Entrevista concedida a José Albertino Rodrigues (Departamento de Ciências Sociais, UFSCar) e Vera Rita da Costa (Ciência Hoje).
Midia
Part of Entrevista Azis Simão
Publicada em maio de 1989.
Nascido no dia 1° de maio de 1912, o sociólogo paulista Azis Simão fez questão de honrar a data. Seja como jornalista, como militante da causa operária ou professor universitário, foi sempre um trabalhador apaixonado. Na adolescência, um deslocamento de retina acabou por comprometer-lhe a vista esquerda, mas isso não conseguiu desfazer seus vínculos com a vida intelectual, a política e o jornalismo. Conviveu com intelectuais paulistas do movimento modernista e ligou-se aos principais líderes socialistas e anarquistas brasileiros da época. Apesar da sua profunda afinidade com a área de ciências humanas, acabou formando-se em farmácia, no princípio da década de 1930. Em fins de 1935, sofreu deslocamento da retina do olho direito e, após cirurgia, restou-lhe apenas visão itinerante por mais um decênio, em lento decréscimo até o final.
Participou da oposição ao Estado Novo e, com a redemocratização, foi membro fundador da União Democrática Socialista, um dos núcleos do futuro Partido Socialista Brasileiro. Incentivado por Fernando de Azevedo e Antônio Cândido, retomou o curso de Ciências Sociais, formando-se em 1950. Pouco depois, em 1953, tornou-se professor daquele departamento, vencendo dura batalha contra os burocratas do Estado, que viam em sua cegueira um impedimento ao exercício do magistério. Nesses anos, iniciou suas pesquisas sobre o proletariado paulista, tendo publicado seu famoso estudo sobre o voto operário em São Paulo nas eleições de 1947. Pela primeira vez a universidade brasileira produzia um trabalho sobre o comportamento proletário e o país tomava conhecimento das análises de uma pesquisa eleitoral. Seu livro Sindicato e Estado, em que aborda a formação do proletariado paulista, resultou da tese de livre-docência, defendida em 1964, e se transformou num clássico sobre o tema no país. Ao ser aprovado com distinção no concurso, recebeu de Fernando de Azevedo um elogio grandiloquente: "O Azis entusiasma-se com tudo o que faz. É um entusiasmado no sentido grego do termo, isto é, aquele que traz Deus dentro de si."
Poderia fazer uma retrospectiva de sua carreira de intelectual e militante, a começar pela data de seu nascimento? Que história é essa de nascer justamente no 1° de maio?
A data de meu nascimento, na certidão de batismo, é 2 de maio de 1912. Mas minha mãe dizia que fui registrado no dia seguinte àquele em que de fato nasci. Ela própria comemorava meu aniversário no dia 1° de maio. Quando precisei tirar um certificado no registro civil, já no ginásio, apareceu a data de 30 de abril. Apesar dessa confusão, continuei comemorando meu nascimento em 1° de maio, o que para mim sempre foi uma honra.
Minha infância foi como a de todos os filhos de imigrantes que se estabeleceram no interior de São Paulo. Meu pai veio do Líbano para o Brasil em 1892, comerciou em Atibaia e Bragança Paulista, onde nasci. No final da Primeira Guerra Mundial, vendeu a loja e comprou, na zona rural, uma máquina de beneficiar café. Para nós, meus irmãos e eu, isso foi uma delícia, porque passamos a infância entre a cidade e o campo.
Que carreira seu pai queria que seguisse, o comércio?
Não. Em 1925, quando me preparava para os exames finais no Instituto Moderno de Educação e Ensino, em Santa Rita de Sapucaí (MG), levei um tombo e bati a testa. Por ser hemofílico, sofri uma hemorragia no olho esquerdo. Mesmo sem enxergar de um olho, permaneci ainda dois meses no colégio, porque queria prestar os exames de qualquer maneira. Só depois das provas é que fui para São Paulo com meu pai consultar um médico. Ele nos disse que se tratava de um deslocamento de retina. Fiquei meses de repouso mas não adiantou: acabei perdendo a vista esquerda. Esse acidente modificou o rumo das coisas. Como o médico havia recomendado que eu deixasse os estudos, meu pai procurou, com muita tristeza — pois lamentava ver o filho querer estudar e não poder - encaminhar-me para o comércio de café.
O comércio de café foi, portanto, sua primeira ocupação?
Foi. Trabalhava com meu pai. Quando nos mudamos para São Paulo, em 1928, ele me colocou numa casa atacadista. Fiquei apenas três meses nesse emprego. Foi o suficiente. Um dia disse a meu pai: "Olha, não estou gastando a vista com o que quero e estou gastando lá, marcando fardo." Ele percebeu então que não tinha jeito mesmo e achou que eu poderia trabalhar como autônomo. Comprou cereais, cebola, manteiga, essas coisas todas, e eu fui vendê-las na praça. Não era um trabalho ruim. Enquanto andava pelas ruas, pensava em literatura. Vocês sabem: todos daquela geração começamos nossa vida intelectual pela literatura.
Como foi que ingressou no jornalismo?
Meu irmão Aniz, até hoje médico do Sindicato dos Trabalhadores Gráficos, que também sempre gostou de literatura, conheceu o Israel Souto, diretor do São Paulo Jornal e me apresentou a ele. Passei a frequentar o jornal. Aos domingos era publicado um suplemento de literatura — o Página Verde e Amarela, feito por Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo — no qual mais tarde passei a colaborar. Comecei a trabalhar no jornal no segundo semestre de 1928, depois que meu pai resolveu acabar — já que eu não vendia nada mesmo — com o estoque de cereais. Comecei no jornalismo como se aprendia a profissão naquele tempo: colocando títulos em telegramas. Foi nessa época também que começou a se esboçar, além da literatura, o meu gosto por filosofia e questões sociais. Cândido Motta Filho, que assumira a direção do jornal no lugar do Israel Souto, aconselhou-me a estudar direito, mas eu não podia me imaginar decorando leis. Como ainda não existia a Faculdade de Filosofia, ele me sugeriu que estudasse um pouco de ciências fazendo o curso de farmácia.
Nesse período o senhor já tinha contato com o movimento operário?
Foi em 1929 que conheci a Federação Operária de São Paulo. A primeira vez que fui lá, com Oswaldo Molles, que também trabalhava no São Paulo Jornal, algumas coisas me chamaram a atenção: todos estavam de chapéu e quem fumava colocava o maço de cigarros em cima da mesa, a disposição dos outros, num sinal de solidariedade. Através do Molles fui entrando em contato com esse novo mundo.
Na União dos Trabalhadores Gráficos (UTG) conheci, também em 1929, três figuras excepcionais: Edgard Leuenroth, João da Costa Pimenta e Aristides Lobo. Isso foi no dia 7 de fevereiro, data de aniversário da UTG. Antes da festa havia sempre uma conferência sobre anarquismo, socialismo e reforma social em geral. Depois da conferência vinha o baile, sempre familiar. No palco ficavam umas mesinhas para os maiorais. Não sei bem como acabei sentando numa dessas mesas com os três. O Leuenroth estava no auge de sua carreira, já havia escrito seus livros e era muito conhecido. Ele e Costa Pimenta começaram a me contar histórias do movimento operário. Falaram-me sobre a greve dos chapeleiros, ocorrida em 1914, da famosa greve geral de 1917 e de outras. Acho que, subconscientemente, naquela noite fiquei apegado a história do movimento operário no Brasil.
O senhor se tornou um boêmio no meio de literatos anarquistas. Como era a vida intelectual em São Paulo naquele tempo?
São Paulo, no início da década de 1930, era uma cidade pequena, em que todos se encontravam e se conheciam. Em São Paulo tive oportunidade de ampliar minhas leituras e entrei em contato com a literatura modernista. Ia as livrarias e via aqueles cadernos de antropofagia do Oswald de Andrade... Fiquei conhecendo Oswald e Patrícia Galvão, a Pagu. Apoiei o O Homem do Povo, jornal que eles mantinham, e fui a vários bailes de sindicatos na companhia deles. Comecei também a ler os russos — Dostoiévski, Tólstoi, os contistas, e mais tarde Maiakóvski. Fui sendo envolvido por uma teia de literatos, militantes de esquerda e operários. Por meio do Lívio Xavier conheci, entre outras pessoas, Mário Pedrosa e Miguel Macedo. Conheci também Antônio Piccarolo e Francisco Frolla.
Foram anos muito bons. Aos sábados costumávamos sair da UTG e ir passear pela cidade, comer pizza nas cantinas. Não era só militância, era também camaradagem. Fiquei nesse meio boêmio. Mas o que era a boemia? Não era farra. Defino o boêmio como aquele que não tem relógio, que esquece o tempo. Os intelectuais — a não ser os casados, cujas mulheres não os deixavam sair à noite — encontravam-se nos cafés. Eu ia à cidade e sabia onde encontrar os amigos. As conversas nos 'cafés sentados', à tarde ou à noite, tinham enorme importância intelectual, não apenas em São Paulo, mas em todas as grandes cidades do país. Nos cafés trocavam-se opiniões sobre livros, discutiam-se ideias, falava-se da vida alheia. Fazer boêmia era viver a moda de seu tempo. Fazia parte do estilo de vida urbano ocidental. O "café expresso", que surgiu em 1933, matou o "café sentado" e, com ele, parte da convivência intelectual.
E a ideia de fazer uma faculdade foi abandonada?
Não. Mas, naquele tempo, se me perguntassem que faculdade gostaria de cursar - se eu tivesse vista para estudar — não escolheria nenhuma. Não havia alternativa para quem quisesse estudar humanidades. Naquilo de que gostava, fui um autodidata; aliás, como muitos da minha geração. Cândido Motta sugeriu que eu fizesse farmácia por considerar que esse curso me daria fundamentos para filosofia. O curso era de apenas três anos, o que fez com que meu pai não se opusesse e apenas me aconselhasse a não ler muito. Em 1931, quando perguntávamos o porquê da valência de um átomo, respondiam-nos: "Porque é!" Só depois de formado, quando já lecionava ciências no Ginásio XI de Agosto, em 1933, é que descobri o modelo atômico de Thompson. Fiquei maravilhado! Pela primeira vez lia algo sobre elétrons e prótons! Ainda se ensinava, aqui em São Paulo, que átomo era indivisível. Depois interessei-me, na biologia, pelo estudo dos vírus do mosaico, que interpretávamos como a passagem da matéria inanimada para a vida, enquanto o átomo representava a passagem da energia para a matéria. Isso se ligava muito às minhas preocupações filosóficas. As gerações que se seguiram à minha foram mais objetivas, mais orientadas na escolha das especializações. Penso que de uns dez anos para cá a juventude - ou pelo menos grande parte dela - voltou a se espalhar também pelas letras e artes. Vejo isso como algo muito positivo.
Fale de sua experiência como professor do ensino médio.
Além da experiência no Ginásio XI de Agosto, fundamos na UTG, em 1934, a Escola Proletária Noturna, gratuita e aberta a todo trabalhador sindicalizado. A sala estava sempre cheia. Comecei a ensinar ciências para operários através da estrutura do átomo, o que foi uma experiência realmente positiva. A escola foi fechada em 1935, com a aventura da Aliança Nacional Libertadora.
Como era seu relacionamento com os anarquistas, comunistas e socialistas?
Com os comunistas-stalinistas era muito difícil, como partido. Como para todos que não concordavam com eles. Mas, individualmente, podia-se conviver. Tive alguns amigos entre eles. Com os anarquistas, socialistas e trotskistas foi com quem mais convivi e tive amizades de toda a vida. Também isto aconteceu com os que deixaram o PC depois da Aliança Nacional Libertadora. O que me fez ficar de pé atrás com o bolchevismo foi a leitura de um livro de Trotski, Manifesto da Oposição. Pensei que fosse um manifesto de oposição ao czar. Era de oposição a Stalin. Não entendi nada. Quem me explicou o que aquilo significava foi o Lívio Xavier. Aqui em São Paulo, no entanto, essas divergências não prejudicavam muito o movimento. Os anarquistas, trotskistas e socialistas sempre formavam frentes únicas. Os comunistas chegavam depois e nós mantínhamos nosso pé atrás, mas convivíamos com eles, apesar de sérias divergências políticas e sindicais.
O início da década de 1930 foi um período politicamente tumultuado. Nessa época o senhor ingressou no Partido Socialista. O que o levou a essa opção?
No início de 1932, quando começaram as conspirações em torno da Revolução Constitucionalista, fui convidado com Antão Fernandes para participar do movimento, por sermos constitucionalistas. Não aceitamos. Quando estourou a revolução, as faculdades começaram a fazer batalhões acadêmicos. Reunimos os colegas — porque éramos diretores do Centro Acadêmico de Farmácia e Odontologia — e comunicamos que nos recusávamos a formar batalhão acadêmico; quem quisesse que o fizesse. Precisei sair de São Paulo, ficar dois meses em Piracicaba. Logo depois da revolução começaram a surgir os partidos para as eleições constituintes. O Partido Socialista foi criado logo após a revolução e começou a funcionar efetivamente em 1933. Ingressei no partido por causa de sua proposta de socialismo democrático. Acredito que aderimos à causa do operário por uma questão de sentimento moral, de justiça. Depois é que aprendemos as teorias que justificam o movimento; se as aprendemos simultaneamente, não lhes damos tanto valor quanto ao sentimento moral de justiça. Afinal, o que fazia eu, de família abastada, no movimento operário? O que faziam Mário Pedrosa, Caio Prado e tantos outros?
Em l934 houve o choque armado com os integralistas, no Largo da Sé. Como sou hemofílico, não participei diretamente do choque. Colocaram-me como elemento de ligação. Acompanhei todo o barulho do interior de um café. Nesse choque houve muitos feridos e a morte de um estudante comunista. Eram tempos agitados, de passeatas e ameaças dos integralistas, que acabaram sufocados pela esquerda. No segundo choque com eles, na avenida Paulista, fui mais cauteloso e não compareci. Quando a Aliança foi fundada, em 1935, o Partido Socialista tinha pelo menos dez diretórios. A Aliança acabou com todos.
O senhor apoiou a Aliança Nacional Libertadora?
A Aliança foi fundada como uma grande frente nacional. Todos foram convidados a participar: anarquistas, trotskistas, socialistas. Eu já pertencia ao Partido Socialista e me opunha a ideia de um partido filiar-se a outro. Propunha apenas um apoio programático a Aliança. Cheguei a escrever com Miguel de Macedo um pequeno manifesto, aceito também pelos trotskistas. Como os anarquistas não entram em partido, não participaram da Aliança. Edgard Leuenroth compareceu ao lançamento do movimento em São Paulo, apoiando-o contra o fascismo e pela democracia. Ele achava, no entanto, que um movimento como aquele poderia se empobrecer seguindo um chefe, por mais brilhante que fosse.
No manifesto que escrevemos, propúnhamos também o apoio à luta pela democracia, contra o fascismo, sem filiar o Partido à Aliança, mas facultando a inscrição individual nela. Eu não me inscrevi, como muitos outros. Em 1934, trabalhava ativamente no Partido Socialista; era secretário da comissão regional da comarca da capital. Em 1935 fui da comissão central, como secretário de propaganda. Tinha então 23 anos.
E sua visão? O senhor não tinha dificuldades com a vista?
Não. Meu olho direito funcionava muito bem. Muito bem, não. Era míope. O Waldemar Belford de Matos, que era oftalmologista e meu amigo, continuava tratando dos meus olhos e proibindo leitura. Fui economizando leituras, com medo de perder totalmente a visão. Mas não adiantou. Durante uma viagem que fizemos ao interior de São Paulo, em fins de 1935, para recompor o Partido Socialista, sofri outro deslocamento de retina, desta vez a do olho direito. Fiquei hospitalizado durante 30 dias, de olhos vendados num pré-operatório e num drama medonho, na esperança de que a retina se justapusesse. Se eu estivesse em São Paulo ou tivesse chegado em tempo, talvez desse para salvar a mácula e continuar enxergando para ler. Quando saí do hospital, o Belford fora preso. Havia estourado a Intentona Comunista. A rua de minha casa foi vigiada por alguns dias. Por eu estar acamado, relaxaram a vigilância e pude me esconder na fazenda de um tio, em Bragança Paulista. Levei para lá todos os livros que podia, mas que se perderam com os ratos. Pensei que a repressão terminasse logo; mas não, continuou até o Estado Novo.
Daí para a frente, o senhor teria que se adaptar à cegueira.
Exatamente. Isto me foi facilitado pela dedicação de toda a minha família e pela ajuda dos muitos amigos que fiz na Faculdade de Farmácia, na militância política e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo. Não me deixaram à margem, mas continuaram me chamando para sua companhia. Consegui, a custo, convencer meus pais de que eu devia continuar meu modo de vida, senão não adiantaria continuar vivendo. Eles se habituaram com meus telefonemas avisando que não iria jantar. Sabiam que algum amigo me deixaria em casa a qualquer hora da noite. Eu não saía apenas para reuniões e jantares com amigos, mas também para ir às vezes ao teatro, concertos e conferências. Acompanhei conferências da missão europeia que veio fundar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, sobre história, geografia humana e literatura. Como minha memória era visual, comecei a treinar a memória auditiva. Depois de cada conferência, datilografava, em casa, o que conseguia apreender. Desenvolvi assim uma memória auditiva boa e necessária ao prosseguimento de minha vida intelectual.
Como ficou sua visão do mundo depois de perder a vista?
Eu não perdi a visão já fixada, nem a capacidade de renová-la sempre, com as informações vindas por diversas vias. É no sonhar que não estou na situação de cego. No sonho, eu vejo com meus próprios olhos os cenários, as pessoas e a movimentação. Acordado, os sentidos restantes, principalmente a audição e o tato, são vias de mentalização do que é exterior. E isto se faz de forma imediata e automática, da mesma maneira que através da vista. É uma situação análoga a de ouvir rádio. Cada um imagina a seu modo o que suscita a transmissão dos anúncios, jogos e novelas. Neste aspecto, para mim, o que muda do rádio, da TV e do cinema para o teatro é ouvir a voz humana direta. Aqui, fico mais próximo da minha situação real de ver o mundo. Nela estou no palco e no enredo.
E a Fundação para o Livro do Cego no Brasil?
Foi criada ao terminar a última guerra, por três mulheres admiráveis: Adelaide Reis Magalhães, Dorina Gouvea Nowill, cega, idealizadora e principal executora do projeto até hoje, e Regina Pirajá da Silva, superintendente da Imprensa Braille. As duas últimas foram aos Estados Unidos, onde frequentaram cursos especializados e obtiveram a doação de máquinas impressoras braille. Mas estas só seriam remetidas se algum órgão governamental garantisse verba para seu funcionamento. Fomos ao professor Fernando de Azevedo, então Secretário de Educação que a concedeu imediatamente, interessado no empreendimento. Vieram as máquinas e começou a impressão de livros e da revista Relevo. Hoje a fundação já está na fase do livro falado e do ensino da leitura pelo optacon. Ao lado disso, ela cuidou também de habilitar cegos para o mercado de trabalho, principalmente na indústria, tendo conseguido instalar no Senai um serviço especial para esse fim.
O senhor acompanhou a criação da Universidade de São Paulo?
Desde 1933, ouvia falar na reunião das faculdades existentes em uma universidade, para a qual também iriam criar uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Pretendia entrar nesta faculdade quando ela foi instalada, em 1934, o que não fiz por estar envolvido pela efervescência política. Mas, como já disse, acompanhei conferências de seus professores.
O senhor não tinha dificuldades para acompanhar os cursos?
Só no final de 1938 é que fui à Faculdade de Filosofia ver se podia acompanhar algum curso como ouvinte. Fiquei surpreso ao saber que poderia frequentá-los até mesmo regularmente, apesar da minha deficiência visual.
Em 1939 eu me inscrevi como aluno ouvinte, com receio de não poder cumprir com as exigências de um curso regular. No final do ano, os professores acharam que sim, e eu prestei os vestibulares no ano seguinte.
As leituras recomendadas pelos professores eram feitas em casa, com a ajuda de minhas irmãs, principalmente a Cecília. É evidente que se um professor exigisse leitura de muitos livros de uma só vez, ficava difícil. Não podia ser mais que um. Essa limitação influiu no ritmo de minha vida escolar. Foi-me sugerido que eu pedisse ao Conselho Universitário isenção de provas escritas, o que não fiz. Solicitei apenas que pudesse fazê-las com máquina datilográfica. Já datilografava bem e conseguia fazer esquemas mentalmente, antes de escrever. Mas necessitava, às vezes, que alguém visse em que ponto eu tinha parado. Numa prova de geografia humana, fiquei sentado na última carteira, sem ninguém ao lado. Depois de ter datilografado quatro páginas, verificou-se que só l/4 da primeira página estava escrito. O rolo da fita não retornava automaticamente e tinha terminado. Mas nunca houve qualquer dificuldade no meu relacionamento com colegas e professores, que não me davam tratamento diferenciado devido à minha deficiência visual.
Quando o senhor entrou para a faculdade, já era casado?
Não. Só me casei em 1951, e depois disso minha vida intelectual passou a ser acompanhada por minha esposa.
De que modo sua vida universitária foi se entrosando com a política?
Em 1940, começamos - professores e alunos da faculdade - a participar do movimento universitário de resistência ao Estado Novo, fundado na Faculdade de Direito. Entramos em contato com o movimento através de Paulo Emílio Salles Gomes, que era capaz de reunir as mentalidades mais diversas em torno de si. O movimento se espalhou por todo o Brasil, principalmente depois da passeata do silêncio, realizada em 1943, em que estudantes foram agredidos pela polícia.
Em 1945, participei da fundação da União Democrática Socialista com professores e estudantes da minha faculdade e outros socialistas que já tinham milhado em diferentes agrupações de esquerda. A UDS constituiu um dos núcleos da Esquerda Democrática, que se transformou em Partido Socialista Brasileiro em l947.
E por que o senhor resolveu retomar sistematicamente os estudos?
Eu já estava achando monótono permanecer apenas como aluno ouvinte, sem responsabilidades escolares. Em 1947, o professor Fernando de Azevedo perguntou-me porque não terminava o curso. Antônio Cândido também achava que eu devia terminá-lo. Decidi-me quando dois amigos, Lólio Lourenço de Oliveira e Oliveiras da Silva Ferreira, ingressaram no curso de Ciências Sociais, pois seriam meus companheiros de estudo.
Quando o senhor se tornou professor da Faculdade?
O professor Fernando de Azevedo me chamou para trabalhar com ele em 1950. Eu achava que um dia poderia vir a ser convidado pelo Antônio Cândido para trabalhar na faculdade. Mas nunca imaginei que ele me levaria ao Fernando de Azevedo para receber a notícia diretamente dele, a quem tanto admirava. A pergunta "Azis, quer trabalhar conosco?" me fez tremer. Será que eu consigo?, perguntei. Pedi que me deixassem experimentar. Durante o ano de 1951, dei seminários nos cursos de Fernando de Azevedo e Antônio Cândido. Foi a forma que encontrei para que vissem até que ponto eu poderia chegar. No final do ano, eles propuseram minha contratação como auxiliar de ensino e pesquisa, o que para mim foi uma dádiva. Eu militava no Partido Socialista desde 1929 e já estava cansado das reuniões, assembleias e cursos. Pensei que seria bom mudar de vida. Fiquei como auxiliar de ensino. Éramos apenas quatro professores para dar conta de todos os cursos que oferecia a cadeira de Sociologia II.
Mas a sua contratação não foi imediata... Houve algum entrave burocrático?
Aí é que tomei consciência do que a cegueira significava para os outros, para os que não me conheciam e não eram meus amigos. Deparei com a lei! O pedido de minha contratação foi feito, o governador o aprovou e a publicação saiu no Diário Oficial. No exame médico, no entanto, fui reprovado. Mas eu não tinha nada, não tinha problema de saúde. O laudo médico atestou a minha cegueira, e cegueira é condição para aposentadoria. Para encurtar a questão, fiquei lecionando sem contrato na faculdade, e a minha nomeação levou dois anos para sair. Os médicos e a advogada do serviço médico do Estado foram à faculdade mais de uma vez para verificar como eu trabalhava. Assistiram às minhas aulas e insistiram em saber como eu fazia para corrigir provas. O professor Fernando de Azevedo mostrou provas que eu havia corrigido: as anotações eram feitas nas margens do papel, com letra da Nena. Apesar de tudo, eles resistiram, e o governador anulou o meu contrato. A questão só foi resolvida através de uma lei especial, feita a pedido do governador Lucas Nogueira Garcez e por interferência de José de Santa Cruz, que na época era dominicano e assistente espiritual do governador. Eu havia me recusado a pedir uma lei especial. Achava que o governador deveria levantar o obstáculo que a lei colocava diante de mim, pois meu diploma de licenciado me autorizava a lecionar em qualquer ponto do país. Também achava que deveria ser feita uma lei que beneficiasse não só, a mim, mas a todos os cegos. Os advogados do departamento jurídico alegaram-me que um processo desse tipo levaria anos para ser julgado, em razão da especificidade de cada caso. Finalmente, com uma bonita mensagem do governador, a lei foi para a Assembleia Legislativa, e a sua aprovação, em 1953, autorizou a universidade a me contratar.
Quando começou suas pesquisas sobre o movimento operário?
Fiz o curso de especialização, que correspondia à pós-graduação, com os professores Fernando de Azevedo e Charles Morazé. Com o primeiro, seguindo um curso de sociologia dos partidos políticos, com o segundo, trabalhando em pesquisa. Já nessa época (1950), tinha começado a fazer pesquisas sobre o movimento operário. O trabalho com Fernando de Azevedo era sobre a consciência de classe do proletariado de São Paulo. Mas naquele momento eu trabalhava com base em entrevistas, não queria ainda pesquisar a história do movimento operário. Interessei-me por estudar o comportamento eleitoral dos operários depois do estouro das eleições de 1945. Depois que Getúlio foi eleito, em 1950, os operários meus conhecidos se desiludiram. "Está cansado, está velho", diziam. Resolvi entrevistar principalmente gráficos e tecelões, para saber a quem haviam dado os seus votos na eleição de 1947, em que foram candidatos, ao Senado, Getúlio Vargas e Luiz Carlos Prestes. Em São Paulo, o operariado havia dividido a votação entre ambos. Na universidade, até então, não se tinha feito pesquisa a respeito do comportamento operário.
Como foi a acolhida ao seu trabalho sobre o comportamento eleitoral?
Em 1954, por ocasião do quarto centenário da fundação de São Paulo, houve muitos congressos internacionais na cidade. Entre eles, o I Congresso Brasileiro de Sociologia, promovido pela Sociedade Brasileira de Sociologia, cujo presidente era Fernando de Azevedo. Antônio Cândido sabia que eu já havia feito o levantamento de dados da minha pesquisa e sugeriu que eu aproveitasse o congresso para fazer uma comunicação sobre o voto operário. Não se tratava de um prognóstico eleitoral, mas de uma análise do comportamento do proletariado nas eleições. Este foi, ao lado do trabalho de Orlando de Carvalho, feito em Minas Gerais, um dos primeiros estudos sobre pesquisa eleitoral realizados no país.
Quando o senhor começou a trabalhar com a história do proletariado no Brasil?
Logo após apresentar meu trabalho sobre o voto operário, enfronhei-me na história do proletariado. Como eu queria conhecer essa história desde a imigração, convidei a professora Paula Beiguelman, assistente da cadeira de Política, para trabalhar comigo. Manipulamos juntos as informações sobre o trabalho operário em suas primeiras décadas, do fim do século passado até 1920. Depois a Paula se voltou para a passagem da escravidão ao trabalho assalariado. Eu prossegui com o trabalho sobre o proletariado urbano.
Qual era a sua motivação principal?
Queria fazer um trabalho que esclarecesse o que foi o proletariado. Falava-se muita coisa sobre os primórdios do movimento operário, mas por 'faro'. Achei então que era preciso escrever um trabalho que funcionasse como um painel, que elucidasse o que de fato tinha sido o movimento operário até 1940. Então, na década de 1950, comecei a escrever uma série de artigos sobre o tema.
Quando apareceu o trabalho sobre as relações entre sindicato e Estado?
Em 1964, como tese de livre-docência, e se chama Sindicato e Estado: suas relações na formação do proletariado de São Paulo. Muitos me perguntavam se eu iria defender a tese apesar das circunstâncias políticas que estávamos vivendo. Respondia que sim e a defendi em novembro daquele ano. O livro contém capítulos sobre a indústria e o proletariado, as condições de vida, as greves e a organização sindical.
Faltaram três capítulos, sobre as ideologias, a ação e a personalidade dos militantes. Não tive tempo nem condições de trabalhá-los, particularmente depois de 1968, quando a ditadura ficou mais forte. Não só por causa da ditadura, mas também por ter assumido, com o Ruy Coelho, a chefia do Departamento de Ciências Sociais e por integrar a Comissão de Pós-Graduação da faculdade.
E como o senhor avalia o relacionamento da universidade com o Estado?
A universidade não é partido político nem deve se deixar levar por qualquer um deles. Isso não quer dizer que a universidade deva ser omissa. Ao contrário, tem a responsabilidade de controlar o uso que a sociedade faz da produção acadêmica. Há uma cobrança muito grande em relação à produtividade da universidade e ao que ela faz em benefício da comunidade. Primeiro, só pelo fato de existir, a universidade já serve à comunidade. Afinal, quem forma os médicos, politécnicos, advogados e demais profissionais de que a sociedade se serve? Além disso, fornece o conhecimento básico, que leva às descobertas e ao desenvolvimento tecnológico do país, e mantém a atividade cultural, artística e literária, responsável pela civilização de um povo.
Em segundo lugar, as universidades não são todas iguais. Como acontece com os setores de qualquer instituição, há aquelas que são boas e as que são ruins. De modo que não devem ser cobradas indiferenciadamente. Além disso, a cobrança não pode ser unilateral. Eu pergunto: o que a sociedade está fazendo pela universidade? É preciso que tenhamos um Estado, um governo, que não ignore o que seja uma universidade. Ela tem que cobrar do Estado e da sociedade o restabelecimento de seu prestígio e a parte que lhe cabe no orçamento da Nação. Só assim ela poderá continuar ajudando o país a se desenvolver e a melhorar as condições de vida do seu povo.