando eu ainda era estudante da Universidade de São Paulo, optei politicamente por uma organização de extrema esquerda, um grupo trotskista filiado à IV Internacional. Os operários eram poucos, mas ainda assim o contato com eles me abriu um horizonte novo. No entanto, não pude crescer como intelectual de partido. Meus companheiros me disseram que o grupo não tinha condições de me aproveitar e que era melhor eu pensar na carreira universitária.
Quer dizer, eu sempre fui um militante problemático. Não podia cumprir muitas obrigações para o grupo, porque tinha primeiro a tese de mestrado, depois a tese de doutorado e as teses interferiam com o meu trabalho político. Mas de qualquer maneira a militância se encerrou e ficou uma aspiração de militância que teve de ser procurada através da universidade e da ligação com os sindicatos, com os movimentos da sociedade. Por essa aspiração eu sempre fui muito ativo na universidade, e ninguém pode dizer que eu não me tenha voltado desde o começo para essa parte. Só que a militância ficou contida. E não tínhamos também partidos capazes de dar uma base institucional ao trabalho do intelectual. Então essa dimensão da militância ficou obliterada, existia mas era complementar - não diria secundária porque investi muito da minha energia nisso.
De qualquer maneira, o militante existia e estava ofuscado pelo universitário; eu me concentrei realmente no trabalho universitário e na pesquisa, na produção teórica e no ensino. Toda a atividade intelectual e política se voltava para determinados fins, fins estes que estavam ligados à possibilidade de uma revolução democrática na sociedade brasileira. Não seria possível fazer a ciência crescer numa sociedade tolhida, numa sociedade tradicionalista de horizonte fechado. Era preciso conquistar espaço histórico para o desenvolvimento da ciência. A segunda ditadura vai me por em causa de maneira muito forte porque eu vi que era da universidade que tinha de partir um combate concentrado à ditadura, de maior envergadura. Por isso, me liguei a vários grupos. Comecei um trabalho de conferências em escala nacional, num grande esforço concentrado de luta política individual, sem grandes consequências práticas, muito desgastante, a ponto de ser jogado num consultório médico porque passei a ter problemas de hipertensão muito graves. O médico disse que eu estava me matando e me recomendou dois meses de repouso absoluto. Eu não obedeci, fiz um mês de repouso relativo e depois fiquei fazendo o tratamento que vem até hoje. Então, a reação contra a ditadura foi uma reação violenta, e a tenacidade com que me dediquei a esses papéis, acima de diferenças de grupos, me levou a desenvolver uma relação de conflito com as correntes conservadoras e contrarrevolucionárias na sociedade brasileira. Quer dizer que, ainda como universitário, eu estava tendo a possibilidade de soltar o militante, embora sem a proteção de um partido. E a própria universidade não iria me proteger, porque a universidade era profundamente conservadora em termos de composição humana, um centro de interesses dominantes por causa das profissões liberais. Eu me joguei à frente, aproveitando as correntes políticas, às vezes até antagônicas, que combatiam a ditadura.
Então, foi a ditadura que me desafiou, e aí eu verifiquei que não havia sentido em ficar defendendo uma universidade perfeita, uma ciência avançada, independente, dentro de uma sociedade em que tudo é precário. De uma hora para outra, tudo termina, e termina de maneira abrupta, despótica. Os atrasos de vários grupos dominantes na sociedade brasileira se abatem sobre as instituições, sobre os movimentos operários, intelectuais, estudantis, e determinam um tempo histórico que não é o tempo histórico do futuro nem do presente, é o tempo histórico dos interesses reacionários desses setores e da imobilidade que os países dominantes querem que exista nas estruturas da sociedade brasileira. Então, a minha reação foi de raiva, de um homem impotente que quer polarizar a sua força além dos limites da pessoa. Isso acabou me custando muito caro, mas o fato é que o militante foi posto em primeiro plano.
As preocupações metodológicas sempre estiveram presentes em sua obra de forma marcante. Elas obedeciam a um plano apriorístico ou resultaram das exigências dos vários tipos de trabalhos seus, no campo de etnologia, da sociologia, da pesquisa empírica ou do ensaio teórico? Tenho a impressão de que, de um modo geral, sua posição é sobretudo pluralista, mas sempre muito crítica em suas "leituras" teóricas. Minhas impressões estão corretas?
Eu acho que sim, embora eu já tenha esclarecido que tinha uma identificação marxista desde o início, e isto fica claro no prefácio à Contribuição à crítica da economia política, numa identificação com Marx. E foi traduzindo essa obra, e lendo o posfácio, que vi que Marx era um homem em diálogo com o nosso tempo, um homem que estava conversando conosco sobre os problemas que nós tínhamos na área do método e da teoria, na ciência social. Então, se eu já era ativista de um movimento de esquerda, o socialismo revolucionário, me tornei ainda um acadêmico e um intelectual de orientação marxista. Agora, o trabalho com respeito a técnicas e métodos acabou sendo uma imposição, ligada às ambições de desenvolver a sociologia como ciência empírica, criativa e, de outro lado, dar um grande elevo à criação de uma ciência independente no Brasil. Assim, era preciso dominar as técnicas de investigação no plano empírico, os processos de reconstrução e os métodos de interpretação.
Quando eu fui aluno da Escola de Sociologia e Política, no curso de pós-graduação, fui obrigado a assistir um curso do professor Pierson, que era crédito de pós-graduação mas não era curso de pós-graduação, e sim um curso introdutório de graduação. Eu vi que havia ali uma ideia construtiva, mas ao mesmo tempo uma precariedade muito grande no tipo de ensino que se fazia, porque as técnicas estavam dissociadas do trabalho de investigação, era a entrevista, o questionário, é como se nós estivéssemos preocupados com uma medicina empirista: você tem um tal unguento, você aplica em tal ferida. Pensei que tínhamos de dar uma ênfase muito grande ao ensino de técnicas de investigação. Aí a ressonância era muito mais europeia, estava muito mais ligada com o que Durkheim pretendeu fazer na França, com o que Tonnies e Mannheim pretenderam fazer na Alemanha e na Inglaterra, ou então com o que o grupo de Park estava fazendo em Chicago. Daí o empenho que eu tive em desenvolver na Faculdade de Filosofia um novo tipo de ensino de técnicas.
Os franceses não se preocupavam muito com o ensino sistemático das técnicas de investigação. O professor Arbousse-Bastide, por exemplo, se preocupava com o método, mas com o método num plano lógico, quer dizer, no plano explicativo e, assim mesmo, ficava dentro da problemática da sociologia positivista, de Comte a Durkheim. O meu intuito era criar um ano de ensino básico, de métodos de investigação, de processos, de crítica de material e de reconstrução da realidade, e de métodos explicativos num plano elementar, e depois dar ao ensino do método no plano lógico uma ênfase equivalente, de modo que teríamos dois anos de ensino. E sempre procurando vincular o aluno a um projeto, para que o ensino das técnicas não ficasse no ar.
Quanto ao professor Roger Bastide, deu um curso de método, mas método monográfico, como era aplicado pela escola de Le Play, e principalmente como se desenvolveu a exploração da nomenclatura e das técnicas que estavam ligadas com uma nomenclatura familiar. Quer dizer, algo que ignora a necessidade de uma formação básica. No nosso caso, uma coisa muito válida para mim e para o Antônio Cândido; nós pensávamos exatamente o contrário. Nós queríamos valorizar a formação básica e, ao mesmo tempo, dar ao estudante instrumentos para ser investigador. O estudante da Faculdade de Filosofia podia ser professor ou trabalhar em instituições de pesquisa, ou, se ele tivesse sorte num plano ou noutro, tornar-se um cientista social através do trabalho como professor, ou ainda desenvolver-se como sociólogo numa outra instituição, ou seja, fazer uma grande obra como sociólogo. Então, o ensino de técnicas e métodos estava voltado nessa direção.
Quer dizer que a metodologia estava casada com um conjunto do trabalho intelectual, não era mero instrumento para chegar a ele?
Mas também era instrumental porque, como nós procurávamos o domínio e várias correntes fundamentais da sociologia, ela era instrumental para conseguirmos reproduzir aqui a sociologia como uma disciplina autônoma, para acabarmos com isso de ler um autor e ficar feito papagaio falando das ideias dele, sendo um espelho que reflete imagens, como o intelectual brasileiro fazia muito. O intuito era quebrar isso, era estabelecer uma relação orgânica com os vários centros de produção cultural. Não repetir, não imitar, não ser meramente reprodutivo, num sentido positivo, mas ter uma capacidade de criação autônoma, de elaboração criativa original. Era pois preciso cultivar essas várias possibilidades, e não só uma, porque eu não me colocava dogmaticamente: "Então vamos ensinar materialismo histórico." A minha adaptação exclusiva ao marxismo vem depois da crise, depois de 68/69. Em Toronto eu já me coloco como professor marxista e, de lá para cá, estou ensinando, sou professor marxista e ensino em função dessa posição e acabou.
E o que representou o funcionalismo nisso tudo?
Sobre o funcionalismo há todo um debate que eu acho equivocado. A interpretação funcional se reproduz em qualquer campo da ciência, você tem a interpretação funcionalista tanto no campo da sociologia descritiva como na sociologia histórica. Se você pega O Capital, se você pega a obra de Lênin, ou de Lukács, você vai encontrar o uso de função, como você tem na sociologia de Mannheim, quer dizer, no campo da sociologia histórica você encontra o uso da função. Trabalhei com função no início da minha carreira e principalmente com problemas que diziam respeito à reconstrução de um passado extinto, ou então ao estudo de um folclore que está também em desintegração.
É um folclore que perdeu sua conexão dinâmica com uma estrutura social. E se eu faço análise funcional aí é porque, pela análise funcional, eu posso descobrir a relação entre folclore e a situação de vida das pessoas, pois desaparece a sociedade tradicional mas não desaparecem os significados, e a função explica porque uma pessoa, ou um grupo de pessoas, recorre ao folclore. O que o folclore representa na constituição do horizonte intelectual, na socialização dessas pessoas? Esse é um uso da função. E um outro uso que eu vou fazer no estudo sobre o negro, e que já está no contexto da sociologia histórica, que permite ligar função, causa e transformação a longo prazo. Esse tipo de interpretação funcional sequer está sujeito à critica que comumente fazem à antropologia inglesa, à sociologia de Mauss, à sociologia de Durkheim, porque você não pode prescindir da explicação funcional se você quer saber qual é, por exemplo, a conexão entre escravidão e o aparecimento de atitudes de preconceito, se o preconceito é uma racionalização da escravidão. Ou se o preconceito acaba sendo uma forma usada por indivíduos que, por sua religião — como o catolicismo — estão em conflito com sua consciência e acabam racionalizando o fato de que deveria ser impossível para eles ser senhores de outros homens. Quer dizer que o pessoal que me faz crítica crítica porque é ignorante. Eu poderia merecer várias críticas, mas essa crítica rudimentar e estúpida eu acho que não mereço.
Com a anistia e a possibilidade de reintegração dos professores, você teve a oportunidade de voltar para a universidade, mas isso não ocorreu. Foi você que não quis ou a USP que não o quis de novo?
Eu já dei explicações sobre isso, quer dizer, eu entrei num processo de crise de identidade profissional. Essa crise tem origens políticas, mas ela foi real, leal e profunda, por isso é que me vi impossibilitado de continuar a carreira em condições melhores, como ocorreu em Toronto. De modo que, para mim, quando vem a chamada anistia, apesar de surgir num contexto de luta política e poder parecer alguma coisa que a ditadura é obrigada a fazer exatamente para se conservar, eu resolvi não aceitar. E não fui só eu, no caso das ciências sociais. O Fernando Henrique também não quis, o Octávio lanni também não, porque nós fazíamos uma análise mais profunda da situação. As razões que levaram a ditadura a nos expulsar da universidade subsistiam, a ditadura não estava abatida, como ela ainda não está. E a ditadura que nos expulsou da universidade e assumia, ela própria, a iniciativa de nos recolocar lá, poderia de novo nos expulsar. Era uma ambiguidade, era um processo falso. Para nós, parecia que era necessário derrotar a ditadura, expurgar a universidade dos resquícios de fascistização das estruturas universitárias. Quer dizer, voltar era um problema político. O que resolvia? O nosso problema, o problema da universidade, ou o problema da própria ditadura?
Como você se sente hoje, fora da USP e integrado na PUC; ou seja, fora da escola pública pela qual você lutou bravamente, e dentro da escola particular?
Eu não tenho nenhuma restrição a fazer à PUC; não foi fácil a decisão de aceitar o convite de trabalhar na PUC. De fato, quando recebi o convite hesitei muito, e hesitei não tanto por ser uma escola particular, mas por ser uma universidade confessional, uma universidade católica, e eu não sou na verdade católico, como marxista sou ateu, e para mim era um problema: como me relacionar com uma universidade que está tão distanciada da minha posição cultural e política?
Pensando bem, vi que o problema não era meu, era da universidade. E como a Universidade de Toronto, ela me convidou e eu lá fui prestar serviço, embora seja uma universidade estatal. Era uma universidade estranha, como a Universidade Católica era uma universidade estranha para mim. Não é a Universidade de São Paulo. Gostaria que as coisas fossem diferentes e que eu pudesse ter voltado diretamente para a Universidade de São Paulo, mas não foi assim. Era importante então marcar que nós não recusávamos o trabalho intelectual, nós recusávamos certas condições políticas de trabalho.
Quem conheça a filosofia católica sabe que há princípios, que há fins que não correspondem aos de uma escola pública. E eu já conhecia bastante essa concepção católica da universidade para saber que aquilo não correspondia exatamente à minha filosofia política. Mas eu não estava tentando resgatar minha filosofia política, estava tentando mostrar que nós podíamos sobreviver trabalhando e aceitando as condições que nos eram generosamente oferecidas pela PUC. Em nenhum momento, desde o primeiro curso que eu dei até hoje, a PUC teve alguma interferência no meu trabalho pessoal. Nunca houve uma tentativa de dizer: "Não use Marx, não use Lênin, não faça isto, não faça aquilo, não trate de conflito de classes, de luta de classes." Nada. Eu dei o ensino mais militante possível, às vezes até parece ensino de uma escola de partido, e nunca sofri nenhuma restrição. O que não quer dizer que, no futuro, eu não venha a sofrer.
No Rio de Janeiro aconteceu isso, essa reversão, com um grupo de trinta professores, entre eles a Myriam Limoeiro Cardoso, que é uma socióloga bastante importante. Então, pode acontecer. Mas, por outro lado, no meu caso pessoal, eu não me incorporei à PUC, eu fiquei com uma carga de trabalho mínima, não institucionalizei meu trabalho. Até é uma coisa estranha que eu e a PUC possamos conviver assim. Eu me recusei a dirigir teses, me recusei a orientar trabalho de mestrado, trabalho de doutorado, trabalho administrativo. Eu só potenciei o mínimo na área do ensino. Quer dizer que eu sou o mais parcial dos professores de tempo parcial.
Eu não estou incorporado à PUC e também não sou um corpo estranho dentro da PUC. Sou um professor que a PUC tolera, que pode conviver na PUC com os colegas, e nesse plano sou grato à PUC, enquanto for possível manter esse modus vivendi. Se ele não for possível, também não é tão necessário ao ponto de que eu não me desfaça dele. Aí, se há algum equívoco, pode ser desfeito. Eu acho que ninguém põe em dúvida que a célula mater é a Universidade de São Paulo, que o lugar onde eu gostaria de estar é a Universidade de São Paulo, que eu não culpo os meus colegas pelo que aconteceu. Eu não estou tentando punir os meus colegas ou punir a mim mesmo, eu acho que está em jogo um processo político. Nós estamos em luta contra a ditadura e nessa luta é preciso que cada qual entenda que há coisas que são inevitáveis. Eu estou sobrevivendo de dar aulas, mas poderia ocorrer o fato de que eu não pudesse dar aula, e se eu precisasse sobreviver, se a aposentadoria não desse para sobreviver, ou se qualquer outra coisa me impedisse de sobreviver, eu teria que fazer algum outro trabalho. E eu iria fazer, escrever artigos para jornal, ou trabalhar, voltar a trabalhos que eu fiz até os 24, 25 anos e não eram propriamente universitários. Mas para mim não haveria dúvida. Eu acho que nisso tudo há uma lição de vida que todos nós aprendemos e nós estamos na PUC aprendendo mais ainda.