Água: planeta Terra ou Terra: planeta água?

Midia

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".... Tales de Mileto, o primeiro filósofo, da antiga Grécia do século VI a.C., afirmava que ‘tudo é água’. Assim, essa expressão, por intermédio de longa tradição aristotélica, passou a ser considerada a primeira frase filosófica do Ocidente ....

.... Nela, há algo de inquietante e sugestivo. Ela sempre me perturbou, nunca deixei de pensar no desafio que ela significa para a compreensão, pela sua radical brevidade, pela brutal distância que estabelece com o senso comum, pelo mistério e beleza que a envolvem na sua pureza e no seu isolamento. “Tudo é água”! O que isso quer dizer? ...."

(BRUNNI, 1994, p. 53; 54).

O filósofo Brunni (1994) para compreender a profundidade e extensão dessa pequena frase, iniciou salientando a presença constante do elemento água nas coisas simplistas e comuns do dia a dia, desde os cuidados pessoais, afazeres domésticos, higienização, preparo dos alimentos e higienização dos utensílios após o uso, numa sensação indispensável de limpeza, conforto e bem-estar, não esquecendo o gole de água para matar a sede.

Ainda, ressaltou que biologicamente, todos os seres vivos têm água em sua composição, na proporção de 65-70%, e precisam dela para absorção de alimentos, metabolismo dos nutrientes e eliminação de resíduos. O ser humano pode viver sem alimento sólido por mais de um mês, mas sem água só por dois ou três dias! A presença de água propiciou o viver em sociedade e foi a base da civilização e formação da cidades e sistemas de abastecimento e saneamento. De acordo com Brunni (1994):

"Desde fins do século XVIII, a água deixou, para nossa cultura, de ser um elemento, uma substância primordial, qualitativamente diferenciada, para tornar-se H2 O, ou seja, “corpo incolor, inodoro, insípido, líquido à temperatura ordinária, resultante da combinação de um volume de oxigênio e dois de hidrogênio e capaz de refratar a luz e dissolver muitos outros corpos... Cada uma das culturas humanas reserva um papel privilegiado para a água, em cada uma de suas formas, em cada um de seus modos de ser". (p. 57; 59).

Cabe-nos fazer uma pequena reflexão a esse respeito. Qual a importância da água para o meio ambiente? Que ações vêm sendo realizadas para minimizar os impactos negativos da sociedade sobre a água, seja localmente ou para o planeta? Estamos usando a água de forma automática ou consciente? Preferimos terra: planeta água ou água: planeta terra? Como se apercebe, que importância atribui, o que representa e como você pensa e age sobre a questão da água, no seu dia a dia? Sua percepção e ação podem fazer total diferença.

Na música Planeta Água (letra e música de Guilherme Arantes), defendida pelo próprio compositor no Festival MPB Shell em 1981 (FIGUEIRA, 2022), percebe-se a importância conferida à questão, desde a 1ª estrofe e estribilho (com grifos dos autores deste texto), respectivamente:

Águas escuras dos rios (férteis = ricas em matéria orgânica e minerais)
Que levam a fertilidade ao sertão
Águas que banham aldeias
E matam a sede da população... (motivo de se instalarem próximas aos mananciais)

...Terra! Planeta Água
Terra! Planeta Água
Terra! Planeta Água...

Onze anos após o lançamento dessa música, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu em 22 de março de 1992, o Dia Mundial da Água, e nesta mesma ocasião divulgou a Declaração Universal dos Direitos da Água, composta por dez artigos, sumarizados abaixo:

1- A água faz parte do patrimônio do planeta;

2 - A água é a seiva do nosso planeta;

3 - Os recursos naturais de transformação da água em água potável são lentos, frágeis e muito limitados;

4 - O equilíbrio e o futuro de nosso planeta dependem da preservação da água e de seus ciclos;

5 - A água não é somente herança de nossos predecessores; ela é, sobretudo, um empréstimo aos nossos sucessores;

6 - A água não é uma doação gratuita da natureza; ela tem um valor econômico: precisa-se saber que ela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer região do mundo;

7 - A água não deve ser desperdiçada, nem poluída, nem envenenada;

8 - A utilização da água implica respeito à lei;

9 - A gestão da água impõe um equilíbrio entre os imperativos de sua proteção e as necessidades de ordem econômica, sanitária e social;

10 - O planejamento da gestão da água deve levar em conta a solidariedade e o consenso em razão de sua distribuição desigual sobre a Terra.

Essa declaração traz um foco mais abrangente para a água do planeta e sua condição como recurso natural esgotável e prioritário à vida, conforme ressaltaram também Pimentel e colaboradores (2014). Diante disso, cabe refletirmos sobre a necessidade de uma mudança de postura e de hábito de consumidores, para que haja um uso mais racional e consciente da água. Também é importante preservar, prevenir e buscar remediar os danos causados ao meio ambiente.

Segundo Bettega e colaboradores (2006), de toda a água disponível no nosso planeta, 95,1% é salgada. Dos 4,9% restantes, 4,7% aparecem na forma de geleiras ou em regiões subterrâneas de difícil acesso. Ou seja, apenas 0,147% da água do mundo é potável e disponível para consumo, ocorrendo nos lagos, nascentes e lençóis subterrâneos.

Essa escassez de água potável resulta em uma grande quantidade de pessoas sem acesso livre a esse bem fundamental. Segundo dados da ONU (2001), 29 países não dispõem de água potável em quantidade suficiente para toda sua população. A projeção para 2050 é de que esse número aumente para 48. Mediante esses dados, percebe-se a enorme disparidade entre o consumo e a renda per capita[1], onde populações de lugares mais ricos têm acesso ilimitado à água e aos serviços que dela dependem - em Nova York, os dados apontam para um consumo de cerca de 2.000 litros por habitante por dia, enquanto a média do continente africano é de 15 litros por habitante por dia (BETTEGA e cols., 2006, citando BIO, 1999; MACEDO, 2001).

Consta no Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), que cerca de 2,2 bilhões de pessoas no mundo não têm serviços de água tratada[2], 4,2 bilhões de pessoas não têm serviços de saneamento adequado e 3 bilhões não possuem instalações básicas[3] para a higienização das mãos (UNICEF, 2019).

Esses dados ainda apontam para grandes desigualdades quanto à acessibilidade, disponibilidade e qualidade desses serviços: 8 em cada 10 pessoas vivem em áreas rurais e não dispõem de saneamento básico e nem dos serviços imprescindíveis à saúde. Em 25% dos países, com pessoas de diferentes grupos, aqueles com maior poder aquisitivo têm o dobro do acesso ao saneamento básico e infraestrutura do que os mais pobres.  

"Se os países não conseguirem intensificar os esforços de saneamento, água potável e higiene, continuaremos a viver com doenças que deveriam ter ficado há muito tempo nos livros de história: doenças como diarreia, cólera, febre tifoide, hepatite A e doenças tropicais negligenciadas, incluindo tracoma, vermes intestinais e esquistossomose. Investir em água, saneamento e higiene é economicamente viável e bom para a sociedade de muitas maneiras. É uma base essencial para a boa saúde" (Citação de Maria Neira, diretora do Departamento de Saúde Pública, Determinantes Ambientais e Sociais da Saúde da OMS; UNICEF, 2019).

Soma-se à questão da escassez o uso imperceptível da água (ou uso indireto), que embora seja invisível aos olhos, está presente nos processos produtivos. O consumo individual doméstico de água no Brasil (uso perceptível ou direto) normalmente varia de 150 a 200 litros por pessoa por dia. Já o processo de fabricação de um computador, por exemplo, consome 1.500 litros de água, pois os materiais usados demandam lavagens em água muito pura. A indústria é responsável pelo uso da segunda maior parte de água no mundo ou 22% do total de água doce (GUIMARÃES, 2012; PLANETA ATIVO, 2013).

"A eliminação das desigualdades na acessibilidade, qualidade e disponibilidade de água, saneamento e higiene deve estar no centro das estratégias de financiamento e planejamento do governo. Afrouxar os planos de investimento para cobertura universal é enfraquecer décadas de progresso ao custo das próximas gerações" [Citação de Kelly Ann Naylor – Diretora-Associada de Água, Saneamento e Higiene (WASH/UNICEF; UNICEF, 2019).

Conforme a Teoria da Água virtual[4] e relatado por Oliveira (2012), para se produzir uma xícara de café, gasta-se em média 140 litros de água. O cálculo foi feito levando-se em conta toda a logística da produção do café, desde a energia gasta no cultivo, no processamento e empacotamento dos grãos, até o deslocamento do mesmo ao destino final, o consumidor. Para a produção de 1 kg de carne bovina, gasta-se em média cerca de 13.000 litros de água; no caso do arroz o consumo é de 2.500 litros de água. Um fato curioso é que para se produzir uma calça jeans tradicional são necessários mais de 10.000 litros de água.

No Brasil, dados estatísticos mostram que 70% da água são utilizados na agropecuária, 20% na indústria e apenas 10% são destinados ao uso doméstico. Daí podemos deduzir que 90% do consumo é indireto e imperceptível, empregado na produção e consumo de alimentos. Vale ressaltar que quando se descarta ou desperdiça um produto, joga-se também água fora (GUIMARÃES, 2012).

Sales (2017), ao citar Ruscheinsky (2004), ressaltou que a água não é apenas um bem natural, e sim um bem “simbólico, político e econômico”. Ou seja, ela é transcendente à questão ambiental, tornando-se, portanto, vinculada às questões e às comunidades ao seu redor.

Ele apregoou ainda, que a Constituição de 1988 incorporou as águas brasileiras ao patrimônio dos Estados e da União, afastando-as, assim do domínio privado. Com isso, coube ao Estado, em conformidade com a Lei Federal nº. 9.433/97, regulamentar a água como “bem de domínio público” (BRASIL, 1997), com todas as prerrogativas, inclusive as de elaborar e regulamentar diretrizes no tocante ao uso e consumo da água. Assim, por se tratar de um bem público, o seu usufruto deve ser feito de forma justa e igualitária e acessível a todos, ou seja, de forma não excludente.  (GREMAUD e TONETO 2011; VIEIRA, 2015; citados por SALES, 2017).

No Brasil, as diretrizes de consumo da água integram a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6.938/81[5]), a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/1997[6]) e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SOUZA e CRUZ, s. d.), visando à articulação dos entes governamentais (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e à interação com as demais políticas da área, como as políticas inerentes, por exemplo, ao saneamento básico e ao uso e ocupação do solo (Art. 31[7]).

Mais que um bem público, a água foi formalizada como um direito humano, reconhecida pelo Conselho dos Direitos Humanos da Organização da Nações Unidas (CDH/ONU) na Resolução A/HRC/RES/15 set 2010 (ONU, s. d.), onde sumarizado consta:

"... os direitos à água e ao saneamento fazem parte do direito internacional existente e confirma que esses direitos são legalmente vinculativos para os Estados”.... Apela para estes que ... “desenvolvam as ferramentas e mecanismos adequados para alcançarem, gradualmente, a concretização integral das obrigações em termos de direitos humanos relacionadas com o acesso a água potável segura e saneamento, incluindo em áreas atualmente não-servidas ou insuficientemente servidas..."

Ou seja, o direito à água é um direito por si somente. O consumo de água é tão importante para o homem que Maia Neto (2008, p. 4), citado por Sales (2017), afirmou “a água antecede a vida”.

Diante desta realidade, tornaram-se premissas os processos de sensibilização, autoconscientização, educação, mudanças de hábito preservacionistas e reflexões quanto às ações locais, mas com efeitos mundiais, sobre a água. É imprescindível que cada um se enxergue como parte destes processos, tanto como indivíduo quanto como sociedade, partícipe em direitos e deveres, na sua área de pertinência e vivência, seja no domicílio, rua, comunidade, bairro, escola, trabalho, município. Onde estiver, seja agente de transformação social e de mudança de paradigma no tocante à conservação e preservação dos recursos hídricos e do meio ambiente. É necessária a conscientização e atuação de todos, zelando e preservando nosso patrimônio imaterial, a água.

Cada ente da federação, dentro de sua área de atuação, deve propor alternativas, soluções, melhorias ou projetos que evitem o desperdício, o uso inadequado e a degradação das reservas hídricas e minimizem os efeitos nocivos causados pelo mau uso dos nossos recursos.

Partindo-se da premissa de que a água precede a vida e sociedade, parafraseando a música de Guilherme Arantes e considerando a “Água: planeta Terra”, nosso cuidado de cada dia faz a diferença hoje, amanhã e no futuro.

"A água simboliza pureza, fertilidade e vida especialmente quando, em estado de natureza, encontra-se pura, limpa e transparente. Ora, as condições de existência das grandes cidades modernas - mas não só aí -, tendem a destruir aquelas características naturais da água. Tem sido bastante denunciado o fato de que a poluição de rios, lagos e praias destrói diretamente a vida dos seres que vivem nessas águas, e indiretamente compromete as condições de vida biológica dos homens. A essa lista de efeitos destrutivos da poluição das águas deveria ser acrescentado o enorme malefício que a moderna sociedade industrial introduz na dimensão simbólica, danificando, talvez de maneira irreparável, o rico patrimônio psíquico que o imaginário da água tem produzido ao longo da história da humanidade (BRUNNI, 1994, p. 64)."

Fechando essa compilação com uma história vivenciada, quando uma jornalista perguntou a um agricultor rude e semianalfabeto, mas com uma sabedoria ímpar... Por que o Senhor está plantando esta árvore? Respondeu aquele homem rural “porque meu pai não plantou e quero que meu filho tenha sombra”. Que seja assim com a água: enquanto usufruímos, que seja como usuários e não exploradores, cantando juntos:

"... Águas que banham aldeias e matam a sede da população
... Águas que movem moinhos são as mesmas águas que encharcam o chão
E sempre voltam humildes pro fundo da terra, pro fundo da terra..."[8]

Terra: planeta água até quando?

 

NOTAS DE RODAPÉ

[1] https://brasilescola.uol.com.br/geografia/renda-per-capita.htm

[2] Serviços de água tratada: consumo de água potável de fontes localizadas, livre de contaminação e disponível quando necessária, e utilização de banheiros dos quais os resíduos são tratados e descartados com segurança.

[3] Instalações básicas: existência de uma fonte de água potável protegida que leva menos de trinta minutos para coletar água, com utilização de um banheiro melhorado ou latrina que não precisa ser compartilhada com outros domicílios e com instalações para lavar as mãos com sabão e água.

[4] Água virtual = conceito desenvolvido pelo geógrafo inglês Tony Allan, em 1993. Disponível em https://www.dm.com.br/opiniao/2015/04/a-teoria-da-agua-virtual-o-consumo-de-agua-que-nao-enxergamos/.

[5] https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/104090/lei-da-politica-nacional-do-meio-ambiente-lei-6938-81

[6] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9433.htm

[7] Art. 31. Na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, os Poderes Executivos do Distrito Federal e dos municípios promoverão a integração das políticas locais de saneamento básico, de uso, ocupação e conservação do solo e de meio ambiente com as políticas federal e estaduais de recursos hídricos.( https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9433.htm)

[8] https://br.video.search.yahoo.com/search/video?fr=mcafee&ei=UTF-8&p=planeta+%C3%A1gua+letra&type=E211BR714G0#id=1&vid=9d99dac1896abb422341a3bfc46efa66&action=click

Título

Água: planeta Terra ou Terra: planeta água?