Entrevista concedida a Erney P. Camargo e Gerhard Malnic (Departamentos de Parasitologia e Fisiologia, USP) e Vera Rita da Costa (Ciência Hoje).

Midia

Part of Entrevista a Alberto Carvalho da Silva

Publicada em maio de 1988.

Nos anos 20, menino nascido numa aldeia de Portugal, Alberto Carvalho da Silva morou em porões e cortiços de São Paulo. Nos anos 30, cursou medicina, ciências sociais, e filosofia... não satisfeito, estudou matemática e foi por dois anos aluno ouvinte do curso de química. Nos anos 40, fez-se pesquisador em fisiologia, dedicando-se aos aspectos bioquímicos e metabólicos da nutrição. Nos anos 50 e 60 esteve ligado à criação da Associação de Auxiliares de Ensino — semente da Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp) — e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), de que veio a se tornar diretor científico em 1968. Arrancado da universidade e da Fapesp em 1969, pelo AI-5, inventou nos anos 70 um meio não só de permanecer no país como de continuar prestando serviço à ciência: tornou-se consultor da Fundação Ford. Hoje diretor presidente da Fapesp, tendo também coordenado a Comissão das Sociedades Científicas até o início deste ano, Alberto Carvalho da Silva credita suas realizações à sorte e deixa entrever uma única mágoa: a anistia permitiu-lhe voltar à vida acadêmica, mas não lhe pareceu possível, após 11 anos de afastamento, retomar sua atividade de pesquisador... "e — diz ele — só me sinto totalmente bem e realizado no laboratório".

Que situações o levaram a optar pela área de nutrição e que condições lhe permitiram estabelecer um laboratório?

Minha opção deveu-se, principalmente, à natureza do Laboratório de Fisiologia da Faculdade de Medicina de São Paulo que, sob a orientação de Franklin de Moura Campos, se concentrava em nutrição e composição de alimentos. Os primeiros auxílios de pesquisa que recebemos vieram dos Fundos Universitários de Pesquisa, criados durante a Segunda Guerra Mundial. Depois obtive uma bolsa da Fundação Rockefeller para estagiar no laboratório de Nutrição da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, com George R. Cowgill, um destacado colaborador de Mendel e Osborne, e seu assistente, Willard A. Krehl. Meu interesse, no entanto, talvez pela formação que recebi no curso de Química da Universidade de São Paulo, estava mais voltado para os aspectos bioquímicos e metabólicos da nutrição, e não para a avaliação de situações nutricionais ou para o valor nutricional dos alimentos.

Durante meu estágio na universidade de Yale, surgiu a ideia de se pesquisar com um novo animal porque, em nutrição experimental, a introdução de novas espécies dá margem à descoberta de novas manifestações clínicas e caminhos bioquímicos. Comecei então a trabalhar com o gato doméstico, tentando detectar diferenças em relação ao rato, que era a espécie tradicionalmente utilizada em experimentação. Desde o início, o gato mostrou particularidades muito interessantes. Essa linha de trabalho foi continuada em São Paulo e se constituiu em minha principal atividade de pesquisa entre 1948 e 1968.

Esses trabalhos são exclusivamente de pesquisa básica ou podem ter aplicações?

Eles têm importância em termos práticos na medida em que permitem detectar aspectos da patologia da desnutrição que podem contribuir para melhor conhecimento da patologia humana. Por exemplo, o gato apresenta uma necessidade proteica muito grande, maior que a de qualquer outra espécie. Tem também uma necessidade específica de ácido nicotínico, vitamina cuja carência provoca pelagra. O homem, o cão e o rato só apresentam essa carência quando a dieta não contém quantidade suficiente de um aminoácido, o triptofano. Se contiver, quase todas as espécies são capazes de convertê-lo em ácido nicotínico. O gato não faz essa conversão, o que cria uma excelente oportunidade para se estudar os aspectos específicos da carência de ácido nicotínico. Esses estudos metabólicos não chegaram a ser feitos porque fui afastado da universidade, em 1969.

Do mesmo modo, o gato se presta ao estudo do metabolismo de uma outra substância, a colina, da qual tem necessidade, independentemente do aminoácido metionina. Apresenta esteatose e cirrose hepática mesmo numa dieta com níveis adequados de metionina, porque não sintetiza colina a partir dela. Estes são alguns exemplos de diferenças metabólicas cujo estudo detalhado poderia gerar conhecimentos aplicáveis à patologia humana. Várias dessas particularidades do gato e sua relação com a nutrição humana ainda estão por ser esclarecidas.

Outro trabalho importante que poderia contribuir para melhor conhecimento da nutrição no homem foi o estudo dos mecanismos de absorção intestinal da tiamina, que realizei em colaboração com Rebeca De Angelis. Em níveis baixos, essa vitamina é absorvida no intestino contra gradientes de concentração, enquanto em níveis altos existe uma barreira que impede essa absorção. Alterações tanto na capacidade de absorção contra gradientes como na resistência à difusão da tiamina podem contribuir para uma melhor compreensão das causas da carência dessa vitamina, que resulta numa doença extremamente grave, o beribéri. Também os mecanismos de excreção da tiamina são curiosos. Quando a concentração no sangue é alta, ela é excretada pelo fígado e pelos rins, como se fosse uma substância nociva. No entanto, quando é fosforilada e integra a molécula da cocarboxilase, ela passa a ser reabsorvida pelos rins. Há ainda outro aspecto a ser explorado: existe uma barreira fisiológica que impede a tiamina de penetrar o sistema nervoso central, embora ela seja vital para seu funcionamento. A compreensão de fenômenos dessa natureza pode contribuir muito para a análise da fisiologia da nutrição no homem.

Na primeira fase de seu trabalho, anterior à criação do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e da Fapesp, deve ter havido pouco incentivo. Como foi possível iniciar uma carreira de sucesso?

Não foi fácil: as primeiras gaiolas de gato que usei no Brasil foram feitas por mim, com caixotes da bagagem trazida dos Estados Unidos e telas de arame compradas em armazéns de material para construção civil. Nas primeiras experiências que fiz, ao voltar, usei girinos de sapo. Os recipientes para criá-los eram vasilhinhas de plástico que Moura Campos descobriu na feira do largo do Arouche. Era nessa base que se pesquisava naquela época. Um dos primeiros auxílios que recebi foi da Merck. Um representante visitou o laboratório, na Faculdade de Medicina, e me conseguiu um auxílio de três mil dólares. Outro auxílio, dado pela Laborterápica Bristol, me permitiu estudar a absorção e distribuição da vitamina B12, da qual o laboratório pretendia lançar no mercado um preparado de absorção lenta. Eram recursos esparsos, conseguidos com muito esforço. O restante era obtido das verbas da própria Faculdade de Medicina, insistindo com o diretor, com o almoxarife ou com quem fosse necessário.

Quando eu estava nos Estados Unidos, o José Fernandes Pontes, que havia sido meu colega de turma, enviou-me cerca de cinco mil dólares para que eu comprasse equipamentos. Foi essa contribuição generosa que tornou possível instalar o meu laboratório na Faculdade de Medicina de São Paulo. A vantagem daquele tempo é que a pesquisa era muito menos instrumentalizada. Os equipamentos, além de poucos, eram muito mais baratos e de duração mais longa. Quem conseguisse um fotocolorímetro e uma balança analítica estava equipado para trabalhar por, no mínimo, dez anos. Atualmente os equipamentos são muito mais diversificados, mais caros e muito mais rapidamente superados por outros mais modernos. Quem não pode acompanhar a renovação dos instrumentos de trabalho logo fica desatualizado em pesquisa.

No livro Anarquistas, graças a Deus, Zélia Gattai cita o senhor e seu irmão... Qual a relação?

É um pouco folclórica. Havíamos chegado de Portugal havia menos de um ano. Eu tinha perto de oito anos, e estudávamos na Escola Sete de Setembro, na rua da Consolação, perto da alameda Santos. Vínhamos de uma aldeia pequena e nosso sotaque era tremendo. Éramos, de certo modo, motivo de diversão. A professora brincava conosco. Cada coisa que falávamos, nos mandava repetir. Isso marcou muito, e a Zélia, também aluna da escola, trouxe a história a público. Inteiramente folclórico. Nada de ideológico; nenhuma relação com o anarquismo...

Como foi sua chegada ao Brasil, como se deu sua adaptação?

Bem, apesar dos problemas de sotaque... Cheguei em 1924, aos sete anos. Nos primeiros dois anos, fora o tempo em que estava na escola, brincava só com meu irmão, que é um ano e meio mais velho. Nessa fase, vivemos em porões e cortiços da rua Bela Cintra e da rua Maceió, e havia poucas crianças da nossa idade. Depois mudamos para a vila D. Paula, na rua Coronel José Eusébio, e foi aí que de fato nos integramos socialmente com outras crianças.

Sua origem portuguesa facilitou ou dificultou a progressão em sua carreira?

Não creio que tenha tido qualquer influência. Nunca me senti favorecido ou prejudicado por não ser brasileiro nato. Há 50 anos que nem penso nisso.

Quando o senhor lá chegou, em 1934, a Faculdade de Medicina estava voltada para a clínica. A pesquisa científica era praticamente inexistente. Como nasceu seu interesse?

Começou ainda no tempo de estudante. O José Fontes, o Michael Jamra e eu formávamos um grupo inseparável. Assinávamos revistas especializadas de medicina, como Medicine, Acta Scandinavica, Journal of Clinical Investigation, comprávamos livros e nos reuníamos semanalmente para discussões. Cada um de nós tinha o compromisso de ler um artigo ou livro e relatar aos outros.

Disso resultou um primeiro projeto de pesquisa sobre amebíase, desenvolvido praticamente todo na Santa Casa e na Parasitologia. Era fundamentalmente um estudo epidemiológico com material colhido dos doentes de ambulatório e enfermarias da Santa Casa — uma tentativa de estabelecer relações entre a presença de Entamoeba histolítica nas fezes e a evolução da sintomatologia. Esse nosso primeiro trabalho científico foi publicado em livro, sob o nome Amebíase, pela Cia. Melhoramentos.

Ao mesmo tempo, o José Pontes iniciou, com participação minha e do Michael Jamra, estudos sobre coprologia clínica, em que se procurava diagnosticar patologias digestivas através da presença de lípides, proteínas, fibras musculares não digeridas etc, nas fezes dos doentes.

Nessa época, internou-se na 2a Enfermaria de Medicina de Homens da Santa Casa um paciente com uma insuficiência pulmonar muito grave. O quadro clínico era chamado, na época, broncopneumonia crônica cianótica. O Michael Jamra se interessou muito pelo caso e decidimos estudar a fisiopatologia pulmonar. Medimos o oxigênio no ar alveolar e no sangue, usando aparelhos de Van Slyke e de Haldane que encontramos na Farmacologia da Faculdade de Medicina. O catedrático de Farmacologia, Jayme Regalo Pereira, me autorizou a montá-los e usá-los, o que me custou grande esforço. Mas conseguimos fazer o estudo e publicamos os resultados nos Anais da Faculdade de Medicina.

senhor ingressou também nos cursos de ciências sociais e química da USP. Que o levou a isto? Como foram essas experiências?

Entrei nos cursos de ciências sociais e filosofia por dois motivos. O primeiro foi a influência de meu irmão e seus amigos, todos alunos da Faculdade de Direito, poetas e escritores. Convivia muito mais com eles do que com os colegas da Faculdade de Medicina... Cheguei a tocar tamborim num chorinho que organizaram. O segundo motivo foi que a Faculdade de Filosofia dava uma bolsa de estudo ao aluno que cursasse simultaneamente ciências sociais e filosofia. Acumular esses dois cursos e o de medicina foi difícil, mas extremamente agradável, principalmente pelos amigos que fiz.

No caso da química, que cursei dois anos como ouvinte, o motivo foi diferente. Foi uma decisão de aumentar a base para a investigação científica em bioquímica, que é o que de fato eu pretendia fazer naquele tempo. Durante o curso aproveitei mais a influência do Pascoal Senise no curso de analítica e do Rheinbolt nas aulas de química geral e inorgânica. Além disso, fiz grandes amigos: Ernesto Giesbrecht, Giuseppe Cilento, Madeleine Perrier, Astrea Giesbrecht, Marcelo Moura Campos e muitos outros.

Na época em que o senhor estudou, não havia uma pós-graduação organizada como há hoje. Sentiu falta dessa especialização? Julga que conseguiu suprir a pós-graduação com vantagem?

De fato, fazia falta. Tentei suprir as falhas de minha formação estudando por conta própria, como já disse. Além da química, tentei estudar matemática e cheguei a saber bastante cálculo diferencial e integral, mas nunca consegui incorporar esse conhecimento ao meu trabalho. Fiz vários cursos de estatística.

Em tudo isso, faltou a disciplina e a integração que uma boa pós-graduação pode dar. Mas acho que a falta de pós-graduação estimulou minha iniciativa pessoal, deu-me força e autoconfiança para superar uma porção de obstáculos normais do dia-a-dia, que existem em todos os laboratórios do mundo, mas que muita gente superestima, transferindo-lhes a responsabilidade por seu insucesso e sua inércia.

Uma vez formado, como retornou à Faculdade de Medicina?

No último ano, o Jaime Pereira disse-me que estava procurando um assistente para fazer a ligação entre a Clínica Médica e a Farmacologia. Não decidi nada, pedi tempo para pensar. Um dia, eu ia subindo a avenida Rebouças de automóvel com meu pai e dei carona ao Luiz de Souza, funcionário da Fisiologia. Na conversa, ele comentou que Demosthenes Orsini havia ido para os Estados Unidos e que a vaga permitia substituição. Fui à casa do dr. Franklin de Moura Campos propor-me como substituto, mas ele me ofereceu uma vaga nova de assistente. Foi assim que entrei na carreira científica: da maneira menos romântica possível, graças a uma carona de automóvel!

O que se pesquisava na Fisiologia, naquele tempo?

O dr. Franklin trabalhava com metabolismo basal do homem, a nutrição experimental no rato e dosava vitamina A, ácido ascórbico e ferro em alimentos. Paula Santos também trabalhava nesses assuntos. O Demosthenes Orsini estudava metabolismo basal. O Tito Cavalcanti interessava-se por estudos sobre a transmissão do som no aparelho auditivo. A atividade científica no laboratório era bastante intensa. Trabalhava-se muito, mas de maneira um pouco desordenada. Não havia uma linha de pesquisa definida, mas o ambiente era excelente.

conceito das disciplinas entre os alunos não era dos melhores... A que atribui essa fama?

De fato, o conceito não era muito bom. Mas, naquele tempo, que cadeiras tinham bom conceito? No entanto, a Anatomia era organizada, a Histologia dava um ótimo curso. A Parasitologia, com a figura de Samuel Pessoa, era considerada a melhor de todas. A Fisiologia acompanhava bem o nível geral da Faculdade de Medicina.

Samuel Pessoa foi responsável pela formação de toda uma geração de grandes cientistas. Que influência teve sobre o senhor?

Foi meu professor de parasitologia no 2° ano do curso médico. Ele combinava as qualificações de um bom cientista com a preocupação com a saúde pública. Transmitia-nos um profundo interesse pelas condições da população pobre, da exposição a doenças, a missão do governo e a responsabilidade do médico em procurar melhorar essa situação. Suas aulas teóricas eram excelentes. Ninguém perdia uma só palavra. O curso prático também era o melhor que se podia desejar. Somente a de histologia, no que cabia ao José Oria, podia ser comparado a ele. Isto foi na época de estudante. Depois de formado, a influência foi grande, mas indireta, através de seus assistentes.

Como compararia a Fisiologia daquela época com o atual departamento, do ponto de vista do conhecimento em fisiologia?

Não há comparação possível. Naquele tempo não se tinha nada de neurofisiologia ou fisiologia cardiovascular. Em endocrinologia, por exemplo, o primeiro curso foi dado pelo dr. Franklin. Não havia nada de renal, nem de fisiologia do meio interno, embora o Franklin tivesse trabalhado com o Cannon, nos Estados Unidos. Não havia nenhuma tendência a recuperar essa defasagem. Agora a situação é diferente, existem mais frentes de trabalho e a integração com outras áreas é muito desenvolvida. Os departamentos atuais são maiores e o treinamento de pesquisadores no exterior é mais freqüente. O dr. Franklin foi o primeiro a sair do país, em 1927-28, com bolsa da Fundação Rockefeller, depois saiu o Orsini, em 1940, e eu em 1946. Quer dizer: em 15 anos apenas três pessoas da Fisiologia foram estagiar no exterior!

ambiente na Faculdade de Medicina, em 1940, era estimulante à pesquisa experimental?

Não muito. Fazíamos por convicção. Foi o Cario Foa quem introduziu na faculdade o hábito de fazer reuniões quinzenais das diversas áreas, para debater assuntos de fisiologia. O dinamismo tornou-se maior a partir dos anos 50, com a entrada de homens como Wilson Beraldo, Isaías Raw, Michel Rabinovitch, Luiz Carlos Junqueira, Ivan Motta, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, José Ferreira Fernandes, Leonidas Deane, Vítor Nussenzweig. A década de 1940 e o início dos anos 50 foram de capitalização.

Nos anos 50 e 60, havia grande entusiasmo, não apenas pela pesquisa, mas pelo ensino. Passavam-se os domingos na "sala de gatos", trabalhando e, ao mesmo tempo, discutindo questões salariais e a criação da Associação dos Auxiliares de Ensino...

Foi um tempo ótimo, de muito trabalho e atividade política. A Associação dos Auxiliares de Ensino, que deu origem à Associação dos Docentes da USP (Adusp), surgiu como reação a Jânio Quadros, suas demissões, cortes de verbas. Foi uma ideia de Fernando Henrique Cardoso, Armando Piovesan, Carlos Lira, Luiz Rey, Abrão Fajer, Eros Ehrart e outros.

A característica mais importante da associação era não admitir catedrático. Quem assumisse regência de cátedra perdia a condição de associado. Era uma forma de resistência à autoridade absoluta do professor catedrático, que podia fazer o que bem quisesse com as verbas e com a carreira dos outros pesquisadores. O auxiliar que não estivesse de mãos dadas com o catedrático não tinha vez. O espírito da Associação de Auxiliares de Ensino nasceu como uma reação às arbitrariedades de Jânio e ao poder excessivo dos catedráticos.

O problema que mais mobilizou e que permitiu criar a associação foi a reestruturação da carreira docente. Como foi essa luta?

A associação começou a adquirir certa projeção quando conseguiu eleger um representante no Conselho Universitário. Fui o primeiro a representá-la; o assento no conselho deu-lhe força e aumentou o entusiasmo. No governo do Jânio, o salário do tempo integral caiu a níveis baixíssimos, incompatíveis com a dedicação exclusiva. Impossível seguir carreira naquelas condições. No início do governo Carvalho Pinto, fizemos uma proposta de reestruturação da carreira em documento que expunha nossas razões e a levamos ao governador. Já o havíamos procurado outras vezes, quando ele era o secretário da Fazenda de Jânio Quadros, para discutir os problemas da universidade. A resposta que nos dava era sempre a mesma: "Não há recursos, não há dinheiro..."

Como governador, no entanto, Carvalho Pinto teve reação diferente. Quando apresentamos a proposta de reestruturação e não obtivemos resposta, eu o procurei, num sábado de manhã, para lhe comunicar nossa decisão de fazer greve. Quem me atendeu foi Hélio Bicudo, que era o chefe de gabinete. Expliquei a situação e Hélio replicou que a greve era ilegal. Esclareci que conhecíamos os riscos, inclusive de demissão, mas estávamos decididos. Foi então que o Carvalho Pinto me recebeu, dizendo que não era preciso fazer greve: estava disposto a aprovar nossa proposta. A promessa foi cumprida. A proposta foi aprovada rapidamente e sem alterações. Creio que o que decidiu essa luta foi nossa convicção. Íamos de fato entrar em greve, quaisquer que fossem as conseqüências.

Entre as reivindicações da Associação de Auxiliares estava a criação da Fapesp. Até que ponto vocês influenciaram essa criação?

Nunca soube exatamente o quanto a inclusão da criação da Fapesp em nossas reivindicações foi importante. Paulo Vanzolini me disse uma vez que foi, que se esperava uma manifestação espontânea de interesse da comunidade científica. A inclusão desse item em nossas reivindicações foi polêmica. Alguns alegavam que era reivindicação de catedrático, mas valeu o argumento de que nossas campanhas deveriam ter um caráter universitário, não apenas salarial.

A proposta da criação da Fapesp não era, no entanto, original da Associação dos Auxiliares de Ensino. Ela estava prevista na Constituição paulista de 1947. Foi uma proposta do Caio Prado, José Reis, Adriano Marchini e outros. Entre 1947 e 1960 houve vária tentativas de instituí-la e foram propostas diferentes formas de organização. A que prevaleceu foi, a meu ver, a melhor de todas. Creio que Ulhoa Cintra, reitor da USP na época, teve uma influência decisiva nessa medida de Carvalho Pinto.

A associação passou por uma fase de menos projeção e só ressurgiu depois. Por quê?

Eu suspeitaria que, com os novos salários, uma carreira bem estruturada e com acréscimo de 180% por tempo integral, desapareceram os grandes problemas que haviam motivado a criação da Associação dos Auxiliares de Ensino. Ela só ressurgiu com o Crodowaldo Pavan, Erasmo Mendes e outros, bem mais tarde, já na cidade universitária.

Seu concurso para professor titular representou uma grande mobilização na faculdade. A que o senhor atribui a polêmica em torno do seu nome?

Foi uma mobilização no sentido de se ter uma pessoa que garantisse condições de trabalho, valorizasse a pesquisa e defendesse o sistema de promoção por mérito. A polarização foi causada mais por esses aspectos, embora alguns lhe tenham atribuído uma conotação política.

Como foi o concurso?

A decisão de fazer o concurso eu havia tomado muito antes. Era uma decisão firme. Ou me tornava professor catedrático ou deixaria o laboratório. Uma coisa é você ser o chefe do departamento, indicar assistentes, trazer pesquisadores visitantes, discutir verbas. Outra é ser muito esforçado mas ficar batendo martelo para fazer gaiolas para gato o resto da vida. Aquela era a minha hora, eu não poderia deixá-la passar.

O que me garantiu o concurso foi o currículo, a prova prática e a tese. Na prova didática não fui bem. À uma hora da manhã eu ainda estava na faculdade, ensaiando o ponto sorteado. Fiquei esgotado. Era um assunto praticamente novo para mim.

laboratório se desenvolveu muito depois disso, mas em 1969 o senhor foi cobrado, não foi?

Fui. Uma das alegações para a minha cassação foi a de que, como diretor científico da Fapesp, eu teria aprovado muitas bolsas e auxílios para comunistas. Contaram-me que essa foi a explicação do Gama e Silva. Não sei se é verdade. Nem me interessa saber. O importante é que éramos pessoas interessadas em melhorar a universidade.

Em seu discurso de posse como catedrático, Guilherme Rodrigues da Silva defendeu a tese de que a assistência médica, no Brasil, era um reflexo da nossa economia capitalista. Após a solenidade, o professor Aderbal Tolosa me disse, na sala das becas, referindo-se ao novo professor: "É isso que vocês nos trazem!" A nossa fama era essa, a de grupo de esquerda. O próprio Charles Corbett, meu amigo, me disse por ocasião do Ato Institucional n° 5: "Sou contra vocês, acho que estão errados, embora não concorde com o que foi feito."

Com o AI-5, o senhor ficou desempregado. Depois foi trabalhar na Fundação Ford. Como foi essa transição?

A ideia nasceu dos contatos que a fundação mantinha com o pessoal da área de ciências sociais e que resultaram na criação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Fui inclusive convidado para integrar o Cebrap. Mas eu não era cientista social - que faria lá? Nesses contatos, alguém mencionou a possibilidade de eu vir a trabalhar na Fundação Ford, no Rio. Quando soube disso, peguei um ônibus e fui pessoalmente conversar com o representante, que era Peter Bell. Fui procurar emprego. Tive sorte e encontrei. Lembro-me inclusive que, antes de pegar o ônibus, comentei com minha esposa que nunca esperara ter que procurar emprego depois dos 50 anos...

Na Ford, fui muito bem recebido e ficaram de contatar Nova Iorque. Soube da minha aceitação durante a reunião da SBPC, em Belo Horizonte. A proposta era de mil dólares por mês e todas as despesas pagas, no Rio - o dobro do que eu ganhava como professor catedrático da Faculdade de Medicina e quatro vezes o que a Fapesp me pagava como diretor científico.

Quais eram as suas funções na Fundação Ford?

Minha tarefa era acompanhar e avaliar auxílios em andamento para o Instituto Oceanográfico e o Instituto de Química da USP, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o CNPq, a Academia Brasileira de Ciências, a Escola Técnica Celso Suckow da Fonseca etc. Depois de alguns meses fui incumbido de implantar um programa de apoio à nutrição que abrangia toda a América Latina. Nesse programa aprovamos vários auxílios para as universidades de Pernambuco, Brasília, São Paulo e Escola Paulista de Medicina, além de mais de cem bolsas, quase todas no exterior. Eu era um consultor em tempo integral. Foi um período muito positivo. Dedicava-me completamente ao trabalho e adquiri uma visão totalmente diferente da que possuía antes.

O senhor foi diretor científico e atualmente é diretor presidente da Fapesp. Conte-nos um pouco dessas experiências.

O papel mais importante foi o de diretor científico, de 1968 até abril de 1969, com o AI-5. Era uma fase de consolidação. A Fapesp tinha iniciado suas atividades em 1962 com o Warwick Kerr, que ficou dois anos e meio. Depois veio o William Saad Hossne. Tínhamos em comum o conhecimento do meio científico. Através da Associação de Auxiliares de Ensino, eu havia conhecido mais da metade da comunidade científica do Estado. Além disso, um aspecto "biológico" justifica que essa tenha sido a melhor fase: aos 50 anos é muito fácil tomar decisões. Aos 70 é muito mais difícil: já não se é tão seguro e as decisões pesam mais. Parece que o excesso de experiência é nocivo. Como diretor presidente, exerço funções diferentes: sou mais um mediador do que um executivo.

A Fapesp tem sido considerada um modelo de instituição de incentivo à pesquisa. Há, no entanto, a possibilidade de que sejam incluídos na nova constituição dispositivos que ameacem a continuidade da fundação. Qual a dimensão desse risco?

A dotação da Fapesp foi definida nas constituições estaduais de 1947 e de 1967 como devendo corresponder a, no mínimo, 0,5% da renda dos impostos arrecadados pelo estado. É esse dispositivo constitucional que tem assegurado a continuidade e a regularidade da fundação desde sua instalação, em 1960. Ocorre que, na nova constituição, o inciso IV artigo 196 do projeto da Comissão de Sistematização veda a vinculação da receita de impostos a órgãos, fundos ou despesas. Esta proibição não se estenderia necessariamente aos estados, mas há sempre a possibilidade de que as assembleias estaduais interpretem que sim, o que, no caso de São Paulo, colocaria em xeque a continuidade da Fapesp.

O deputado Florestan Fernandes, que foi membro do conselho superior da fundação, apresentou uma emenda nas disposições transitórias que permite aos Estados vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica. A emenda tem o mérito de preservar a Fapesp e assegurar aos outros estados a possibilidade de contarem com organização semelhante, se o desejarem. É de se esperar que seja aprovada.

senhor recebe, na Fapesp, pedidos ou pressões políticas?

Pedidos sim, pressões não. Quando era diretor científico, uma pessoa do alto escalão do governo mandou perguntar se um seu colaborador importante poderia receber um auxílio para participar de uma reunião no exterior. Respondi que sim, desde que fizesse o pedido normal e justificado e este fosse aprovado pela assessoria, como acontece com todos.

Quando, no governo Montoro, fui nomeado diretor presidente da Fapesp, deixei claro que defenderia os interesses da fundação, não os da Secretaria de Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia. Nunca houve pressão. Pedidos com recomendações existem, mas são analisados como todos os outros e nunca há reclamações ou pressões quando a decisão é contrária.

senhor foi um dos idealizadores da Comissão das Sociedades Científicas. Como avalia o desempenho dessa comissão?

Fui coordenador da Comissão das Sociedades Científicas desde sua instalação, em 1985, até o início deste ano. Nesse período, mantivemos um contato estreito com o Ministério de Ciência e Tecnologia e exercemos uma influência positiva sobre a aprovação e a liberação de recursos para as agências financiadoras de ensino e pesquisa, particularmente para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Hoje a situação do fundo é calamitosa e a comissão atual tem enorme responsabilidade. Se não forem liberados com urgência recursos suplementares ou se forem executados os cortes que vêm sendo anunciados, a maior parte da atividade científica estará sob risco. Por representar a comunidade científica e ser independente, a comissão possui as credenciais necessárias para debater com o governo e levar a público as dificuldades e os prejuízos que decorrem dos atrasos na aprovação e liberação de recursos.

Tanto em 1964 como em 1969, o grupo de professores da Faculdade de Medicina de que o senhor fazia parte foi acusado de ser um grupo de comunistas. Que diz sobre isto?

Seguramente não era um grupo de comunistas. Alguns até podiam ser socialistas, mas não nos interessava saber quem era ou não era. O que nos caracterizava enquanto grupo era o interesse pelo desenvolvimento científico e cultural e uma honestidade de princípios, um desinteresse por prestígio e status. Quando depus no Inquérito Policial Militar que se instalou na Faculdade de Medicina em 1964, o coronel Ênio Pinheiro me perguntou por que apenas os homens de esquerda tinham vez na universidade. Respondi que era simples - eram quase os únicos interessados, os que faziam pesquisa, e por esse motivo estavam assumindo cargos. Se os de direita se dispusessem a desempenhar essas funções, podia lhe garantir que não teriam a menor dificuldade. Era essa a situação real. Éramos um grupo de idealistas, essencialmente interessados em melhorar a universidade. Isso foi em junho de 1964. O Luiz Hildebrando e o Thomas Maak estavam presos, Michel Rabinovitch fora para o exterior, Luiz Rey já estava na África. A dispersão havia começado. Em 1969 não houve inquérito. Nunca soube do quê fui acusado. Simplesmente, uma comissão de quatro professores da USP divulgou uma lista, apontando mais de 55 nomes. Nunca se deu a menor explicação.

Quais foram as conseqüências dessas medidas sobre a qualidade do trabalho científico?

Alguns departamentos sobreviveram, outros desapareceram por completo. A Parasitologia, por exemplo, só recentemente começou a se refazer. A Bioquímica, apesar da saída do Isaías Raw, sobreviveu. Na Fisiologia, quando saí, correu o boato de que o Orsini iria solicitar a cadeira, porque havia sido o segundo colocado no concurso. Quando soube disso, procurei pessoalmente os professores da congregação e pedi que não permitissem que fosse destruído o que havia sido feito.

Para se ter uma ideia de como era a atmosfera na faculdade naquele tempo, quando alguns professores foram presos, os estudantes se reuniram e apresentaram ao diretor um pedido de informações sobre o motivo das prisões. O diretor puniu os estudantes e informou aos membros da congregação que, se não o apoiassem nessa medida, pediria demissão. Os estudantes já tinham representação na congregação. Conversei com eles e concluímos que, naquele momento, reclamar pioraria tudo.

Após a anistia, o senhor foi reintegrado ao seu antigo departamento. Como foi essa experiência, após vinte anos?

Esse é um problema que ainda não superei. Quando fui reintegrado, com quase 64 anos, depois de 11 anos fora do laboratório, achei que já era tarde demais para reiniciar uma atividade científica regular. O vazio de 11 anos fora da pesquisa, sem ao menos ter acompanhado a bibliografia, pareceu-me um obstáculo insuperável.

A situação se agravou ainda mais porque fui eleito chefe do departamento. Quando terminou essa chefia, fui convidado para ser assessor científico do dr. Einar Kok, secretário da Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia no governo Montoro. Como a Fapesp é vinculada a essa secretaria, achei que não podia me omitir. Na posição que me era oferecida, podia vigiar para que a Fapesp recebesse a atenção merecida. Aliás, o secretário Einar Kok sempre mostrou o máximo interesse pela fundação e procurou acatar todas as sugestões que lhe foram feitas.

Assim, respondendo à pergunta, posso dizer que me reintegrei sem qualquer dificuldade no ambiente científico. Mas não na minha própria atividade de pesquisador. E este é justamente o problema, porque só me sinto realmente bem e realizado trabalhando no laboratório. Mas agora isso só pode ser visto como coisa do passado e seria imaturo não reconhecer que nem tudo que se quer é possível.

Honestamente, acho que esta entrevista nem vale a pena. A verdade é que fui um homem de muita sorte. As coisas na minha vida aconteceram muito mais por sorte do que por mérito. Tive sorte principalmente com os alunos que vieram trabalhar comigo. Sorte em fazer química, em ter o Pascoal Senise como instrutor. Sorte em ter assumido a chefia da Fisiologia justamente quando todos os colegas de trabalho haviam sido escolhidos por mim. O próprio AI-5 contribuiu para que eu tivesse uma visão muito mais aberta do mundo e do papel social da ciência

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Entrevista concedida a Erney P. Camargo e Gerhard Malnic (Departamentos de Parasitologia e Fisiologia, USP) e Vera Rita da Costa (Ciência Hoje).